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Boletim n.º 1 - Ano I - 1983

AVEIRO

 

Anoitecia. O sol sumira-se no horizonte por detrás de uma nuvem escura, franjada, que a luz debruava de oiro. Mais longe, a norte e a sul, o debrum passava a ser esbranquiçado brilhante, com intervalos luzentes nos mais elevados cumes. Pelo céu, aqui e além, viam-se farrapos de nuvens pelos quais se espalhavam as cores do espectro que o sol na agonia lhes dispensava, como último adeus do dia a desaparecer na fuga para o outro hemisfério. O amarelo e o alaranjado predominavam nas ilhas flutuantes das nuvens mais próximas e o verde e o roxo coloriram as mais distantes para as bandas do nascente. E, pouco a pouco, as sombras iam caindo e o silêncio foi-se apossando da tripulação bulhenta do barco.

Já a caminho do esteiro da aldeia, nasceu a lua. No canal, as rugas de água multiplicavam as luzes reflectidas em rosário de contas luminosas, ao lado da embarcação.

A lua ascendia em quarto crescente avantajado; em torno abronzeava-se a atmosfera e havia uma ligeira viração de suave melancolia a cobrir-nos a todos, na contemplação daquele quadro que pedia a paleta de Corot.

Tudo recolhia. Os barcos da faina do dia, os trabalhadores das mondas dos milheirais e da abertura e limpeza das rigueiras dos juncais vizinhos. Chilreavam vagamente as aves mais retardatárias que se acoitavam nos campos marginais. As codornizes por lá se conservavam. A fortaleza das chuvas ainda as não fizera descer aos campos em busca da milhão Mas essas aves de há muito dormiam sono alvoroçado, com receio dos caçadores.

Todos – e até a nossa caravana – se sentiam fatigados a caminho dos lares, naquele lusco-fusco crepuscular em que a natureza se torna mais modesta, na quietação das coisas.

Somente daí a pouco, surgiriam, em caminho oposto, as bateiras e caçadeira que iam para a pesca. As fainas alternam-se nestas aldeias da Beira-Ria...

No cimo de um outeiro vimos a capelinha de S. Paio, caiadinha de branco, afastada dos palheiros sombrios que se apinhavam à margem da Ria. O vento não era de feição; mas lá nos ia levando de margem a margem, ora mirando as matas verdejantes dos pinheiros ainda novos das quintas, a contrastar com o branco das dunas ainda não dominadas pela vegetação, ora as terras escuras do Bunheiro e da Murtosa, donde tinha saldo o milho louro, agora amanhadas para reverdecerem de boa erva para o gado, às primeiras chuvas outoniças...

... Em toda essa região, de lés-a-lés, da Ria de Aveiro, a tricana é um símbolo. E a representante do povo. Se houvesse eleições livres ascenderiam ao Parlamento!

Sucede, porém, que às vezes, como consequência de mudança de situação pelo matrimónio, as imposições sociais as obrigam a pôr chapéu, a comprimirem-se em espartilhos e a usar peles caras. Foge-lhes a graça antiga no alambicado do novo arranjo do vestuário e mais ainda nos inestéticos arrebiques com que lhe descompõem os cabelos! O olhar – sei lá porquê? – já não tem o mesmo brilho e a troca do xaile de merino, reluzente e escorregadio, pelas raposas de preço, deve corresponder ao desaparecimento das túnicas gregas que, a dar-se crédito a Teófilo Braga, por ali passaram, dando realce ao colo de garça que ainda continua a divisar-se nas festas a que concorrem. E a queda de uma estátua de Fídias, um arranjo de adelo! A tricana ou morre ou desaparece, mascarada no caminho. Que se deixe seduzir pelos doutores está certo, mas que mantenha a sua indumentária.

A tricana não é apenas vestuário, bem o sei; também luzem as suas qualidades morais, a graça das maneiras, a altivez do porte, o brilho do olhar... Mas a indumentária, o garbo como traça o xaile escuro e enlaça os cabelos de azeviche nas dobras do lenço, ficando a espreitar pelas falhas da frente e dos lados, é fundamental. Traz-lhe o dona ire que lhe é próprio e constitui a base do seu principal encanto.

Egas Moniz

 

 

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