«Todas as batalhas da História
destroem e reconstroem o homem. O mesmo homem? – o devir do homem.»
MÁRIO SACRAMENTO in «Ensaios de
Domingo»
Aconteceu-me reler Mário Sacramento
nas breves pousas da acção quotidiana que Abril mais prementemente
estimulou. De algum modo, portanto, à luz destes momentos febris, as
nossas mãos agarrando o futuro, projecção de esperança dia após dia
adubada com o húmus do concreto, com a alegria da caminhada
solidária, também com a lama da traição, com a vontade de aço
rasgando clareiras. E aconteceu-me sentir o Mário Sacramento a nosso
lado, a mim, que mal o conheci em pessoa, reflectindo e agitando
estas horas com a serenidade e a argúcia que sempre matizaram a sua
trajectória de combatente.
Penso no homem que promoveu e deu
corpo aos dois primeiros Congressos em Aveiro, realizados sob um
impulso de unidade democrática contra os gorilocratas do Terreiro do
Paço, dinamizo a memória sobre os acidentes dessas pugnas, a
importância que tiveram para um concerto de atitudes, para uma
afirmação de presença legal, para que se soubesse que havia, nos
subterrâneos do tempo e do espaço portugueses, quem erguesse o seu
brado pelo futuro, anatematizando a opressão, a exploração, a
miséria da povo.
Penso em Aveiro, que uma tradição
liberal – logo, conservadora – fizera palco destas arrítmicas e
sofridas manifestações de cidadania, das múltiplas vicissitudes dum
processo plural e vejo, inscritas entre os nossos passos, em 73,
quando a polícia fascista matraqueava democratas em romagem à campa
de Sacramento, os próprios passos do grande companheiro que partira
ficando em cada um de nós.
E isto porque nos recusávamos a
considerá-lo morto. «Um democrata não morre, no sentido
inerte da palavra: quando sucumbe, transmite o facto – e perdura
nele.» (1)
Hoje, nesta hora marcada de euforia
e amargura, apunhalados que temos sido, pelas costas, por tantos dos
que fizeram connosco, em ocasiões de menor risco, as jornadas do
passado, distante ou recente, mais a personalidade exímia de Mário
Sacramento se nos impõe, como um marco de fidelidade, como um repto
instante à inteligência política perante cada acto, como um
infatigável esforço de dessectarização. Assim saibamos construir,
neste País, subjugado agora pelos novos mandarins do imperialismo, a
sociedade liberta da exploração, onde democracia e socialismo se
consubstanciem para a conquista da mais veraz liberdade do homem.
MÁRIO SACRAMENTO – Entre a evolução e a
crítica.
Falei do Mário Sacramento enquanto
político. Porque me aconteceu relê-lo, como escritor, nas sincopadas
pousas da luta que Abril acelerou. Mas era do homem de letras que eu
queria falar. Do escritor traído por esse duro struggle for life
que teve de enraizar no trabalho médico quotidiano. Um trabalho para
o qual confessava não sentir vocação. Mas que, ainda assim, como o
acentuou Fernando Namora, «zelou com honesta proficiência», dele
fazendo «um instrumento de fraternidade.»
Mais de metade da obra que produziu
está ainda por publicar em livro. E já tarda que vá começando a
sair. O que, no entanto, deixou é bastante para denunciar o vigor
dum pensamento, a riqueza duma cultura, a agudeza duma inteligência,
a finura, a sensibilidade, o nervo, a qualidade analítica que o
guindam ao mais alto gabarito do nosso tempo.
Crítica e ensaísta do neo-realismo
português, nem sempre as suas posições são indiscutíveis. Por um
lato, o modelo didacticizante do estabelecimento de «tantos
neo-realismos literários, explícitos ou implícitos, quantas as fases
ou momentos em que ela [a ideologia neo-realista] incida» parece
menosprezar o traço duma evolução dialéctica, qualitativa e
quantitativa, que, determinando novos tipos de objecto e novos
ângulos de abordagem, não etapiza diferentes unidades
contradistinguindo-se, antes a une num mesmo desiderato essencial e
num mesmo projecto geral de transformação.
Por outra lado, a crítica,
extremamente acre, que
/ 31 / dirige àquilo que
designou por «neopositivismo» abastardando o materialismo
dialéctico, e por um certo humanismo lamecha em lugar do
materialismo histórico, nos escritores neo-realistas, empenhados no
levantamento da problemática do nosso proletariado rural, surge-me
mais como um acicate ao estudo teórico do marxismo-leninismo, em que
várias autores se revelavam frágeis, do que como um libelo
implacável articulado contra os seus camaradas de geração,
partícipes da mesma viagem do possível, olhos postos nas grandes
conquistas do devir. Com efeito, se há lugar para falar de uma
literatura dominada pelos quadrantes neopositivistas, dum humanismo
sentimental, os prosadores e poetas a inventariar encontrar-se-iam,
a meu ver, nos sub-produtos, naqueles que, em todas as épocas, se
servem, por oportunismo, do que está na voga e que, destarte, quando
e se tomados em consideração excessiva, podem dar a imagem mais
deformadora duma realização.
Mário Sacramento sabia-o. Por isso,
nas longas reflexões contidas no notável estudo à obra de Namora
(2), notável e
discutível em algumas das teses por que se bate, se podem ler estas
palavras judiciosas: «...a ideologia funcionou, no primeiro
neo-realismo (3)
como um ex machina, excepção feita, está clara, das obras que
conseguiram ultrapassar isso e são, como é óbvio, as que perduram.»
Como aquele fascínio pela teorização
das questões, que o levou, não raro, a produzir o seu exercício
crítico em zonas de maior profundidade ideo-sensível e estética,
escreveu o opúsculo «Há uma estética neo-realista?
(4), uma das suas obras
maiores pela riqueza da análise, das pistas que fornece, e pelo
rigor metodológico. Aqui, o estudo sobre a problemática realista,
que ascendera, novamente, ao primeiro plano das discussões, revela o
militantismo humanista do autor, que, sem ambiguidade, defende uma
arte operante e transformadora, assente numa consciência
dialéctica e materialista, tal como o largo espectro das suas
preocupações formais.
Mas não só a literatura neo-realista
o mobilizou, conquanto dê matéria para muitos dos seus melhores
Ensaios de Domingo.
Também Eça de Queirós, sobre quem,
ainda estudante de Medicina, escreveu uma peça fundamental – «Eça de
Queirós – uma estética da ironia»
(5) –, que nos dá a conhecer a
origem dum realismo estilístico e duma concepção de vida elaboradas
em termos duma ironia espacio-temporalmente circunscrita. Trata-se
de um ensaio polémico mas duma firme ossatura analítica, se bem que
relativizando excessivamente os textos mais maduros do autor de «Os
Maias», um ensaio de inestimável apreço para um cabal conhecimento
dos pressupostos genéricos da obra do grande romancista.
E deixei para o fim, para uma rápida
anotação, um dos livros mais vivamente contestados de M. Sacramento:
«Fernando Pessoa – poeta da hora absurda»
(6).
Escrito em 1953, em Caxias, o texto
reage à atmosfera histórico-literária que se vivia no Portugal de
então: o culto deificador de Pessoa. Não estranha, pais,
/ 32 / que a generalidade dos
autores tenha, mais ou menos brandamente, esconjurado as teses que
Sacramento construiu. Partindo da caracterização da mentalidade
pequeno-burguesa dos anos que decorrem entre 1910 e 1930, e do que
lhe é oposto, por Pessoa, no sentido de vergastar o ideário
democrático-burguês que degenerara no idealismo, no jacobinismo, na
paladinagem reaccionária em favor dum certo tipo de pax ruris.
Mário Sacramento conclui, de modo irreticente, pela índole não
apenas anti-humanista e irracionalista das posições do poeta da
«Mensagem», como, sobretudo, pela marca proto-fascista do seu
pensamento e de vários dos seus escritos. A prová-lo, a integração
na ideologia nacional fascista da sua obra, do nevoeiro sebástico e
da estirpe imperialista que ela claramente incorpora
(7).
Adiro amplamente às propostas
críticas de Sacramento, até pela justeza e serenidade com que sempre
considerou a qualidade formal e estética do conhecido poeta do
modernismo. Adiro por uma outra razão ainda: a importância
desmitificante dum trabalho que, actuando sobre a circunstância
portuguesa duma época de guerras mornas e frias, bradou um alerta
contra os perigos duma utilização mecanicista, acrítica,
anti-dialéctica dos textos de Pessoa. E, tanto quanto creio, tal
objectivo, mal grado as múltiplas diatribes contra o estudo de Mário
Sacramento, foi atingido.
Mário Sacramento. Um nome cimeiro da
nossa cidade intelectual. Um homem. Recordá-lo, mesmo que sem a
demorada atenção que merece, nestes dias que em Abril nasceram, é
retrazer ao nosso campo de batalha, à nossa caminhada, o companheiro
exemplar cuja voz, com a ternura do Amigo que nos acompanha na
borrasca, com a força e determinação dos momentos iluminados, nos
empurra para diante, para a primeira distância dos gestos, para a
vitória final do proletariado «FAÇAM UM MUNDO MELHOR, OUVIRAM? NÃO
ME OBRIGUEM A VOLTAR CÁ!»
(8).
Fá-lo-emos. Mesmo quando a traição
desceu à praça, se vestiu de garridas cores, reabilitou velhos
espantalhos e tenta degolar o pássaro que canta no abrir das nossas
madrugadas. Fá-lo-emos, Companheiro. Porque não apenas «há milhões
de mortos a dizer-nos: avante!» (8), mas
milhões de vivos multiplicando-os, mãos abertas, como uma parábola
de esperança-certeza, como um canto nascido dos abismos da vontade,
para a conquista inevitável do sol.
___________________________
(1)
– Mário Sacramento, ln «Discurso no 46.º aniversário da República».
(2)
– Mário Sacramento, «Fernando Namora – a obra e o homem», Arcádia,
Lisboa, 1967.
(3)
– Aqui transparece a tese dos dois (ou mais) neo-realismos que, no
texto, sumariamente refuto.
(4)
– Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1968.
(5)
– Coimbra Editora, 1945.
(6)
– 2.ª edição, Inova, Porto, 1970.
(7)
– Fernando Luso Soares, no seu
«Literatura, dialéctica, estrutura», Cronos, Lisboa, 1971, inclui um
importante trabalho («Ensaio crítico de um ensaio sociológico de
Fernando Pessoa») em que apresenta teses concorrentes, embora sobre
escopos de certo modo diferenciados, com as de Mário Sacramento,
autor que, no entanto, parece não ter sido considerado para a
elaboração do texto.
(8)
– Mário Sacramento, in «Carta-Testamento», Inova, Porto, 1973. |