É consabido que Gaspar Barreiros,
fidalgo e cónego da Sé de Évora, escreveu, em meados do século XVI,
um volume, Corografia de alguns lugares, onde conclui que a
tão buscada e jamais achada Talábriga demorava, afinal, em Cacia,
«nas ribeiras do rio de Vouga, junto da villa de Aueiro,
specialmente onde ora stá a igreja de Sanct. Juliani».
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A moeda romana (anverso
e reverso),ampliada, que ostenta a efígie de Honório. |
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Ao sabor da indolência de certos
escritores ou ainda de inflamados bairristas, o mito pegou de estaca
até 1907, altura em que Félix Alves Pereira lhe deu profunda se não
mortal machadada. Entretanto, e para engordar a fábula, Frei
Bernardo de Brito, que tinha dois hábitos – o de frade e o de meter
a ficção onde não era chamada –, iria ao ponto de fazer coincidir a
localização de Talábriga com a da vila de Aveiro. Mercê de tal
pólen, a fabulazinha, aliás sem qualquer justificação, como que
germinou, até se esfolhar por completo.
Há pouco ainda, Francisco Ferreira
Neves, estudando a possível situação geográfica da decantada urbe,
era de parecer, aduzindo para tanto razões plausíveis, que a
devíamos procurar em terras do interior e não na corda do litoral.
Contudo, se Gaspar Barreiros deu
raia – e perdoe-se-nos a chã locução – ao identificar Talábriga com
Cacia, teve, paralelamente, o altíssimo mérito de trazer à baila um
antigo e esquecido local onde estanciaram outrora gentes de Roma, e,
depois, os suevos. Com efeito, lê-se em dado passo da mencionada
Corografia de alguns lugares: «Na qual villa (Cacia) e igreja de
Sanct. Juliã nas ribeiras de Vouga situadas, se acham vestígios
antigos. s. os fundamëtos de hua torre que na memoria dos homes inda
stava quasi inteira, onde em outro tepo segundo ficou fama de hus em
outros chegavam navios da foz do mar, porque inda ali se achâram
pedaços d'elles e anchoras juncto da dita torre em hua lagoa. Afora
muitos vestigios e ruinas de argamassa que dentro em seu ambito
cõprehende hua milha pouco mais ou menos».
Da leitura atenta destas linhas não
se torna difícil concluir que Barreiros, embora personagem viajada e
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por Cacia, valendo-se, isso sim, de informações obtidas. E que
dificuldade, se gravitava à sua volta enxame de turibulários, alguns
deles com boas luzes? Mas foi pena, já que o exame directo lhe
forneceria abundante cópia de inestimáveis pormenores.
Não obstante Cacia vir à tona nas
páginas de autores dos séculos XVI e seguintes, a verdade, porém, é
que só recentemente as suas entranhas seriam desvendadas. ,Aconteceu
nas décadas de vinte e trinta, quando fornecedores de pedra e saibro
para as estradas revolveram completamente o sítio da Torre, ou seja,
aquele a que aludira quatro centúrias antes Gaspar Barreiros.
No seu opúsculo A Estação
Arqueológica de Cacia – I – Primeiras palavras, Primeiras impressões,
Alberto Souto refere a págs. 9: «Examinando o corte das pedreiras
abertas, constatei que uma camada de cacos e destroços de habitações
se estendia por todo o terreno, a um metro, pouco menos, da
superfície do solo arável e cultivado, e que nessa camada abundavam
os fragmentos de louça e as pedras, de granito e xisto, de
construções demolidas».
E mais adiante:
«Arranquei alguns cacos. Surgiu-me
cerâmica doméstica de qualidade e forma vária, mas alguns pedaços de
colo de ânfora, misturados com tegulae, imbrices e
tijolo, restos de cozinha, ossos de caça, cascas de moluscos, e uma
grande extensão de cinzas e carvão,
mostraram-me que ali existira um
povoado importante e não apenas uma vila.
«Procedi ao exame topográfico do
local e abri um inquérito.
«O sítio chama-se a Torre e
dali se têm desenterrado há muitos anos louça, âncoras, ferragens,
moedas de ouro, prata e cobre, mós, fornos, restos de esqueletos
humanos, ossos, etc.
«Tudo condizia, afinal, com a
importância que a Cacia alguns autores atribuiam, sem contudo a
inspeccionarem e classificarem.
«Estava indubitavelmente ali o ubi
de um castrum ou de um oppidum dos tempos romanos,
possivelmente vindo da época lusa, posteriormente romanizado e mais
tarde destruído, cujos escassos restos o destino poupou /.../».
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Das suas visitas ao sítio da
Torre, Alberto Souto recolheu um minguado mas valioso
espólio, que se encontra no Museu Nacional de Aveiro.
Inumeráveis elementos, como sublinha, anteriormente
desenterrados, não deixaram rastro. Levados alguns por curiosos
e outros pura e simplesmente desfeitos. O costume... E, por mal
dos pecados da Arqueologia, não há que esgravatar de futuro no
outeiro da Torre, porquanto foi totalmente, deploravelmente,
revolvido e rasado. Bondará dizer-se que a procura dos citados
materiais para a construção de estradas implicou barreiras da
ordem dos vinte metros de altura. Tal qual assinala o antigo
director do Museu de Aveiro, extraíram-se ali milhares de metros
cúbicos de pedra. Tantos que, no dizer de testemunhas
fidedignas, de velhos moradores da freguesia, o outeiro ficou
reduzido de dez a doze metros na sua altura primitiva. Numa
palavra, desapareceu do mapa. |
Fragmentos de uma estatueta e de uma
armela, em bronze, encontrados no sítio da Torre. |
Noutra página do opúsculo, Alberto
Souto, e com razão, adverte: «O problema (respeitante à Torre)
tem um grande interesse arqueológico, tem uma grande importância
histórica /.../» E acrescenta: «Pode Cacia ter sido a Talabriga
da Lusitânia pré-romana, mencionada por Apiano. Pode ter sido uma
Lavara, confusa e nebulosamente apontada por alguns autores.
Pode Cacia ter sido uma das Talabrigas da Lusitânia
romanizada, sem ser mesmo a do Itinerário de António Pio.
«Pode Cacia ter sido uma cidade sua
vizinha e irmã, uma aliada na guerra ou sua rival na prosperidade.
«Mas que o não tenha sido, nem por
isso, como diz o ilustre professor sr. dr. Mendes Correia, a estação
agora classificada, deixa de ter uma grande importância sob o ponto
de vista arqueológico.
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«O estudo sobre o assunto está
apenas no começo». Sem pretendermos, de modo nenhum, apresentar uma
tese acerca do tema, sempre adiantaremos que não se nos afigura
haver existido ali qualquer Talábriga. A menos que queiramos
utilizar uma lupa para engrandecer as coisas. Não começou logo o
próprio Gaspar Barreiros por nos dizer que o local «em seu âmbito
cõprehende hua milha pouco mais ou menos»?
Em nosso entender, no outeiro, com
pendor mais suave para os lados da igreja matriz e então
praticamente cercado de água, que dominava a foz do amplo estuário
do Vouga, houve apenas um vicus, isto é, um lugarejo, suporte
de torre ou vigia, sentinela atenta às incursões dos piratas
oriundos do norte e, sobretudo, do sul. Oppidus importantes,
como os do monte de São Gião (Souto da Branca, Albergaria-a-Velha) e
do Cabeço do Vouga, não ficavam longe. Além disso, importará
correlacionar tudo com o comércio marítimo praticado. Por exemplo, a
saída de minérios das várias laborações existentes. Nas minas de
chumbo da Malhada (Sever do Vouga) recolheram-se lucernas, como
acentuam Jorge de Alarcão e outros, dos séculos I e II d. C
No volume Póvoas Marítimas do
Norte de Portugal, Alberto Sampaio não alude a Cacia. Será,
portanto, que no sítio da Torre existiu tão-somente, como supomos,
uma atalaia militar, depressa abandonada ou mesmo destruída escassas
décadas após a queda do Império Romano? Não se nos antolha carecida
de sentido tal suposição. Como, apesar de tudo, não merecem totais
desatenções os topónimos Paço e Póvoa do Paço e, muito
especialmente, o que reza Campo da Matança, qualquer deles
correspondendo a localidades ou locais próximos.
Assinalando este última, Alberto
Souto, que foi quem a detectou, admite a hipótese de ali se haver
travado uma sangrenta e quiçá decisiva batalha. Do povoado, em suma,
ter visto um dia, com pavor, «as hordas bárbaras entradas pelo Vouga
ainda ali, então, largo e profundo, saltarem pela borda dos seus
barcos, businando e gritando ameaças de extermínio e escreverem na
sua ribeira, verdejante a sentença de morte que o prostrou».
A conjectura não é de excluir, pelo
menos no tocante a uma possível batalha naval. Outrora, o Chão da
Matança, mais tarde parcela do extenso campo vizinho, formado
que foi pelos terrenos de aluvião, situava-se, de facto, em pleno
estuário do Vouga.
Rocha e Cunha esclarece: «Num
passado relativamente distante, o litoral tinha um aspecto muito
diferente daquele que hoje apresenta; a partir do local em que está
a lagoa de Esmoriz, ou da Barrinha, seguia, mais pelo nascente, por
Cabanões – povoação antiquíssima donde provém a grande vila de Ovar
–, Estarreja, Salreu, Angeja, Cacia, Aveiro, Ílhavo, Vagos,
Portomar, Mira, até ao Cabo Mondego, formando uma extensa
chanfradura, com alguns recortes. Entre Angeja e Cacia jazia a
embocadura do estuário, porto marítimo nessa época, onde desaguava o
Vouga. /.../ A antiga linha da costa está traçada, com bastante
exactidão, no Portulano de Petrus Visconte (1318). Nesta
chanfradura existe hoje a laguna de Aveiro.»
Mas, como alude o autor do opúsculo
«A Estação Arqueológica de Cacia», no sítio da Torre
haviam sido já encontrados, ao longo dos anos, moedas de ouro, prata
e cobre. Em nenhuma, infelizmente, pôs a vista em cima, Pois a
nenhuma se refere, de maneira objectiva, no seu trabalho. A ausência
de qualquer exemplar no espólio depositado no Museu Nacional de
Aveiro não deixa de confirmar plenamente a ilação. Caindo em mãos
ignaras ou ávidas, documentos destes, que podiam ser basilares para
a história do lugar onde foram descobertos perdem assim muito do seu
valor – passam a ter mera cotação no mercado numismático.
Entretanto, e da facto damos agora
conhecimento, uma moeda de ouro, achada na Torre, no fundo do
imprescindível poço que alimentava o vicus – ou a villa – dos
aros de Cacia, não caiu em saco roto, constituindo elemento
inestimável para o estudo exacto da época em que por ali andaram os
romanos e seus imediatos sucessores.
Ao proceder-se à limpeza do poço, e
à profundidade de doze a quinze metros, a moeda luziu entre cinzas,
terras barrentas e restos de berbigões. Contou-nos isto Manuel
Martins Simões, seu sachador, e que também explorou pedra e saibro
naquelas paragens. Muito instado, oferecê-Ia-ia a uma pessoa da sua
consideração, recebendo em troca, e deveras a contra-gosto, pois que
«dera a moeda, estava dada», uma libra de cavalinho. Dessa pessoa,
cujo nome ignoramos, passou às mãos de António Mortágua, falecido há
uns dois anos, numismata e coleccionador de peças arqueológicas,
tudo levando a crer que continue na posse da família.
Enumeramos estes pormenores para
deles ressaltar a necessária autenticidade, até porque de histórias
e historietas está a arqueologia, e nem só, verdadeiramente
empanturrada...
Fotografias do anverso e do reverso
da moeda, amavelmente cedidas, aí pelos anos cinquenta, por António
Mortágua, remetemo-las mais tarde ao numismólogo portuense Sousa
Oliveira, que redigiu o seguinte parecer:
«Ao observar as fotografias que nos
foram apresentadas imediatamente vemos que se trata duma moeda do
tipo imperial romano. A sua leitura é fácil:
Anverso:
– Cabeça do imperador, à direita. Legenda: D(ominus) N(oster) HONORI
V(ota) S(uscepta ou soluta) P(ius) F(elix) Aug(ustus).
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Reverso:
– O imperador pisando aos pés um inimigo e tendo na mão direita um
lábaro. Legenda: A AUG(ustus) HONOR VlCTORI
Aparentemente estamos em presença de
um soldo do puro do imperador Honório (nascido em 384 e falecido em
423). Com efeito a efígie e as legendas assim o demonstram. As
iniciais V S P F referem-se aos votos públicos, concedidos aos
imperadores; a letra S pode estar em relação com a palavra
suscepta – aceites, ou soluta – cumpridos. Pius –
piedoso, e felix – feliz, eram dois dos títulos usados por
este imperador. A ideia de Victoria, nesta época, era expressa por
uma figura de Imperador esmagando um inimigo ou uma serpente com
cabeça humana. Repare-se que na legenda do reverso o A
inicial corresponde ao final da palavra VICTORIA.
O aspecto grosseiro desta moeda
leva-nos porém a pensar que se trata duma peça cunhada durante o
domínio suevo no noroeste peninsular, onde aquele povo reinou cerca
de século e meio (desde 409 a 585). Para aumentar o seu numerário
estes como outros povos nórdicos chamados bárbaros, limitaram-se a
copiar os numismas imperiais de Honório, durante o reinado do qual
se deram as invasões. E essa cunhagem continuou-se mesmo depois da
sua morte. Esses soldos são aqueles que os documentos coevos referem
como soldos galicanos. Inicialmente possuíam o mesmo toque e peso
que os romanos que eles imitavam. Depois o cunho tornou-se mais
grosseiro, tornando-se até por vezes indecifrável. Persistiu
idêntica a liga mas o peso que era de 4,54 gr. foi descendo para
3,60 gr. a 315 gr., que passou a ser o peso normal do soldo suevo. O
peso inicial era constante nos soldos imperiais. Não se pode entrar
em mais considerações sem saber o peso exacto da moeda em questão».
Fotografia aérea, mostrando a
localização do rasado outeiro da Torre (no círculo), próximo da
igreja matriz de Cacia (x). Também na imagem, o casario da Sarrazola
e um trecho do rio Vouga.
Será, todavia, o soldo com a efígie
de Honório tão grosseiro que justifique a dedução do dr. Sousa
Oliveira? Ele, como nós, não o viu. Limitou-se a apreciá-lo através
de fotografias, para cúmulo muito ampliadas. Seja como for, o
contributo resultante do aparecimento da moeda no processo da Cacia
romana ou, talvez, pós-romana, não pode ser subestimado.
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Ao pegarmos no papel para rabiscar
as linhas de que estas são o termo, quase estivemos tentado –
confessamos – a redigir uma curta e objectiva legenda para as
patenteadas fotos da numisma. É que sobre o desaparecido monte, ou
outeiro da Torre e suas implicações económicas e militares muito há
que averiguar. Referido já lá vão quatrocentos anos e esventrado sem
quaisquer cuidados há uns cinquenta, suscitou uma larga mão-cheia de
hipóteses e até de efabulações. Sem dúvida que avultado número de
documentos se perdeu irremediavelmente. Mas outros ainda existirão,
importando rastreá-los sem demora e estudá-los convenientemente, ou
seja, à luz da Arqueologia – que, óbvio se torna, é uma ciência e
não mero passatempo ou devaneio.
Exceptuando Alberto Souto, que
visitou Cacia no período da exploração da pedreira, salvando algumas
espécies incontroversamente notáveis, os especialistas da matéria
jamais aprenderam o caminho da Torre.
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* *
(Além de textos dos autores citados,
consultaram-se outros de Abel Viana, Amorim Girão, Augusto Soares de
Sousa Baptista, Dulce Alves Souto, João Domingues Arede, Joaquim
Soares de Sousa Baptista, Marques Gomes, Miguel de Oliveira e Rocha
Madahil.)
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