Falar de Mário Sacramento é, no
essencial, falar da luta contra a opressão, a ignorância, a
miséria, enfim, falar da luta contra as formas fascizantes de
organização sócio-económica. Esquecer este propósito é já
atraiçoarmo-nos, atraiçoando a vida de quem nessa luta encontrou
o significado profundo da sua vida. Foram dezenas de anos de um
combate desigual em que à dádiva e à inteligência se opunham a
violência e a arbitrariedade. Nunca se quedou às injustiças de
que foi vítima (histórias longas por contar!), pelo contrário,
era aí que a sua ironia melhor se exercitava num exemplo de
preciosa disciplina mental. Como ele muitos outros, no exílio ou
nas prisões, humilhados nos mais ínfimos pormenores do
quotidiano, eram já o futuro do nosso presente. Morreu cedo mas
«a História é um que fazer incessante, e nunca ninguém
viu ou verá tudo aquilo por que se bateu ou luta, pois algo fica
sempre a meio caminho.»
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MÁRIO SACRAMENTO
Xilogravura de M. Cabanas |
Mário Sacramento nasceu em Ílhavo e
por Aveiro se ficou no exercício da sua clínica. Conhecia o distrito
como ninguém (espantem-se certos bairristas!), calcorreando-o, num
empenho total de incentivo de organização, de combate. Poderia ter
abandonado a geografia que lhe era natal, poderia ter diluído a sua
actividade revolucionária em nome de qualquer pretexto conciliatório
– não o fez. A razão daquilo porque lutava não era apenas sua,
sabia-o, era, é património de milhões de homens numa fraternidade
comum.
Homem de diálogo, Mário Sacramento
foi pedagogo discreto mas persistente. Muitos foram os que
aprenderam, na sua voz pausada e atenta, as certezas do porvir.
Nunca desdenhou a palavra ao mais humilde, numa alegria de fazer
crescer, em cada um de nós, a alegria adivinhada da libertação». Os
católicos, os de boa-vontade, tiveram em Mário Sacramento um
interlocutor sem afectação, sem mesquinhez, cujo único intuito era o
de nos encontrarmos na realidade real do nosso drama. Que ninguém
duvide do respeito com que os outros se lhe impunham na diversidade
das suas crenças! A pedagogia era isso para Mário Sacramento – um
diálogo sem fronteiras, ritmo esforçado e leal de convergência.
Em Mário Sacramento, a palavra e o
gesto, a teoria e a prática, aliavam-se numa identidade absoluta,
fazendo de si um símbolo de coerência sempre grato de relembrar. O
seu humanismo não era um exercício de retórica, transparecia nos
aspectos mais simples da sua
/ 34 / vida. Médico de
província desprendido de uma medicina de privilegiados para
privilegiados, cidadão ilustre apostado no convívio com quem pouco
lhe podia ensinar, escritor de «domingos e serões» torneando os
silêncios vis da repressão, Mário Sacramento é já a procura esboçada
de um «novo homem».
Neste caminhar para um «mundo
melhor», a memória dos que nos precederam só pode ser um incentivo
de lucidez e entusiasmo. Talvez por isso as palavras modestas, que
poderemos alinhavar sobre Mário Sacramento, são também, afinal, um
pretexto para falar de um tema que tão grato lhe foi e que mantém,
hoje, uma actualidade exemplar. A defesa da unidade de todos os
antifascistas, da unidade de todos os que lutam por uma sociedade
mais progressiva e justa, foi uma tarefa a que se devotou, com
paixão, Mário Sacramento. Sabem bem aqueles que com ele
compartilharam amplas actividades antifascistas, ainda que de
sectores ideológicos diferentes, que a unidade não era para Mário
Sacramento, nem para os que como ele pensam, um objectivo táctico,
uma manobra fácil de iludir companheiros de jornada. Ontem como
hoje, as razões que fundamentam uma unidade de todas as forças
progressistas continuam as mesmas. Só o imediatismo revolucionário,
a estreiteza mental ou a vocação hegemónica, vícios que Mário
Sacramento combateu com tenacidade, podem obstar a que prossigamos,
em comum, os objectivos comuns e essenciais.
Finalizemos: Mário Sacramento foi um
exemplo de persuasão revolucionária – lisura de trato, dignidade de
atitudes, saber de modéstia, rigidez de dedicação. Provam-no,
instante a instante, pelo exemplo, os que hoje continuam o seu
testemunho.
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(1)
– Do discurso proferido no teatro Aveirense, em 31-1-1969. |