AVEIRO
Anoitecia.
O sol sumira-se no horizonte por detrás de uma nuvem escura, franjada,
que a luz debruava de oiro. Mais longe, a norte e a sul, o debrum
passava a ser esbranquiçado brilhante, com intervalos luzentes nos mais
elevados cumes. Pelo céu, aqui e além, viam-se farrapos de nuvens pelos
quais se espalhavam as cores do espectro que o sol na agonia lhes
dispensava, como último adeus do dia a desaparecer na fuga para o outro
hemisfério. O amarelo e o alaranjado predominavam nas ilhas flutuantes
das nuvens mais próximas e o verde e o roxo coloriram as mais distantes
para as bandas do nascente. E, pouco a pouco, as sombras iam caindo e o
silêncio foi-se apossando da tripulação bulhenta do barco.
Já a caminho do esteiro da aldeia, nasceu a lua. No
canal, as rugas de água multiplicavam as luzes reflectidas em rosário de
contas luminosas, ao lado da embarcação.
A lua ascendia em quarto crescente avantajado; em torno
abronzeava-se a atmosfera e havia uma ligeira viração de suave
melancolia a cobrir-nos a todos, na contemplação daquele quadro que
pedia a paleta de Corot.
Tudo recolhia. Os barcos da faina do dia, os
trabalhadores das mondas dos milheirais e da abertura e limpeza das
rigueiras dos juncais vizinhos. Chilreavam vagamente as aves mais
retardatárias que se acoitavam nos campos marginais. As codornizes por
lá se conservavam. A fortaleza das chuvas ainda as não fizera descer aos
campos em busca da milhão Mas essas aves de há muito dormiam sono
alvoroçado, com receio dos caçadores.
Todos – e até a nossa caravana – se sentiam fatigados a
caminho dos lares, naquele lusco-fusco crepuscular em que a natureza se
torna mais modesta, na quietação das coisas.
Somente daí a pouco, surgiriam, em caminho oposto, as
bateiras e caçadeira que iam para a pesca. As fainas alternam-se nestas
aldeias da Beira-Ria...
No cimo de um outeiro vimos a capelinha de S. Paio,
caiadinha de branco, afastada dos palheiros sombrios que se apinhavam à
margem da Ria. O vento não era de feição; mas lá nos ia levando de
margem a margem, ora mirando as matas verdejantes dos pinheiros ainda
novos das quintas, a contrastar com o branco das dunas ainda não
dominadas pela vegetação, ora as terras escuras do Bunheiro e da
Murtosa, donde tinha saldo o milho louro, agora amanhadas para
reverdecerem de boa erva para o gado, às primeiras chuvas outoniças...
... Em toda essa região, de lés-a-lés, da Ria de Aveiro,
a tricana é um símbolo. E a representante do povo. Se houvesse eleições
livres ascenderiam ao Parlamento!
Sucede, porém, que às vezes, como consequência de mudança
de situação pelo matrimónio, as imposições sociais as obrigam a pôr
chapéu, a comprimirem-se em espartilhos e a usar peles caras. Foge-lhes
a graça antiga no alambicado do novo arranjo do vestuário e mais ainda
nos inestéticos arrebiques com que lhe descompõem os cabelos! O olhar –
sei lá porquê? – já não tem o mesmo brilho e a troca do xaile de merino,
reluzente e escorregadio, pelas raposas de preço, deve corresponder ao
desaparecimento das túnicas gregas que, a dar-se crédito a Teófilo
Braga, por ali passaram, dando realce ao colo de garça que ainda
continua a divisar-se nas festas a que concorrem. E a queda de uma
estátua de Fídias, um arranjo de adelo! A tricana ou morre ou
desaparece, mascarada no caminho. Que se deixe seduzir pelos doutores
está certo, mas que mantenha a sua indumentária.
A tricana não é apenas vestuário, bem o sei; também luzem
as suas qualidades morais, a graça das maneiras, a altivez do porte, o
brilho do olhar... Mas a indumentária, o garbo como traça o xaile escuro
e enlaça os cabelos de azeviche nas dobras do lenço, ficando a espreitar
pelas falhas da frente e dos lados, é fundamental. Traz-lhe o dona ire
que lhe é próprio e constitui a base do seu principal encanto.
Egas Moniz
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