O problema
central do neo-realismo, ou melhor, o que de novo traz à questão
estética é o método. O problema central do neo-realismo é o problema
do método. E, desde logo, o método de análise e interpretação
histórica, o método que analisa a presença do homem no mundo, a sua
capacidade de o transformar, a sua capacidade de reflectir a luta
entre eles pela distribuição de bens, o método que analisa os meios
de troca e os situa, o método que reflecte, estimula e analisa, em
suma, a luta de classes.
O que de facto o neo-realismo traz
de novo à arte é a luta de classes. A arte é uma importante arma da
luta de classes. «Et voilà» a razão porque as classes dominantes
veiculam a arte como seu instrumento, como templo sagrado das suas
ideias políticas, morais e sociais.
Não é porém a arte quem move as
pedras angulares do devir histórico, porque é uma super-estrutura,
cuja base assenta num determinado modo de produção que a origina e
desenvolve. É por isso que a arte, em cada época histórica, serve a
um tempo os valores dominantes, e servindo-os ultrapassa-os e
ultrapassa-se. A arte burguesa, por exemplo, desenvolvendo-se sobre
o modo de produção capitalista, pretende justificar a propriedade
privada e alienar as lutas que procuram apressar o seu declínio
inevitável. Outra não é a razão porque, para combater, por exemplo,
o nosso neo-realismo, nos aparecem os «slogans» de «arte pela arte»,
«arte pura» ou «arte descomprometida» e outros mais ou menos
acrobáticos, segundo a cor que o camaleão capitalista veste.
O que, portanto, de algum modo,
distingue o escritor neo-realista do escritor burguês é o seu
compromisso com a história, o seu que-fazer no mundo, a sua presença
na dialéctica da transformação.
Enquanto a poesia, o romance, a
pintura, a música, a escultura ou a cerâmica realistas são a arte do
nós, a arte burguesa é o extremo individualismo, é a muralha
de altos muros fechados à realidade, à social, a estéril repetição
de experiências pessoais, a ficção mórbida do fantástico, a recusa
dos novos e permanentes enriquecimentos científicos, o eu fechado em
mim, o eu para cá da vida, o eu, o eu, o eu.
O neo-realismo português é assim um
movimento eminentemente ideológico e estético, que nos aparece
encravado entre a segunda guerra imperialista, a Guerra Civil de
Espanha, e o avanço do nazi-fascismo na Europa e no mundo; e
reflecte ao nível estético o processo de ruptura entre as forças,
mascaradas ou não, que pretendiam – e adiaram – a salvação do
capitalismo e aqueloutras que, alinhando na consabida táctica do
franquismo, procuravam as vias para uma democracia do tipo popular e
socialista.
E, é assim que os iluminados
feiticeiros da criação ficam divididos em dois grupos, como aliás
Mário Dionísio afirma na Vértice, em 1948, vol. VII, a págs.
174:
«Sei bem que é difícil e traiçoeira
esta distinção. Mas olhando o panorama geral dos nossos
ficcionistas, não vejo remédio, tecnicamente falando, senão
encará-los com mais ou menos precisão, divididos em dois grupos: o
dos que põem acima de tudo o lado estético, para não dizer formal da
sua obra; e os que põem acima de tudo a própria estrutura ideológica
dela.»
E aliás, a mero título comparativo,
citemos a opinião de Régio na Seara Nova n.º 619 de 1934:
«A incultura em Portugal ainda torna
em Portugal tudo isto mais grosso... não admito que me
encafuem carapuças, ainda que mais pequenas que a minha cabeça
(refere-se a um artigo que Álvaro Cunhal publicou na Seara n.º 615
e, posteriormente transcrito no Diabo, onde atacava o
individualismo, umbicalismo na fraseologia de Cunhal de
Régio, a propósito das Cartas Intemporais deste), sobre o
muito relativo interesse que lhe mereceu a literatura, a arte e a
crítica. Mas então,
/ 36 / porque hão-de esses
homens falar, quase exclusivamente, de literatura de crítica? Porque
não hão-de ocupar-se directamente dos problemas que em primeiro
lugar lhes interessam? Porque hão-de contribuir para a incultura
geral persistindo em confundir tudo?»
E contrastando, ouçamos a voz de
gigante de Joaquim Namorado em Vértice, vol. I, a págs. 56:
«Diferentes têm sido as reacções
perante o constante aparecimento de obras de novos autores: gritam
uns (certamente os mesmos que anteriormente lamentavam o não
aparecimento de novos autores) que se assiste a uma invasão do país
das «letras» – esse sagrado templo onde vegetavam os eleitos – e
tratam como intrusos os jovens que se atrevem a apresentar-se sem
cartão de visita, como em terreno conquistado; gemem outros pela
falta de espiritualidade dos novos artistas, a quem acusam de
ausência de nefelibatismo, de maquilhagem que fez o sucesso de
certos talentos pelo seu exotismo».
O neo-realismo é fruto e o reflexo
comprometido da discussão mais vasta que na Europa, ao nível da pena
e da arma, travaram materialistas e idealistas. Enquanto alguns
escritores importavam Nizan, descobriam Luckas e contemplavam à
socapa Marx e Lenine, organizando simultaneamente a resistência ao
fascismo em Portugal e procurando ainda a solidariedade com os
republicanos espanhóis, primeiro, e com as resistências francesa e
italiana, depois, outros, como por exemplo o próprio Régio, um dos
grandes cavaleiros andantes da arte pela arte, escrevia no seu
Cântico Negro:
«Criar desumanidade,
Não acompanhar ninguém».
Assis Esperança, Mário Sacramento,
Dr. Dulcídio Alegria, Ferreira de Castro, Álvaro Salema e João
Sarabando, convivas de um almoço íntimo comemorativo dos 50 anos
de vida literária de Ferreira de Castro. Na Pensão Suíça, em Vale de
Cambra.
Daí que seja compreensível que
muitos dos que construíram ou intervieram na construção do
neo-realismo em Portugal tivessem associado uma indesmentível
militância política a uma militância estética. E só para citar de
memória lembremos: Soeiro Pereira Gomes, Joaquim Namorado, Alves
Redol, Afonso Ribeiro, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, Álvaro
CunhaI e muitos outros.
Finalmente, para situarmos, em
resenha mais do que sumária, o aparecimento do neo-realismo,
dir-se-á que após o surto de ficção naturalista, que atingiu em Eça
e Teixeira, os seus mais vivos e coerentes símbolos, encontramos uma
fase nebulosa em que o movimento desaparece com dinâmica e encontra
representantes que nada de novo traziam, caindo no formalismo, no
/ 37 / tradicionalismo, no
chauvinismo; e alguns, até, buscando a literatura erótica apenas
como masturbação, caem na pornografia, e temos Abel Botelho, Carlos
Malheiro Dias, Antero de Figueiredo, Alfredo Gális, Sousa Costa e
outros.
Com Fialho de Almeida, ainda que
partindo de uma base naturalista, anuncia-se o surto subjectivista,
que se aprofundaria em Raul Brandão e se colectivizaria na expressão
mais moderna e teorizada do movimento futurista de Régio, João
Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca, Almada Negreiros e alguns
mais.
A literatura conhece depois, e que
saibamos só em Portugal tal aconteceu, um período já de inquietação
colectiva, normalmente bem intencionado, mas muito retórico,
demagógico, medíocre e quase sempre místico e utópico, como acontece
nos romances de Manuel Ribeiro e Nuno de Montemor. Neste período
justo é destacar-se a obra enorme de excepção e exemplo que foi a de
Ferreira de Castro, que apenas cronologicamente diz respeito a tal
período, mas que se eleva muito acima dele, pela coerência, pela
temática e até pela forma.
E quando em 39 Redol publica
Gaibéus, havia já um movimento humanista amadurecido, que se
traduzia em críticos, ensaístas, poetas e romancistas em busca de
expressão própria, é certo, mas já profundamente consciente da sua
posição no mundo e interveniente nos momentos próprios da sua
transformação e que foram desfazendo, na prática, as acusações de
esquematismo ideológico que era (e é costume) dirigir-se ao
neo-realismo.
MÁRIO SACRAMENTO
Mário Sacramento não é um criador do
neo-realismo. Nesta fase a sua única contribuição ao nível da
imprensa oficial do neo-realismo é um pequeno conto – «Pigmaleão»,
publicado no Sol Nascente de 39. A contribuição de Sacramento
é ao nível do ensaio, é a da reflexão histórica sobre a expressão de
acontecimentos que sentiu na carne – «Caloiro de Medicina, eu fora
transitoriamente para Coimbra, pouco depois de passar por uma
experiência crucial que me obrigava a montar em pêlo, aos 17 anos, o
que outros só conheceriam a vida inteira por ouvir dizer.
(1)». É aliás o
próprio Sacramento quem aceitando justifica o seu relativo pequeno
papel de criador ao nível da experiência neo-realista:
«Se preferi vivê-los a escrevê-los
por vezes, tem isso uma significação: a que obrigou o ensaísmo a
transpor para o acto que modela a palavra que conduz ou interpreta».
Só já relativamente tarde, com
alguns artigos em «O Diabo», começa a gastar a «sua primeira
dentição intelectual», dentro do campo do realismo científico. E só
depois da segunda grande guerra imperialista, ou próximo do seu
terminus Sacramento aparece verdadeiramente empenhado na polémica
entre realistas e naturalistas.
E talvez por estar empenhado nos
acontecimentos que motivaram o neo-realismo, ou pelo menos lhe deram
o conteúdo de movimento de resistência – que o foi sem dúvida – mas
não estando directamente empenhado na sua organicidade intrínseca
Mário Sacramento escreve:
«Surgiu assim uma dialéctica interna
à geração de 40 (...). Menos sensíveis às exigências da literatura
e, até, à compreensão dela, apressaram-se alguns a reduzir a
complexidade da questão a esquemas demagógicos que, evidentemente,
tinham larga audiência, pois sempre foi ambição comum dos homens
dormir sobre a facilidade. António Sérgio punha objecções? Era um
bluff. José Régio tinha um pendor místico? Instituía-se-lhe o umbigo
em pelourinho público. João Gaspar Simões continuava agarrado aos
cânones psicológicos em arte? Era um formalista. Quem hoje percorra
essas páginas de doutrina e não tenha vivido a época, dificilmente
compreenderá o mal necessário que houve nelas. A expressão das
ideias fazia-se como podia e não como se queria (...)»
(2).
E mais tarde:
«O neo-realismo foi colhido, ou
tolhido, com efeito, por uma adversidade a que não conseguiu
eximir-se: a de a literatura ser a única expressão viável de
aspectos da vida social que, noutras circunstâncias, teriam cabido
ao jornalismo, à política e ao livro doutrinário»
(3).
E assim põe Sacramento um problema
fundamental: o da recusa de uma perspectiva tão-só pragmática sobre
o neo-realismo. E assim exprime uma preocupação que em algumas
alturas se tornou realidade: a de se não compreender o neo-realismo
como método dialéctico aplicado à arte. E isto porque o materialismo
não é uma mera soma de dogmas, nem a actual fase (qualquer que ela
seja) de desenvolvimento socio-político se explica por uma
abstracção morta, como dogma estéril ou como profissão de fé.
O materialismo dialéctico é um
método de investigação, mas ficaria ou ficará incompreensível com
raciocínios metodológicos que não procurem aplicar o método justo ao
estudo da realidade, ou melhor, que não procurem a solução
concreta para cada problema concreto, como muito bem concluía
Lenine. E não haja dúvida de que o neo-realismo português correu
efectivamente esse risco, quando sobrevalorizou o aspecto meramente
ideológico, independentemente do fenómeno estético, como se um e
outro não fossem incindíveis.
/ 38 /
O outro problema fundamental que a
obra de Mário Sacramento põe é este: a oposição da literatura de 50
à de 40, ou melhor, o problema dos dois neo-realismos.
Certo é que a década de 50 retoma o
predomínio dos valores subjectivos, o que aliás tinha acontecido
durante o modernismo, subjectivismo ora radicado na radical
solidão do homem, na estratificação do poeta e do romancista
perante o que faz ou o que cria, num certo sentido contemplativo não
perante a realidade mas antes perante a obra. E o problema que o
segundo neo-realismo poderá pôr é esse retorno ao intimismo.
Intimismo que foi sempre apanágio do neo-realismo, como o próprio
Sacramento afirma:
«É porque pressupõe uma filosofia de
opção monista e materialista que o neo-realismo existe. E é porque
dentro dela cabem todas as manifestações do existente e do
subjectivo que o neo-realismo pôde ser, desde sempre, intimista,
embora só recentemente o seja em mais largo âmbito»
(4).
Mas, o que basicamente diferencia o
primeiro do segundo neo-realismo é o primeiro ter tido o acento
tónico no aspecto ideológico e o segundo no sentido
filosófico-estético. E é exactamente aqui que Sacramento acerta no
vinte, como soe dizer-se. É que a geração de 40, antes de poder
contemplar o mundo ou recriá-lo ou dele participar, tem que o
combater, seja na Guerra de libertação de Espanha, seja na 2.ª
Grande Guerra, seja para deter o imperialismo financeiro que começa
a abrir sobre o terceiro mundo (Portugal incluído) a sua gula
assassina, seja para combater os regimes militaristas que o
imperialismo vinha opondo às pequenas mas sucessivas vitórias do
movimento operário internacional, seja tão somente para controlar as
sequelas que o republicanismo entre nós havia deixado. Pelo
contrário, são bem outras as motivações da geração de 50, que
assiste ao grande gelo da guerra fria, à ameaça eminente de uma
guerra atómica, à formação da Nato e do Pacto de Varsóvia, às
guerras imperialistas da Indochina e da Coreia, ao cimento
multinacional do muro de Berlim, à consolidação ameaçadora das
sociais-democracias na Europa, onde o movimento operário mais do que
cansado se sentira frustrado.
Mário Sacramento compreendeu isto
como poucos, sem todavia nunca perder de vista que o problema da
literatura de 40 e a de 50 não havia sequer oposição mas apenas,
consequências de sucessivos contributos científicos, divergência de
expressão ou de aprofundamento temático.
Daí que Sacramento escreva:
(«Entre opor a literatura de 50-60 à
de 30-40 ou encadear entre elas um processo de interferência e
evolução para o qual as designações distintivas nada têm, nem podem
ter de axiológico, eu prefiro o segundo ponto de vista, mas
recordando isto: por detrás de uma literatura há sempre uma
ideologia. A neo-realista não só não se extinguiu ainda, como é
hoje mais forte e rica do que em 40. Pelo que haverá tantos
neo-realismos literários, explícitos ou implícitos, quantas as fases
ou momentos em que ela incida. A sua persistência e presença terá de
ser repercutida, qualquer que seja a matriz da linguagem literária
usada ou os escopos a que se vote»
(5).
E assim Sacramento explica
claramente que o segundo neo-realismo não põe em causa o método de
análise e interpretação histórica, que tinha guiado e orientado o
primeiro, mas não sectariamente reconhece que o factum
objectivo a que se dirige e explica é outro, porque a arte não é nem
a explicação sociológica por parte do indivíduo, de uma elite ou
sequer de uma geração mas a explicação do homem (elemento
subjectivo) de uma realidade concreta e fáctica (elemento objectivo)
componentes que se interligam e aliam no devir histórico. Não pode a
arte caminhar longe do homem que constrói e transforma a realidade
que retrata; não pode o homem isolar-se da arte porque ela é o seu
produto mais acabado e que retratando a realidade por ele trabalhada
a ele próprio o retrata.
Falamos hoje de Mário Sacramento. E
falar dele devia ser falar de uma época de crítica literária neste
País. Mas devia ser também falar da resistência organizada, da
militância contínua, da conquista sem desfalecimentos da unidade
possível, até ao nível literário, mas sobretudo ao nível político.
Falar de Mário Sacramento é falar no
intelectual de província (o anti-provinciano como Mário Castrim em
expressão feliz o epitetou) que entendia que era pelos pequenos
jornais, pelas pequenas revistas, pelos pequenos exemplos urbanos de
todos os dias, pela paciência só contida no estoicismo que se
começavam a ganhar as primeiras batalhas da guerra de libertação.
Falar de Mário Sacramento era
contar-te uma história, leitor:
Era uma vez uma Câmara de Aveiro que
entendia que Mário Sacramento não tinha direito a busto nem a nome
de rua, porque por Aveiro nada tinha feito... Coisas da outra
senhora. Que convém... recordar!
_______________________________
NOTAS:
(1) – Mário Sacramento, in
«Fernando Namora – O homem e a obra», in prefácio.
(2)
–
Mário Sacramento, in «Fernando Namora», pág. 9.
(3)
–
Mário Sacramento, in «Há uma estética do neo-realismo?», pág. 30 e
segs.
(4)
–
Mário Sacramento, in «Fernando Namora». pág. 146.
(5) – Ibidem, pág. 139. |