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N.º 20

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1975 

Mário Sacramento entre a evolução e a crítica

Por José Manuel Mendes

«Todas as batalhas da História destroem e reconstroem o homem. O mesmo homem? – o devir do homem.»

MÁRIO SACRAMENTO in «Ensaios de Domingo»

 

Aconteceu-me reler Mário Sacramento nas breves pousas da acção quotidiana que Abril mais prementemente estimulou. De algum modo, portanto, à luz destes momentos febris, as nossas mãos agarrando o futuro, projecção de esperança dia após dia adubada com o húmus do concreto, com a alegria da caminhada solidária, também com a lama da traição, com a vontade de aço rasgando clareiras. E aconteceu-me sentir o Mário Sacramento a nosso lado, a mim, que mal o conheci em pessoa, reflectindo e agitando estas horas com a serenidade e a argúcia que sempre matizaram a sua trajectória de combatente.

Penso no homem que promoveu e deu corpo aos dois primeiros Congressos em Aveiro, realizados sob um impulso de unidade democrática contra os gorilocratas do Terreiro do Paço, dinamizo a memória sobre os acidentes dessas pugnas, a importância que tiveram para um concerto de atitudes, para uma afirmação de presença legal, para que se soubesse que havia, nos subterrâneos do tempo e do espaço portugueses, quem erguesse o seu brado pelo futuro, anatematizando a opressão, a exploração, a miséria da povo.

Penso em Aveiro, que uma tradição liberal – logo, conservadora – fizera palco destas arrítmicas e sofridas manifestações de cidadania, das múltiplas vicissitudes dum processo plural e vejo, inscritas entre os nossos passos, em 73, quando a polícia fascista matraqueava democratas em romagem à campa de Sacramento, os próprios passos do grande companheiro que partira ficando em cada um de nós.

E isto porque nos recusávamos a considerá-lo morto. «Um democrata não morre, no sentido inerte da palavra: quando sucumbe, transmite o facto – e perdura nele.» (1)

Hoje, nesta hora marcada de euforia e amargura, apunhalados que temos sido, pelas costas, por tantos dos que fizeram connosco, em ocasiões de menor risco, as jornadas do passado, distante ou recente, mais a personalidade exímia de Mário Sacramento se nos impõe, como um marco de fidelidade, como um repto instante à inteligência política perante cada acto, como um infatigável esforço de dessectarização. Assim saibamos construir, neste País, subjugado agora pelos novos mandarins do imperialismo, a sociedade liberta da exploração, onde democracia e socialismo se consubstanciem para a conquista da mais veraz liberdade do homem.

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MÁRIO SACRAMENTO – Entre a evolução e a crítica.

Falei do Mário Sacramento enquanto político. Porque me aconteceu relê-lo, como escritor, nas sincopadas pousas da luta que Abril acelerou. Mas era do homem de letras que eu queria falar. Do escritor traído por esse duro struggle for life que teve de enraizar no trabalho médico quotidiano. Um trabalho para o qual confessava não sentir vocação. Mas que, ainda assim, como o acentuou Fernando Namora, «zelou com honesta proficiência», dele fazendo «um instrumento de fraternidade.»

Mais de metade da obra que produziu está ainda por publicar em livro. E já tarda que vá começando a sair. O que, no entanto, deixou é bastante para denunciar o vigor dum pensamento, a riqueza duma cultura, a agudeza duma inteligência, a finura, a sensibilidade, o nervo, a qualidade analítica que o guindam ao mais alto gabarito do nosso tempo.

Crítica e ensaísta do neo-realismo português, nem sempre as suas posições são indiscutíveis. Por um lato, o modelo didacticizante do estabelecimento de «tantos neo-realismos literários, explícitos ou implícitos, quantas as fases ou momentos em que ela [a ideologia neo-realista] incida» parece menosprezar o traço duma evolução dialéctica, qualitativa e quantitativa, que, determinando novos tipos de objecto e novos ângulos de abordagem, não etapiza diferentes unidades contradistinguindo-se, antes a une num mesmo desiderato essencial e num mesmo projecto geral de transformação.

Por outra lado, a crítica, extremamente acre, que / 31 / dirige àquilo que designou por «neopositivismo» abastardando o materialismo dialéctico, e por um certo humanismo lamecha em lugar do materialismo histórico, nos escritores neo-realistas, empenhados no levantamento da problemática do nosso proletariado rural, surge-me mais como um acicate ao estudo teórico do marxismo-leninismo, em que várias autores se revelavam frágeis, do que como um libelo implacável articulado contra os seus camaradas de geração, partícipes da mesma viagem do possível, olhos postos nas grandes conquistas do devir. Com efeito, se há lugar para falar de uma literatura dominada pelos quadrantes neopositivistas, dum humanismo sentimental, os prosadores e poetas a inventariar encontrar-se-iam, a meu ver, nos sub-produtos, naqueles que, em todas as épocas, se servem, por oportunismo, do que está na voga e que, destarte, quando e se tomados em consideração excessiva, podem dar a imagem mais deformadora duma realização.

Mário Sacramento sabia-o. Por isso, nas longas reflexões contidas no notável estudo à obra de Namora (2), notável e discutível em algumas das teses por que se bate, se podem ler estas palavras judiciosas: «...a ideologia funcionou, no primeiro neo-realismo (3) como um ex machina, excepção feita, está clara, das obras que conseguiram ultrapassar isso e são, como é óbvio, as que perduram.»

Como aquele fascínio pela teorização das questões, que o levou, não raro, a produzir o seu exercício crítico em zonas de maior profundidade ideo-sensível e estética, escreveu o opúsculo «Há uma estética neo-realista? (4), uma das suas obras maiores pela riqueza da análise, das pistas que fornece, e pelo rigor metodológico. Aqui, o estudo sobre a problemática realista, que ascendera, novamente, ao primeiro plano das discussões, revela o militantismo humanista do autor, que, sem ambiguidade, defende uma arte operante e transformadora, assente numa consciência dialéctica e materialista, tal como o largo espectro das suas preocupações formais.

Mas não só a literatura neo-realista o mobilizou, conquanto dê matéria para muitos dos seus melhores Ensaios de Domingo.

Também Eça de Queirós, sobre quem, ainda estudante de Medicina, escreveu uma peça fundamental – «Eça de Queirós – uma estética da ironia» (5) –, que nos dá a conhecer a origem dum realismo estilístico e duma concepção de vida elaboradas em termos duma ironia espacio-temporalmente circunscrita. Trata-se de um ensaio polémico mas duma firme ossatura analítica, se bem que relativizando excessivamente os textos mais maduros do autor de «Os Maias», um ensaio de inestimável apreço para um cabal conhecimento dos pressupostos genéricos da obra do grande romancista.

E deixei para o fim, para uma rápida anotação, um dos livros mais vivamente contestados de M. Sacramento: «Fernando Pessoa – poeta da hora absurda» (6).

Escrito em 1953, em Caxias, o texto reage à atmosfera histórico-literária que se vivia no Portugal de então: o culto deificador de Pessoa. Não estranha, pais, / 32 / que a generalidade dos autores tenha, mais ou menos brandamente, esconjurado as teses que Sacramento construiu. Partindo da caracterização da mentalidade pequeno-burguesa dos anos que decorrem entre 1910 e 1930, e do que lhe é oposto, por Pessoa, no sentido de vergastar o ideário democrático-burguês que degenerara no idealismo, no jacobinismo, na paladinagem reaccionária em favor dum certo tipo de pax ruris. Mário Sacramento conclui, de modo irreticente, pela índole não apenas anti-humanista e irracionalista das posições do poeta da «Mensagem», como, sobretudo, pela marca proto-fascista do seu pensamento e de vários dos seus escritos. A prová-lo, a integração na ideologia nacional fascista da sua obra, do nevoeiro sebástico e da estirpe imperialista que ela claramente incorpora (7).

Adiro amplamente às propostas críticas de Sacramento, até pela justeza e serenidade com que sempre considerou a qualidade formal e estética do conhecido poeta do modernismo. Adiro por uma outra razão ainda: a importância desmitificante dum trabalho que, actuando sobre a circunstância portuguesa duma época de guerras mornas e frias, bradou um alerta contra os perigos duma utilização mecanicista, acrítica, anti-dialéctica dos textos de Pessoa. E, tanto quanto creio, tal objectivo, mal grado as múltiplas diatribes contra o estudo de Mário Sacramento, foi atingido.

Mário Sacramento. Um nome cimeiro da nossa cidade intelectual. Um homem. Recordá-lo, mesmo que sem a demorada atenção que merece, nestes dias que em Abril nasceram, é retrazer ao nosso campo de batalha, à nossa caminhada, o companheiro exemplar cuja voz, com a ternura do Amigo que nos acompanha na borrasca, com a força e determinação dos momentos iluminados, nos empurra para diante, para a primeira distância dos gestos, para a vitória final do proletariado «FAÇAM UM MUNDO MELHOR, OUVIRAM? NÃO ME OBRIGUEM A VOLTAR CÁ!» (8).

Fá-lo-emos. Mesmo quando a traição desceu à praça, se vestiu de garridas cores, reabilitou velhos espantalhos e tenta degolar o pássaro que canta no abrir das nossas madrugadas. Fá-lo-emos, Companheiro. Porque não apenas «há milhões de mortos a dizer-nos: avante!» (8), mas milhões de vivos multiplicando-os, mãos abertas, como uma parábola de esperança-certeza, como um canto nascido dos abismos da vontade, para a conquista inevitável do sol.

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(1) – Mário Sacramento, ln «Discurso no 46.º aniversário da República».

(2) – Mário Sacramento, «Fernando Namora – a obra e o homem», Arcádia, Lisboa, 1967.

(3) – Aqui transparece a tese dos dois (ou mais) neo-realismos que, no texto, sumariamente refuto.

(4) – Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1968.

(5) – Coimbra Editora, 1945.

(6) – 2.ª edição, Inova, Porto, 1970.

(7) – Fernando Luso Soares, no seu «Literatura, dialéctica, estrutura», Cronos, Lisboa, 1971, inclui um importante trabalho («Ensaio crítico de um ensaio sociológico de Fernando Pessoa») em que apresenta teses concorrentes, embora sobre escopos de certo modo diferenciados, com as de Mário Sacramento, autor que, no entanto, parece não ter sido considerado para a elaboração do texto.

(8) – Mário Sacramento, in «Carta-Testamento», Inova, Porto, 1973.

 

páginas 30 a 32

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