Os difíceis caminhos do sal
O sal é para o homem de Aveiro ou
que na zona da sua Ria criou raízes, guelras ou asas, uma constante.
Vai desde o comezinho agradável do
tacho ou da panela até ao quase irreal das transparências e reflexos
ímpares que motiva nos espelhos de água circundantes.
Mas, para lá chegar, o comezinho e o
quase irreal têm toda uma rota de suor, lágrimas e calos em que o
sal vive na metamorfose do sangue, da pele e da água.
Os saleiros marcam a presença
duplamente branca das velas e do sal... |
Não é o problema económico do
sal que eu vou focar. Para tanto minguavam conhecimentos, e,
felizmente, não me falta – julgo eu – uma clara noção do género
de calçado que o tamanqueiro que em tal matéria sou, poderia
fazer.
O que me leva a abordar o tema é
a saudade, cada vez mais «delicioso pungir de acerbo espinho»
para usar a perfeita síntese de Garrett, a que tirarei o
delicioso dada a vizinhança ou proximidade do tempo em que seja
pungir sem delícia e espinho cada vez mais acerado.
É que antevejo as romagens de
saudade ao templo de luz que toda a Ria é, sem o ver marchetado
de cristais em pirâmide a marcarem, no azul dos céus baixos ou
nos distantes e altos cinzas do Caramulo, do Buçaco ou do
Arestal, aquele contraste que enche os olhos ávidos de reter as
imagens que sabem perder em breve. |
Eu sei que à «iconografia» do sal só falta a sistematização que
pode ser-lhe dada por um profundo
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de grupo a culminar, um dia, numa sala de museu em que figurem,
para além dos repositórios materiais de alfaias e até de «maquettes»
das marinhas, todo esse mundo de reflexos artísticos e humanos
que o cinema, a fotografia, a pintura e a escultura foram
fixando, sem esquecer, como elemento fundamental, o estudo das
afinidades salgadas da água e do suor com os marnotos e moços do
seu moirejar e até – porque não? – aqueles arroubos d'alma
interessada e sensível de quantos se sentiram atraídos –
enfeitiçados, até – por todo esse mundo de luz, tragédia e
angústia, esforço e contrastes que na planura mista da laguna
toma corpo na mais espantosa das núpcias que o trabalho e a
natureza criaram. |
Pernas de infância malacabada... |
É que em parte alguma isso nos surge
como aqui. Em nenhures a paleta do artista-vida-trabalho é tão rica
e se mostra tão naturalmente propícia à criação da beleza sem
desvirtuar o Homem que lhe dá a espantosa verdade do real fantástico
que, só por habitual, nos escapa ao contemplá-lo.
Aqueles esteiros que, como os do
Soeiro Pereira Gomes, se mostram, por vezes, como dedos de mão
espalmada onde também labutam Ginetos e Guedelhas que nunca foram
meninos, são bem o traço de união e fronteira que une e separa a
fita dos cansaços nervosos da bicicleta em busca do lar tantas vezes
distante, dos estreitos e difíceis caminhos de lama onde, canastra à
cabeça e pernas de infância mal acabada, fazem maratonas de esforço
em busca de uma meta que raramente se sabe onde está à espera.
A sugestão de seios túrgidos...
É todo um desafiar de sensações
profundas esse contacto com o salgado da Ria, qualquer que seja a
época do ano em que sobre ele abramos os olhos do corpo com os da
alma e os do pensar.
Nem Inverno é, verdadeiramente, uma
pausa nas imagens em constante mutação por força do Homem em busca
de alianças com a matéria que, usurária, só dá o sal salgado em
troca do salgado do suor. No Inverno a água cobre tudo e o
geométrico xadrez a que uma ou outra estaca marca a irregularidade e
o ousio, mal se nota. Há qualquer coisa de incubação em tudo isso
que escapa aos olhos virgens, mas não foge à atenta expectativa dos
que já sentiram, em cada ano que passou, a beleza corrosiva do sal,
esperança e desespero do seu viver.
E é vê-los, logo que o tempo os
chama para a faina, a preparar a oficina do seu labutar, limpando-a
do moliço com carinhos de dona de casa em seu lar e quase a
encerando, na lama dos rectângulos planos,
/ 43 / depois de lhes abrir a
água, ainda suja e negra, que toma contornos fantasmagóricos dignos
de atrevido pintor.
É curiosa essa fase de preparação
das marinhas.
Talvez seja aquela em que todo o
esforço é esperança e tudo parece sorrir nela ainda que ausentes
sejam os cristais que o pagarão.
O sal salgado em troca do salgado do suor...
É quase sempre o trabalhador mais
velho do salgado o que alinha os sonhos do inverno ao ver retirar o
que cobre as linhas direitas do seu xadrez, antes do sal começar a
nascer, como que a medo, em espumas a que o sol dá brilho e reflexos
de beleza sem par.
Se o Norte ajuda e o Sol é amigo,
ei-Ios açodados no bailado do arrastar dos cristais até à canastra
do moço e depois, por esforço deste, até ao crescer alegre dos cones
a marcar volumes na planura mista.
E, quando o ano vai de feição, é
curioso ver como a cordilheira se forma e altera as perspectivas.
Não raro surge, na vizinhança casual de dois montes, a
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túrgidos de sempre renovada virgem que cada ano deixa de o ser para
o ser de novo a causar inveja àquelas que tendo deixado de o ser de
uma vez, se o foram, não o voltarão a ser!
O monte de sal destapado ou coberto,
completo ou incompleto é um manancial inesgotável de sensações
estéticas.
Basta que o céu mude de tom ou as
nuvens resolvam brincar fazendo pano de fundo variável, para que o
espectáculo se renove e nos prenda, mais e mais, os nossos olhos.
E mesmo depois, quando os frios do
Outono começam a apontar as próximas matanças e a lembrança dos
«Malhadinhas» de antanho impõe que o sal saia do seu lar e vá, por
aí acima, cumprir o seu dever gostoso, mesmo então, o salgado tem
beleza e surge, saudoso do branco e do brilhante mas enfeitiçado no
gretado das lamas secas com aspectos irreais de criação fantástica.
Se é certo que os prosaicos taipais
da caminheta ou do vagão não fazem esquecer, antes pelo contrário, o
dorso dos burricos e o choutar dos almocreves do passado em busca
das Beiras amigas de para além das serras, também o é que os
saleiros marcam, ainda embora raramente, na pista ventosa da Ria, a
presença duplamente branca das velas e do sal. E do alto da ponte da
Varela vale a pena ver, em dia de nortada, as proas altaneiras a
dizer à concha das velas que sabem a rota do seu destino.
*
Mas... penso agora, não estarei eu a
viver, cedo demais, a saudade de um ressuscitar de sensações? Cedo
demais? Mas que tempo terei eu ainda?
É melhor aproveitar!
Junho de 1976
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