Acesso à hierarquia superior.

N.º 19

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1975 

A Liberdade em Aveiro

Pelo P.e João Gonçalves Gaspar

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A barra na base do progresso

Ao referirmos atrás à situação da barra de Aveiro, deixámo-la a sul da Vagueira, junto à linha divisória dos concelhos de Mira e de Vagos. Durante o século XVIII o seu estado foi piorando, e numerosas representações foram entregues ao Governo com vista a que este desse remédio a tão deplorável situação. É que os aveirenses sabiam ser factor de vida, de progresso e de liberdade o bom estado da sua barra. D. José I, a 27 de Maio de 1756, atendendo às reclamações dos nossos antepassados, resolveu criar a Superintendência da Barra e lançar o imposto do real para ser pago por todas as Câmaras da Comarca de Esgueira, a fim de se custearem as despesas com a abertura de uma nova barra em São Jacinto.

Os trabalhos não se puderam então fazer, devido a uma grande cheia: as ilhas e as salinas da ria, os campos do Vouga e os bairros baixos de Aveiro ficaram inundados por muito tempo; as águas represadas causaram enormes danos. Apenas em Janeiro de 1757 o  capitão-mor de Ílhavo, que era o aveirense João de Sousa Ribeiro da Silveira, foi autorizado a abrir um regueirão na areia, onde antes, na Vagueira, tinha estado a barra; mas tudo isto se tornava muito precário.

Doze anos após, o Senado Municipal representou a El-Rei sobre a falta de estabilidade e de segurança da barra; e a este pedido outros mais se seguiram, pois os infortúnios ocasionados sobressaltavam constantemente a região. Os aveirenses e a sua Câmara não desistiram das pretensões sobre a abertura de uma barra capaz; por isso, a 16 de Abril de 1794, a Câmara encarregava o Dr. Manuel Joaquim Lopes Negrão de conseguir do Príncipe Regente, mais tarde D. João VI, as providências necessárias para a efectivação das desejadas obras.

Ante a miséria geral e as doenças que dizimavam a população, a 2 de Janeiro de 1802, o ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho, depois Conde de Olivares, encarregava os engenheiros Coronel Reinaldo Oudinot e Capitão Luís Gomes de Carvalho de separadamente procederem a estudas para a abertura da nova barra, os quais desistiram do sítio da Vagueira e escolheram um outro perto de São Jacinto, próximo da anterior localização no século XVI, a 17600 metros a norte da barra velha. O Eng.º Oudinot enviaria ao Governo o seu projecto a 6 de Março; e a 17 de Abril o Eng.º Gomes de Carvalho remeteria a sua «Memória descritiva ou notícia circunstanciada do plano e processo dos efectivos trabalhos hidráulicos empregados na abertura da barra de Aveiro segundo as ordens de S. A. R. o príncipe Regente Nosso Senhor».

Entretanto, os homens de Aveiro estavam impacientes por via da insalubridade das águas pantanosas da laguna, pelo prejuízo na feitura do sal e pelas inundações na cidade. A própria Confraria de S. Miguel resolveu a 7 de Fevereiro de 1802, já após aquela decisão superior, que, no primeiro ano depois da abertura da barra nova, se desse a Sua Alteza Real a terça parte líquida do sal das suas marinhas, «como prova de gratidão pela munificência que por essa obra havia tido aquele Príncipe». E a 8 de Abril o Príncipe Regente ordenava a demolição das antigas muralhas de Aveiro, que ameaçavam ruína, devendo utilizar-se a pedra nas obras da barra; diríamos hoje que foi uma triste decisão que as condições do tempo obrigaram a tomar.

Os planos definitivos dos dois engenheiros, essencialmente idênticos, foram aprovados pelo Príncipe D. João; recebida a comunicação em aviso régio de 5 de Julho do mesmo ano, logo se começaram a executar os trabalhos. Em Dezembro de 1803, estando eles em andamento, Oudinot foi transferido para a Ilha da Madeira, onde faleceu em 1807; continuou a dirigir as obras o citado Eng.º Luís Gomes de Carvalho.

Após porfiados esforços, não sem graves desgostos e contrariedades, a abertura final da barra nova, facto de excepcionaI importância para o progresso de Aveiro, realizou-se no dia 3 de Abril de 1808, às sete horas da tarde. Do acontecimento lavrou-se um auto, que tem a data de 15 de Abril e foi subscrito por Miguel Joaquim Pereira da Silva; depois de referir os trabalhos preparatórios e a maneira como se deu o rompimento da duna de areia, lê-se no documento: – «As águas que cobriam as ruas da praça, desta / 28 / cidade, e os bairros do Alboi e da Praia, abaixaram três palmos de altura dentro de vinte e quatro horas e outro tanto em o seguinte espaço, e em menos de três dias já não havia água pelas ruas [...] e toda a cidade ficou respirando melhor ar por estas providências com que o Céu se dignou socorrê-la e a seus habitantes com esta grande obra da barra».

Assim ficou estabilizada a barra, depois sucessivamente melhorada com outras obras e com a construção do porto marítimo, até aos nossos dias. Aveiro, sempre unida às vicissitudes da barra e bem consorciada com o mar e com a ria, passou a olhar com optimismo um melhor futuro de progresso e de liberdade.

 

Um bispo, defensor da liberdade

No princípio do século XIX, a Diocese Aveirense teve como Bispo D. António José Cordeiro, natural de Coimbra, figura erudita, máscula, enérgica e disciplinadora, que viria a falecer em 1813; na altura da sua elevação ao episcopado, era professor efectivo na velha Universidade; dele se diz ter sido, no desempenho desse cargo, um «homem muito escrupuloso e executor exacto da lei; nunca faltava à aula [...]; tinha muito saber, e das suas prelecções tirava-se muita utilidade». (20)

Em 1807 Portugal entrava numa das graves crises da sua história, provocada exteriormente pelas arbitrariedades despóticas de Napoleão Bonaparte; dava-se em Novembro a primeira invasão francesa. D. António José Cordeiro, além de atender aos deveres de homem da Igreja, manifestou-se também como um grande defensor das liberdades de Aveiro e da Pátria, durante este período de inquietação; após as primeiras hesitações ou atitudes de prudência, no breve tempo em que o País esteve sob a ditadura de Junot, o nosso Bispo aparece-nos como uma encarnação do patriota e do aveirense.

Vitoriosa a revolta nortenha, formou-se no Porto, a 19 de Junho de 1808, a Junta Provisional do Supremo Governo do Reino, presidida pelo respectivo Prelado. A 22, o Bispo de Aveiro deu conhecimento dos factos e mandava que se praticassem os costumados sinais de regozijo: te-deum, toques festivos de sinos e luminárias nas igrejas e nas casas; a própria Câmara Municipal mandava arvorar numa das janelas dos Paços do Concelho a bandeira da cidade e restaurar os escudos das armas portuguesas picadas por ordem de Junot. O povo percorreu as ruas da cidade, dando vivas à Santa Religião, à Família Real e à Casa de Bragança.

Mas, sendo necessária agir, as ordens da Prelado sucediam-se – pediu a colaboração monetária para a resistência, instigou o povo contra os injustos opressores, rogou a união aos legítimos portugueses, mandou aos eclesiásticos que pegassem em armas para lutarem pela Religião e pela Pátria, secundando assim a guerrilha de Manuel Velho que, entre Coimbra e Porto, molestava o estrangeiro.

Durante estes dias, constituiu-se em Aveiro uma Junta Provisional, semelhante à do Porto e dela dependente. Foi a 7 de Julho que, no Paço Episcopal, sob o maior segredo, se reuniram diversas individualidades do Exército, da Nobreza e do Clero que estabeleceram aquela junta sob a presidência do Prelado e planearam a fortificação e a defesa da zona. Até ao fim das Invasões, D. António não foi apenas o chefe espiritual do povo, mas também o responsável na luta contra o inimigo; os documentos que assinou e expediu bem demonstram a actividade de um dos grandes combatentes pela liberdade. Dada a sua formação religiosa e a sua piedade extraordinária, ele via que, se Deus não guardasse a cidade, em vão vigiaria a sentinela, e instantemente solicitava que se pedisse em preces públicas e particulares a ajuda divina, pela intercessão de Santa Joana, «a quem já em princípio da nossa consternação havíamos tomado por medianeira para com o Pai de Misericórdias» – escrevia o Prelado a 5 de Agosto de 1808. Ele próprio, na procissão de penitência que ordenou se fizesse na tarde do dia 7 desse mês, desde a catedral até à igreja de Jesus, seguiu a pé-descalço o andor do Senhor Ecce Homo, ante o espanto e a comoção de todos.

Mal terminada a primeira invasão napoleónica, dá-se inesperadamente a segunda nos princípios de 1809. Entrando por Chaves, Soult, a 29 de Março, chegava ao Porto, que logo capitulou. Em Aveiro, aos primeiros rumores da guerra, o povo armou-se; assumiu a orientação o Prelado, que mandou executar o plano de defesa do ano transacto. Quando, porém, chegou a triste nova do Porto, verificou-se a debandada geral; D. António, todavia, manteve-se firme e pôs à disposição da campanha as sobras da resistência anterior. Os aveirenses não foram então dos menos aguerridos no combate; somando-se à divisão do coronel inglês Trant no início de Abril, guarneceram a margem sul do Vouga de tal forma que o inimigo não transpôs e rio; a 10 de Maio, uma parte atravessava o Vouga para o norte, surpreendendo e intruso em Albergaria-a-Nova, enquanto outra, indo pela ria, desembarcava em Ovar à retaguarda da ala direita francesa e acossava o invasor, que se pressentia já na derrota. Foi nesta precisa ocasião, a 13 de Maio, que entrou na barra de Aveiro um comboio marítimo inglês, composto de trinta e nove navios de transporte, escoltados pelo brigue de guerra Port Mahon, com mantimentos, munições e forragens para o exército / 29 / inglês, tendo ancorado na chamada praia da Senhora.

Mas, em Junho de 1810, de novo o espectro da luta armada; a 30 desse mês, o Bispo de Aveiro escrevia aos párocos, clero e fiéis e solicitava que se fizessem preces em favor da causa portuguesa e que o povo colaborasse com eficácia na defesa geral. Embora com extrema dificuldade, Massena e as suas hostes foram avançando no centro do País. Entre nós, como noutras povoações, deu-se ordem de abandono total dos habitantes, incluindo as religiosas de clausura; a cidade refugiou-se nas areias de São Jacinto e da Gafanha e nas ilhas da ria, estando em Setembro completamente deserta. Assim, o inimigo só poderia atingir parte da população por Ovar, com acesso arenoso e difícil. Contudo, marchando os franceses para a sul após a derrota do Buçaco, Aveiro respirou e os seus habitantes começaram a regressar.

Ainda outra vez, diante da permanência do estrangeiro em território nacional, D. António exortava, a 28 de Fevereiro de 1811, a santidade da vida, para que Deus afastasse os castigos iminentes, e recomendava a piedade, especialmente a devoção mariana do Terço do Rosário aos domingos e dias Santos, tanto nas igrejas como nas capelas.

O invasor seria finalmente destroçado em Março de 1811, continuando-se na sua perseguição durante os meses seguintes, mesmo através da Espanha e da França. A 18 de Abril, o Bispo de Aveiro anunciava o feliz acontecimento, possuído de intensa satisfação; por isso prescrevia o canto do te-deum em todas as igrejas, em acção de graças pela libertação de Portugal e pela vitória sobre os «bárbaros inimigos sem Religião, sem fé e sem moralidade».

Pela sua extraordinária acção de defensar da liberdade de Aveiro e da região, este homem bem se pode considerar como um dos grandes aveirenses; por isso não o esquecemos aqui.

 

Aveiro na vanguarda da liberdade

Na início de oitocentos, Portugal continuava a sofrer a influência estrangeira do liberalismo constitucional da Inglaterra e da mentalidade revolucionária da França. No rescaldo das invasões napoleónicas ficaria entre nós um certo descontentamento social e político, ante as misérias causadas. Em Londres publicavam-se dois jornais portugueses, que incitavam à revolta contra o Governo legítimo; e em Aveiro foi preponderante e decisiva a acção da loja maçónica dos Santos Mártires.

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Monumento aos Mártires da Liberdade.

Expressivo monumento que no Cemitério Central de Aveiro evoca os Mártires da Liberdade.

Regressando ao País depois de andar ao serviço de Napoleão, o General Gomes Freire de Andrade tornou-se, em 1816, o chefe dos descontentes, feito também Grão-Mestre da Maçonaria Portuguesa. Pensou, com os seus correligionários, numa conspiração que, descoberta, o levou afinal à forca, em Outubro. Como razão da sua atitude, os insurrectos apresentavam o desejo de libertar a Nação da influência dos ingleses, que cá continuavam; mas, mais do que isso, queriam substituir o Governo estabelecido por outro revolucionário. Vê-se que as novas ideias iam alastrando de norte a sul, especialmente nos centros principais.

No Porto existia, pelo menos desde 1818, um agrupamento a que deram o nome de Sinédrio; desenvolveu grande acção facciosa, recrutando adeptos e minando o Exército com o auxílio das sociedades secretas de Madrid e com a ajuda da Espanha e do seu ministro em Lisboa.

Assim se preparava o movimento que, em Agosto de 1820, com tropas a seu lado, provocou a revolução. Vitoriosa esta, imediatamente se nomeou a Junta Provisória do Governo Supremo do Reino, composta de quinze membros sob a chefia de Manuel Fernandes Tomás, com o encargo de governar em nome do Soberano, ausente no Brasil, e de convocar as Cortes para se redigir uma Constituição.

Aveiro aderiu ao movimento a 30 de Agosto, por proposta do Juiz de Fora, Teixeira Lebre. Reuniu-se o / 30 / Conselho da Câmara, desfraldou-se a bandeira e reconheceu-se a Junta; lavrou-se um auto que contém cerca de cento e vinte assinaturas, pelas quais se depreende que esteve presente ao acto o que havia aqui de mais distinto. O Bispo D. Manuel Pacheco de Resende, ausente, prometeu mandar por escrito a sua adesão.

Tendo-se pronunciado Lisboa, em Setembro, a favor da revolta, após o seu alastramento pelo País sem grande oposição, foram destituídos os governadores reais e feitos entendimentos com a Junta do Porto, criou-se a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, que em Lisboa assumiu o poder. Estava iniciado o Regime Liberal.

Não foi o Bispo de Aveiro, mas o Vigário Geral – Dr. Gonçalo António Tavares de Sousa – quem comunicou, a 17 de Outubro, as primeiras Ordens do novo Governo: – juramento de obediência de todo o Clero ao Governo estabelecido, às Cortes e à Constituição que elas haviam de fazer, mantida a Religião Católica e o Casa de Bragança; actos litúrgicos de acção de graças, com todo o povo adrede convocado, pela feliz união dos dois Governos; e preces públicas a favor da causa em que a Nação estava empenhada.

Entretanto, chegavam as notícias ao Brasil; D. João VI, já Rei efectivo desde 1816, viu-se obrigado a reconhecer a Constituição, embora não decretada, e resolveu regressar a Lisboa, onde chegaria a 3 de Julho de 1821. Tendo já sido eleitos os deputados para as Cortes Constituintes, estas reuniram-se a partir de Janeiro de 1821 e logo começaram a aprovar medidas contra a liberdade e a acção do Clero. A 9 de Março, as Bases da Constituição eram aprovadas e promulgadas; iria então proceder-se ao seu juramento por todo o País e, quem se negasse, deixaria de ser cidadão e seria exilado. A cerimónia realizou-se em Aveiro no dia 29, presentes a Câmara, o prelado e demais autoridades civis, militares e eclesiásticas, com te-deum, luminárias e fogo de artifício; lavrar-se-ia um auto de juramento, que viria a ser queimado numa sessão camarária de 13 de Setembro de 1823, em cumprimento de um ofício da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, de 21 de Agosto. A 10 de Abril foi o juramento das Forças de Linha, com parada em Santo António, missa solene e, no Convento de Jesus, te-deum presidido pelo Vigário Geral.

Como persistisse a intranquilidade pelo País fora, D. Manuel Pacheco de Resende achou bem intervir a favor do sossego na sua Diocese; a 7 de Abril escreveu uma pastoral, exortando os fiéis a conservarem-se «firmes em uma perfeita unidade de sentimento e de afectos» e a acatarem as leis e a autoridade de que haviam sido revestidos os «representantes das províncias do Reino unidas em Cortes extraordinárias», para darem ao País «uma Constituição que faça a base e o fundamente da sua felicidade».

Elaborada a Constituição, o Congresso discutiu-a por mais um ano; assinada a 23 de Setembro de 1822 e jurada peles deputados a 30 do mesmo mês, o Rei prestou-lhe assentimento a 1 de Outubro. Em Aveiro, com o juramento local a 3 de Novembro, fechava-se o ciclo de 1820.

A Constituição, imprimindo uma mudança brusca, provocou uma reacção generalizada. Apesar dos apelos à união, à harmonia e à ordem, a intranquilidade não parava, estalando mesmo em Vila Real uma revolução que se alargou a toda a província de Trás-os-Montes, mas que foi debelada pelas tropas féis ao Governo. No dia 27 de Maio de 1823 rebentou em Lisboa uma revolta militar, chefiada por D. Miguel (Vilafrancada); os dissidentes seguiram imediatamente para Vila Franca de Xira, onde aclamaram o Absolutismo. D. João VI aceitou os acontecimentos, organizou nove Ministério e nomeou o Infante generalíssimo e comandante do Exército; assim se abolia a Constituição de 1822.

Os factos tiveram repercussão em Aveiro; durante a rebelião do norte, ante uma Câmara Constitucional, procurou-se aliciar a cidade para o realismo. Proclamado depois D. João VI como Rei Absoluto, a nova Vereação festejou a ocorrência, a 4 de Junho, e dirigiu-se para o Convento de Jesus, onde foi cantado um te-deum; e, no dia 12 seguinte, novas festas se realizariam entre nós, com outro te-deum na catedral e com um animado baile na casa do Barão de Vila Pouca e governador militar, D. Rodrigo de Sousa Teixeira da Silva Alcoforado. Até aconteceu que, uns meses passados, precisamente no Outono desse ano de 1823, D. Miguel, indo do Porto para Lisboa, desviava-se por Angeja, onde foi hóspede de D. João de Noronha e Camões de Albuquerque Sousa Moniz, Marquês de Angeja e Conde de Vila Verde; aqui deu o Príncipe audiência às pessoas mais categorizadas da região, autoridades judiciais, civis, militares, administrativas e eclesiásticas – estas precedidas por D. Manuel Pacheco de Resende.

Apesar de tudo, a Vilafrancada não surtira os efeitos desejados, em virtude do entrave de certos ministros de que o Monarca se rodeara. Por isso, D. Miguel revoltava-se novamente a 30 de Abril de 1824 (Abrilada); mas, nesta ocasião, o Infante era demitido pelo pai e obrigado a exilar-se.

Após a morte de D. João VI, ocorrida a 10 de Março de 1826, seu filho D. Pedro confirmava a regência na pessoa da Infanta D. Isabel Maria, outorgava uma Carta Constitucional, onde declarava que o Governo era monárquico, hereditário e representativo, e / 31 / abdicava em D. Maria da Glória, sua filha de sete anos – que dispôs se casaria mais tarde com D. Miguel.

Em Portugal, corriam três opiniões sobre a sucessão no Trono: – uns entendiam ser D. Pedro o herdeiro, porque o primogénito; outros achavam ser a Princesa D. Maria da Glória, porque D. Pedro revoltara-se contra a Pátria na independência do Brasil; ainda outros julgavam ser o Infante D. Miguel, visto que D. Pedro era traidor e actualmente estrangeiro, e sua filha também. Nestas condições, o movimento miguelista ganhou muitos adeptos. O Infante, nomeado por seu irmão como Regente mas logo aclamado como Rei Absoluto, chegou a Portugal a 22 de Fevereiro de 1826; dissolveu a Câmara dos Deputados e convocou os Três Estados do Reino. D. Pedro foi excluído da Coroa Portuguesa e abolidos os seus decretos, incluindo a Carta Constitucional. As Câmaras Municipais e os Governos Militares das províncias, após insinuações secretas superiores, dirigiram petições a D. Miguel, requerendo que se declarasse Rei Absoluto. A Câmara de Aveiro, a 16 de Abril, nomeou uma deputação para ir à capital; o governador militar propôs que se aclamasse o Infante a 25, em sessão extraordinária da Câmara, convocando-se o Clero, a Nobreza e o Povo.

Contudo, prosseguia a agitação por toda a parte. No que se refere a Aveiro, o desembargador da Relação do Porto, Dr. Joaquim José de Queirós, havia tentado convencer os seus colegas no Parlamento dissolvido a protestar contra tal acto arbitrário de D. Miguel, mas nada conseguira. Recolhia a casa, em Verdemilho, vencido mas não convencido; arvorado em promotor da revolta, desenvolvia aí uma constante conspiração contra a política anticonstitucional e tentava organizar um plano de rebelião, com o apoio de alguns influentes colaboradores.

Na base de todo o projecto arquitectado por Queirós estava a intervenção activa do Batalhão de Caçadores Dez, de Aveiro, do comando do Coronel José Júlio de Carvalho, o qual andava por fora; tendo regressado de Lamego no dia 3 de Maio, este Batalhão, que formou na Praça do Comércio, junto aos Arcos, logo soltou vivas a D. Pedro, a D. Maria II, ao Infante Regente e à Carta Constitucional, havendo correspondência espontânea do povo ali aglomerado em grande número. As represálias que imediatamente os absolutistas quiseram exercer sobre os militares não tiveram o efeito desejado.

Depois, os factos iam precipitar-se. De 15 para 16, numa reunião efectuada em casa do Corregedor Francisco António de Abreu e Lima, ficava resolvido iniciar-se em Aveiro, na madrugada imediata, a revolução liberal contra o desaforo Miguelista; estiveram presentes, além do referido Desembargador Joaquim José de Queirós e do dono da casa, o Coronel José Júlio de Carvalho, o Tenente-Coronel Manuel Maria da Rocha Colmieiro e Francisco Silvério de Magalhães Serrão.

Na verdade, às sete horas da manhã de 16 de Maio de 1828, principiava em Aveiro a movimento revolucionário contra o Infante-Rei, sendo os primeiros gritos de guerra levantados pelo desembargador e pelos soldados do Batalhão de Caçadores Dez, com vivas à Carta Constitucional, a D. Pedro IV e à Rainha D. Maria II. Soriano, na sua História do Cerco do Porto, escrevendo sobre este acontecimento, diria que, embora a favor do Absolutismo estivesse a maioria do Clero regular e secular da cidade, quase toda a Nobreza e o Regimento de Milícias, predominava o partido liberal, no qual militavam muitas das principais pessoas da terra; até o próprio Bispo, D. Manuel Pacheco de Resende, era tido como simpatizante das novas correntes. Não esqueçamos porém que, em política, então como agora, há pessoas que podem hoje aderir a uma ideia e amanhã seguir outra opinião...

Depois de serem presos o Governador Militar, o Juiz de Fora, o Comandante de Veteranos, Luís Estêvão Couceiro da Costa, e o Escrivão da Câmara, e, deposta a Vereação Municipal, logo substituída por outra, o movimento marchou, à tarde, para a cidade do Porto, onde chegaria no dia imediato e onde se lhe juntariam outras tropas. Senhores da situação, os revoltosos nomearam uma Junta Provisória, em nome de D. Pedro e da Carta. Seguiram-se mais levantamentos. Todavia, a revolta foi contrariada e debelada pelas tropas de D. Miguel; a 3 de Julho entrava no Porto o Exército Absolutista que fazia fracassar totalmente a revolução liberal de 16 de Maio. Os vencedores iriam exercer as mais violentas represálias sobre os adversários políticas.

Passados meses, precisamente a 9 de Abril de 1829, a Alçada do Porto condenava à morte, além de outros, os aveirenses Francisco Manuel Gravito da Veiga e Lima, Francisco Silvério de Carvalho Magalhães Serrão e Clemente da Silva Melo Soares de Freitas, implicados na revolução do ano anterior, que, com Manuel Luís Nogueira, seriam enforcados na Praça Nova do Porto, a 7 de Maio, e em seguida decapitados; as suas cabeças seriam expostas em Aveiro, durante alguns dias, à entrada do Rossio. (21) Em julgamentos posteriores, mais réus foram condenados à forca ou ao degredo... mas ficariam conhecidos na História por «Mártires da Liberdade». O conhecido capitão João de Sousa Pizarro, oficial do Batalhão de Caçadores Dez e ilustre representante da Casa do Terreiro, de Aveiro, havia já perdido a vida no combate da Cruz dos Morouços, travado a 24 de Junho de 1828 entre as duas hostes.

O citado Bispo de Aveiro, D. Manuel Pacheco de / 32 / Resende, vivendo dias difíceis no meio de guerras fratricidas, mostrou-se superior em caridade a favor de constitucionais e de realistas. Bondosíssimo Prelado, «sobre cujas cãs sagradas caiu também um pouco de opróbrio e de perseguição», (22) deixaria fama de austero, de esmoler, de santo, de homem de Deus, da Igreja e das almas. Apesar de tudo seria acusado e pronunciado por liberal pela Corregedor Dr. Alexandre Duarte Carrilho Marques, valendo-lhe a Alçada do Porto que o despronunciou.

Entretanto, a 22 de Junho de 1828, havia rebentado na lha Terceira – Açores – outra revolta liberal; os amotinados tinham, sem demora, instituído um Governo interino e pedido auxílio aos emigrados. Passados meses, D. Pedro IV, aderindo aos revoltosos, instituía a 15 de Junho de 1829 uma Regência e, protegido pela Inglaterra e pela França, foi organizando uma expedição contra Portugal. Em Fevereiro de 1832, D. Pedro já estava nos Açores e, presidindo à Regência, formava um Ministério. Nos fins de Junho, saiu da Ilha de S. Miguel com uma expedição de 7500 homens, entre os quais muitos ingleses e franceses, e desembarcou na praia do Mindelo, a 8 de Julho; tomou a cidade do Porto e, meses depois, de vitória em vitória sobre os absolutistas, ficou senhor do País. A 26 de Maio de 1834, era assinada a Convenção de Évora-Monte que marcaria o fim do Absolutismo em Portugal, o restabelecimento da Carta Constitucional e a derrota de D. Miguel – que partia para o exílio.

Dias antes, a 12 de Maio, nos Paços do Concelho de Aveiro, D. Maria II fora solenemente aclamada como Rainha de Portugal, tendo-se jurado obediência e fidelidade àquela Augusta Senhora e à Carta Constitucional, de tudo se lavrando um curioso e interessante auto.

 

Distrito

Os distritos administrativas foram criadas em Portugal logo após o triunfo do Liberalismo. Antes de nos fixarmos no acontecimento, talvez nos seja útil recordar alguma coisa sobre a divisão territorial do nosso País, ao longo dos tempos.

Assim, no século XV, Portugal estava dividido em cinco regiões, chamadas comarcas ou províncias: – Entre Doure e Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, e Entre Tejo e Guadiana (incluindo o Algarve). Considerando apenas a Estremadura e a Beira, porque nos dizem proximamente respeito, sabemos que aquela ocupava a faixa junto ao mar, desde o Douro até ao Tejo, e nela estavam situadas, entre outras muitas terras, Aveiro, Oliveira do Bairro, Esgueira, Ovar e Feira, e que esta, correndo paralelamente com a anterior, era limitada a oriente pela Espanha e nela se encontrava a vila de Arouca.

Havendo grande progresso social e económico no País durante os reinados de D. João lI e de D. Manuel I, reorganizou-se em novos moldes a administração nacional. Desta forma, nos princípios do século XVI o território foi dividido em catorze comarcas administrativas, cada qual com uma povoação importante por cabeça: – Lisboa, Setúbal, Santarém, Leiria, Alenquer, Évora, Beja, Coimbra, Viseu, Guarda, Porto, Guimarães, Torre de Moncorvo e Reino do Algarve.

Em 1523, D. João III estabeleceu uma comarca ou correição em Aveiro; poucos anos durou, pois viria a ser extinta em virtude da fundação da Ouvidoria de Montemor-o-Velho para o Ducado de Aveiro, instituído nos meados do século XVI. Em seu lugar, seria criada a Comarca de Esgueira.

Nesta altura, a Província da Beira já se tinha alargado também por toda a região a norte do rio Mondego, de modo que passou a ficar limitada pelo Atlântico, a ocidente.

Ao referirmos a elevação da vila de Aveiro a cidade, observámos como foi extinto o dito Ducado e restaurada a Comarca de Aveiro, à qual passou a pertencer todo o território da de Esgueira. Dessa forma, na Província da Beira passaram a existir oito comarcas, provedorias ou correições: – Coimbra, Aveiro, Feira, Viseu, Lamego, Pinhel, Guarda e Castelo Branco. A comarca de Aveiro seria a base da criação do futuro Distrito Administrativo, como já acontecera para a instituição da Diocese em 1774.

Nos princípios do século XX, notava-se que a velha divisão do País se tinha tornado anacrónica e incompatível com as necessidades sociais. Logo na Constituição de 1822 se futurava a divisão do território em distritos e o modo de neles se fazer a administração judicial, política e civil. A Carta Constitucional de 1826 manteve tal projecto.

Passados anos, em 1833, o território era dividido em oito províncias: Minho, Trás-os-Montes, Douro, Beira-Alta, Beira-Baixa, Estremadura, Alentejo e Algarve; estas foram subdivididas em comarcas, que, por sua vez, o foram em concelhos. A Comarca de Aveiro ficou situada na Província do Douro.

Por se verificarem graves inconvenientes na divisão provincial, que eram circunscrições administrativas demasiado extensas, abolir-se-ia tal divisão com esse carácter em favor da divisão distrital. Discutida a questão no Parlamento, concluiu-se pela supressão das províncias como circunscrições administrativas e pela substituição das comarcas por circunscrições de extensão intermediária entre elas e as províncias; as novas divisões territoriais chamar-se-iam distritos administrativos, que seriam subdivididos em concelhos. Assim, a 18 de Julho de 1835, o Governo publicava um decreto, fixando em dezassete o número de distritos / 33 / de Portugal Continental e indicando os nomes das suas capitais. (23) A 25 seguinte seriam nomeados os respectivos governadores civis.

Para Aveiro foi escolhido José Joaquim Lopes de Lima, oficial da Marinha e deputado pelas Ilhas de Cabo Verde, que chegou à cidade nos meados de Setembro daquele ano. O território do Distrito de Aveiro tem-se mantido sem alterações até ao dia de hoje, excepção feita à troca com Coimbra do concelho de Mira com o da Mealhada, por decreto de 24 de Outubro de 1855.

Este facto colocou Aveiro ao lado das demais cidades capitais de distrito. Necessariamente que tal facto constitui um poderoso impulso no caminho auspicioso do progresso material e da liberdade política e social.

Após a criação do Distrito de Aveiro, foram as quatro freguesias da cidade reduzidas a duas, por alvará de 11 de Outubro de 1835 assinado pelo governador civil; publicado o documento, foi ele remetido ao Bispo da Diocese que, tendo-se conformado com tal redução e atendendo às razões expostas no mesmo alvará, mandou passar a competente portaria com data de 13 de Outubro. Por esta forma, constituiu-se a norte do canal central da Ria a freguesia da Vera-Cruz; e a sul a de Nossa Senhora da Glória; o bairro de Sá, que até então fora de Ílhavo, era incorporado na primeira daquelas paróquias.

A matriz da freguesia setentrional de Aveiro fixou-se na igreja da Vera-Cruz, que existia no actual Largo do Capitão Maia Magalhães. Anos depois, pensando-se em construir um templo mais vasto, iniciou-se no mesmo sítio uma nova edificação que não chegou a concluir-se e foi demolida. O centro religioso, transferido provisoriamente para a igreja de Nossa Senhora da Apresentação, lá foi ficando com carácter definitivo.

A paróquia meridional recebeu o nome de Nossa Senhora da Glória – talvez para honrar também a Rainha D. Maria da Glória que não apenas Nossa Senhora – e passou a ter como sede a igreja do extinto convento de S. Domingos.

Quanto à vetusta igreja de S. Miguel – quiçá o mais antigo monumento da cidade, porventura edificado no século XI mas reconstruído diversas vezes – essa foi sacrificada pelo camartelo demolidor. O aludido Governador Civil, José Joaquim Lopes de Lima, a pedido de certos políticos influentes, sentenciou a sua destruição, não fosse o nome do Titular lembrar perpetuamente o do Rei proscrito; e a demolição iniciava-se em Novembro de 1835, poucos dias depois de extinta a freguesia.

Decorridos os anos, verifica-se, com pena, como em Aveiro se tem feito desaparecer alguns edifícios que eram sinais de antiguidade e de história; até da muralha nada existe, para além de insignificativo vestígio, que possa dizer-nos o que ela era. De facto, praticamente apeada no início de oitocentos para se valer, como atrás referimos, à abertura da barra, o lanço que restava junto ao Cojo e a grandiosa porta da Ribeira foram demolidos em 1855. Que belo seria se hoje existissem estes e outros monumentos!...

 

Aveiro no Parlamento

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Neste recordar de quadros luminosos sujeitos ao tema da liberdade em Aveiro, não podemos esquecer o insigne aveirense, dotado de rica personalidade, favorecido por génio invulgar e adornado de um conjunto de qualidades, qual foi José Estêvão Coelho de Magalhães. Nasceu em Aveiro a 26 de Dezembro de 1809, ali na característica Rua dos Mercadores, e foi baptizado na velha igreja da Apresentação; deram-lhe o nome de José, de seu padrinho e tio materno, e Estêvão, por ter vindo a este mundo em dia do Protomártir de Jerusalém. Pela vida fora seria militar, advogado, deputado e professor.

José Estêvão com sua esposa, D. Rita de Magalhães, e seu filho, Luís de Magalhães.

De temperamento impetuoso e de feitio combativo, era natural que ultrapassasse a trivialidade de um soldado medíocre e anónimo, terçando armas pelas ideias liberais; o patente militar conquistou-a ele com a sua bravura aguerrida, a ponto de ser agraciado com a condecoração da Torre e Espada. De espírito / 34 / vivo, de assimilação pronta e de intuição além do comum, fácil lhe foi entrar no ensino; a cadeira de professor de Economia na Escola Politécnica de Lisboa ganhou-a num dos mais brilhantes concursos que se fizeram em Portugal. De eloquência espontânea e dominadora, a um tempo enérgica e espirituosa, irónica e familiar, patética e insinuante, não admira que as populações o tenham escolhido para seu representante no Parlamento; o mandato de deputado, várias vezes repetido, deram-lho os vastos recursos do seu talento.

A par de tudo isto, nunca se envaideceu da riqueza dos dotes nem nunca se vangloriou da popularidade que o rodeava; não pretendia precedências a que teria jus; detestava os cumprimentos dos aduladores e não se envaidecia com as manifestações dos amigos; sem dificuldade, era sociável, conversador cheio de espírito, nobre na bondade, coerentemente desinteressado, sem aspirações do mando político, idealista na pureza das intenções.

Em 1834, nas primeiras eleições que se realizaram após o restabelecimento do Governo liberal, seu pai, o médico Luís Cipriano Coelho de Magalhães – natural de Eixo – foi escolhido como deputado pelo círculo de Aveiro; mas, em 1836, as Câmaras foram dissolvidas. Perante isto, realizaram-se novas eleições para a Constituinte, provocadas pela Revolução de Setembro de 1836, cujo espírito era o radicalismo de 1820 e 1822. Luís Cipriano abdicava no filho que, com 26 anos de idade, acabara a formatura em Direito; era a primeira vez que José Estêvão ia à Câmara, como um dos representantes da sua terra.

Eleito a 20 de Novembro desse ano, fez a estreia a 5 de Abril de 1837, com o discurso sobre o projecto da Constituição, que ficou conhecido pelo nome de «Profissão de Fé». Mostrando-se Iogo como um dos primeiros na oratória parlamentar portuguesa, quantos o ouviam ficavam presos das suas palavras.

Homem independente e livre, amando e desejando a liberdade do povo, defendia que a vontade popular, expressa em eleições e cometida aos seus representantes, era o único poder legítimo. Se julgasse necessário, não deixava de criticar os actos da Coroa, porque José Estêvão nunca timidamente se vergou ante a idolatria do Trono. Por isso, não concordava com os vetos ou as leis arbitrárias de reis ou de governos. «O Governo de um só homem é o Governo mais perigoso de todos os Governos; é verdade antiga, mas não é mau repeti-la» – afirmou ele no discurso sobre a questão da barca Charles et Georges, continuando: – «As liberdades de imprensa e de tribuna não são feitas para desafogar paixões e contentar ambiciosos; são instituições indispensáveis para opor vontade a vontade, parecer a parecer, opinião a opinião, e tirar destas oposições as máximas e expedientes de razão, de justiça e de moralidade, com que só se governam os povos».

Contudo, se José Estêvão era um radical, um revolucionário, ele jamais foi um jacobino. Discutindo embora os direitos, os critérios e as responsabilidades da Coroa, nunca dos seus lábios saiu uma frase menos correcta, porque, inteligente e respeitador, conciliava com o seu lealismo monárquico o seu liberalismo e os seus sentimentos democráticos. «É preciso que cada um de nós respeite as opiniões dos outros, para que as suas sejam respeitadas; eu respeitá-las-ei todas, combatendo aquelas com que não concordar, e espero que as minhas serão respeitadas, sem deixarem de ser combatidas» – são palavras suas no discurso de estreia. Não estará aqui a demonstração do espírito liberal e tolerante do homem de Aveiro, tão bem testemunhado por José Estêvão?!

Se se mostrava um democrata puro e intransigente, não era um republicano, muito menos um republicano vesgo e façanhudo. «Eu não sou republicano, nem esse nome é de apetecer no nosso País» – confessava em 1837, dizendo mais adiante, no mesmo discurso: – «Eu amo os Tronos, porque vejo neles um princípio inocente na organização social; julgo que todos os danos que têm feito não vêm deles, mas do modo de os constituir, do erro de os cercar de direitos terríveis, que lhes são funestos».

Vemos assim que este homem ilustre, cujo prestígio ultrapassou os acanhados limites da terra natal, no ponto de vista das ideias foi a encarnação viva do liberalismo da época, do idealismo revolucionário de 1820, do doutrinarismo Constitucional dos novos tempos. Como escreveu Luís de Magalhães, «os erros políticos e, sobretudo, sociais do Absolutismo, a injustiça dos privilégios, o arbítrio das leis, a corrupção das classes dirigentes, a miséria das plebes famintas constituíam um conjunto de circunstâncias apropriadas para fazer germinar nos oprimidos a esperança e a convicção de que só uma nova ordem social [...] podia pôr termo a todos os males sociais, reparar todas as injustiças, fundar enfim a cidade ideal da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Esta visão duma sociedade nova, emancipada e nivelada, devia sobretudo deslumbrar aquele terceiro estado constituído pela pequena burguesia e pelo povo, para quem sempre a partilha do poder fora mínima e máximo o quinhão dos encargos e dos sofrimentos. A ideia, pois, encontrava um largo terreno admiravelmente preparado para germinar e frutificar. Nos espíritos elevados e com a cultura humanista do tempo, era a sedução duma doutrina nobre e generosa, inspirada por uma tradição histórica e comprovada por um exemplo coevo. Nas massas era a esperança deslumbrada de melhores dias e o orgulho / 35 / inebriante da desforra». (24) O nosso conterrâneo formou-se sobre e influxo de tais princípios e com eles viveu. «A vida pública, que em mim foi um acaso, foi depois um ponto de honra» – diria em 1852 na Câmara, quase a definir a sua carreira pública.

José Estêvão não teve que sacrificar a consciência de homem religioso às ideias políticas. Em espíritos superiores e crentes, que sabem ordenar o pensamento e a vida segundo os superiores princípios, tudo se consegue com mais ou menos esforço. Por isso, no Parlamento, ele pôde declarar com a sinceridade que era seu timbre: – «Eu sou religioso, católico, apostólico, romano... Creio em Deus, e ele me deixa crer e esperar também que este seja o melhor de todos os cultos, porque satisfaz as necessidades do meu espírito, os desejos do meu coração, e não diz à minha razão nada que repugne às minhas aspirações».

Se ele desaprovava a entrada em Portugal das Irmãs da Caridade, que desejavam vir da França, era sobretudo porque temia a acção política das Congregações Religiosas naquilo que poderia haver de perigoso para o bom nome nacional, na influência anti-patriótica que poderia vir do estrangeiro e na «acção jesuítica» que poderia ser exercida a coberto dos princípios de caridade, de religião e de ensina; era vítima inconsciente das ideias do tempo, que, ultrapassadas as décadas seguintes, acabaram por ser tidas sem fundamento válido e concreto. De resto, José Estêvão reconhecia a virtude, o trabalho e o sacrifício dessas senhoras tão abnegadas. «Eu conheço o que pode haver de poético e sublime nesta instituição das Irmãs da Caridade; [...] eu venero e respeito a instituição das Irmãs da Caridade». No fundo, o que o orador augurava era uma beneficência feita por meios nacionais e por pessoas portuguesas, como também diria a respeito do Ensino: – «Quero juntamente a instrução religiosa enquanto for ministrado pelo clero português».

Entre 1837 e 1862, ano em que inesperadamente faleceu a 4 de Novembro, José Estêvão Coelho de Magalhães apenas esteve afastado das lides parlamentares durante a emigração de 1844 a 1846 e na legislatura de 1848-1850. Na Câmara e fora dela foi também estrénuo defensor dos interesses da sua e nossa terra. Mais do que uma vez, combateu para que o caminho-de-ferro da Linha do Norte passasse por Aveiro; em carta de 11 de Setembro de 1860, possivelmente dirigida a um ministro, pedia a atenção do Governo para a melhoria da barra, porque «esta obra para mim nem é igrejinha política, nem preocupação de terra natal mas interessa à economia geral do Estado»; a 4 de Junho de 1862, falando no Parlamento sobre melhoramentos públicos, pedia a construção de um farol na nossa costa, entre a barra e os areais de Mira. (25)

Aveiro, por seu turno, não esqueceria o paladino da sua liberdade e o notável homem público do liberalismo. No próprio mês da sua morte, já algumas pessoas gradas se reuniam no liceu local – de cuja criação ele foi um dos grandes paladinos – para tratarem da construção de uma estátua em sua honra; a 16 de Maio de 1864, desejando-se que os seus restos mortais ficassem entre nós, efectuou-se a trasladação de Lisboa para Aveiro, presidindo o Vigário-Geral da Diocese, Dr. José António Pereira Bilhano; finalmente, a 12 de Agosto de 1889, era inaugurada a estátua, erguida no coração da cidade, frente aos Paços do Concelho.

José Estêvão, patrono cívico de Aveiro, símbolo dos aveirenses e expressão dos seus mais profundos sentimentos de respeito pelos outros, continua a vencer a tirania dos tempos e a sua memória não se deixa render à ingratidão dos homens. Também aqui o quisemos evocar, ainda que a traços largos.

 

Mais alguns nomes

Neste relembrar de episódios e de figuras caracteristicamente aveirenses, seria defeito imperdoável esquecer os nomes de vários homens que bem serviram a nossa terra e lutaram sob o estandarte da sua liberdade. É uma bela teoria multicolor, onde se agrupam espíritos diferentes em ideias, mas completando-se uns aos outros.

Um deles, por exemplo, é Manuel José Mendes Leite, nascido em Aveiro em 1809 e aqui falecido em 1887; formado em Direito e senhor duma linguagem que apetecia ouvir, foi Deputado parlamentar e Governador Civil de Aveiro. Há um facto que sobremaneira o distingue dos mais, a avaliar pelo impulso que deu em importantíssima matéria no âmbito do Direito Penal português. Na Câmara dos Deputados, já aprovado na generalidade a «Acta Adicional», Mendes Leite apresentou, a 10 de Março de 1852, o célebre aditamento que aboliria a pena de morte nos crimes políticos; na sessão de 29 seguinte, após larga discussão, o aditamento seria aprovado por 50 votes contra 32, passando a constituir lei. Grande atitude de um aveirense, amante da liberdade na Ordem! José Estêvão diria a 21 de Julho seguinte que a abolição da pena de morte nos crimes políticos, «além de ser um grande princípio, era o sentimento nacional, e mesmo nos crimes civis a desejava ver abolida, para que o homem não pudesse ter mais força que Deus». Passados quinze anos, a pena capital seria proscrita da nossa legislação. / 36 /

 

Sebastião de Carvalho e Lima, que nasceu em Eixo em 1821 e faleceu em Aveiro em 1896, distinguindo-se pela auto-cultura, pela agudeza de espírito, pela prontidão na resposta, pela mordacidade da sátira, pela serenidade fria, pela inteligência penetrante, pela acção política, social e económica que exerceu no próprio meio. Foi Presidente da Câmara Municipal de Aveiro e da Junta Geral do Distrito; com outros promotores, fundou a Caixa Económica Aveirense e a Associação Comercial de Aveiro. Entre os seus filhos, podemos lembrar dois: Sebastião e Jaime.

 

Sebastião de Magalhães Lima, nasceu no Rio de Janeiro em 1850; contudo, tendo apenas quatro anos de idade, veio para Aveiro com os pais. Foi jornalista e tribuno e dirigiu o periódico República Portuguesa; formado em Direito e advogado em Lisboa, assumiu a direcção do Comércio de Portugal, a que sucedeu O Século, de que foi um dos fundadores e o primeiro Director. Exerceu grande acção em favor do Regime Republicano em Portugal, tanto no país como sobretudo nos meios políticos e intelectuais do estrangeiro. Foi Deputado, Ministro da Instrução, promotor da participação de Portugal na Primeira Grande Guerra; representou ainda a Imprensa Nacional em diversas reuniões. E não se poderá fazer a história pátria das primeiras décadas do século XX, sem falar na actividade deste homem que sobressaiu grandemente no meio dos correligionários. Sendo ainda estudante, filiou-se na Maçonaria, vindo a ser seu Grão-Mestre desde Março de 1907; viveu e lutou vigorosamente pelo seu ideal político e pela solidariedade humana. Viria a falecer em Lisboa a 7 de Dezembro de 1928.

 

Jaime de Magalhães Lima nasceu em Aveiro em 1859 e faleceu em Eixo a 26 de Fevereiro de 1936; como o irmão, formou-se em Direito também em Coimbra. Depois de ter sido representante do Partido Monárquico, Deputado e dirigente em Aveiro do Partido Regenerador Liberal, abandonou a política para se dedicar às actividades literárias. Entusiasmou-se também pelo cultivo da natureza, particularmente das árvores, conseguindo que a Quinta do Vale do Suão – por ele crismada com o nome de S. Francisco – se tornasse valiosa mostra de eucaliptos. Sente-se na sua obra literária a influência de Leão Tolstoi, que visitou numa viagem à Rússia. Pensador, romancista, ensaísta, contista, crítico, conferencista, jornalista, sociólogo, etnógrafo, paisagista, as publicações de Jaime Lima são bem marcadas pelo vigor do estilo e pela eloquência da expressão; ao lê-lo, parece que contemplamos um profeta duma fraternidade e duma democracia com base na doutrina de Cristo, se não por vezes, durante uma primeira fase da vida, num universalismo de raízes panteístas. Nele se admira o homem na autenticidade e na igualdade do seu carácter, vinculado a Aveiro mas espraiando-se aos horizontes do Orbe; da sua pessoa parecia que irradiava um halo de espiritualidade.

 

Em 1860 nascia em Aveiro Francisco Manuel Homem Cristo, cuja existência se prolongou até 1943. Foi Oficial do Exército, Professor universitário, Deputado, paladino da instrução popular, escritor e jornalista, inconfundível fundibulário, porventura, neste aspecto, o maior de todos os tempos em Portugal. A causa dos obras da barra e do porto de Aveiro é-lhe devedora dos mais assinalados serviços. Tudo o que engrandecesse a cidade ou a região tinha nele um propagandista entusiasta e aguerrido; pelo contrário, aqueles que se atravessassem no caminho do progresso e da liberdade de Aveiro podiam contar com o látego do seu verbo inflamado, sobretudo no semanário O Povo de Aveiro. Interessou-se pela restauração da Diocese de Aveiro, na década de 1930. Certa vez escreveu, para se defender de possíveis ataques: – «Dir-se-á: Você, livre pensador e democrata, a folgar com isso?!... Sim, senhores, por isso mesmo que somos democrata e livre-pensador. Roma não cessa de afirmar que respeita todas as formas de governo, desejando apenas que lhe não movam hostilidade. Sendo assim, é muito fácil o entendimento. Por um lado, a liberdade que nós queremos para nós é a liberdade que nós queremos para todos. Igreja livre no Estado livre foi sempre um dos parágrafos mais importantes da doutrina democrática. Por outro lado, quando não possa haver entendimento, que a agressão parta dos contrários. Os católicos de Aveiro querem o seu Bispo. Pois tenham o seu Bispo, que, a nós, não nos afronta nada. [...] Aveiro deseja tudo quanto de bom e honesto possa concorrer para o seu engrandecimento e bem-estar. Na penúria em que vivem o comércio e a indústria, uma migalha a mais que seja é de agradecer e desejar». (26)

Outros aveirenses notabilizaram-se pela pena, vulgarizando a história de Aveiro e a sua maneira de estar no mundo; dessa forma, dando a conhecer a nossa terra, em livros, opúsculos e jornais, trabalharam pelo seu engrandecimento e pela sua liberdade.

 

José Reynaldo Rangel de Quadros Oudinot, aqui nascido em 1842, foi jornalista, escritor e professor do Liceu; porque amava a autonomia religiosa de Aveiro, insurgiu-se vigorosamente contra a supressão da Diocese em 1882, publicando o livro «O Episcopado e o Governo de Portugal». Além disso, em inúmeros artigos, Rangel de Quadros deixou-nos muito da história de Aveiro, das suas coisas, dos seus costumes, dos seus monumentos e dos seus homens.

 

Outro aveirógrafo, nascido e falecido entre nós, respectivamente em 1853 e 1931, foi João Augusto Marques Gomes – o organizador do Museu no edifício / 37 / do velho Mosteiro de Jesus. Abarcando uma larga visão da sua terra em todos os tempos, descreveu-nos factos aveirenses, trouxe-nos a lume a vida dos conventos, dos templos e dos monumentos, recordou-nos páginas de antanho, avivou-nos a recordação de guerras liberais e de lutas caseiras, deu-nos os perfis e os esboços de aveirenses que, por obras valorosas, se haviam libertado da morte.

 

Queremos também lembrar António Gomes da Rocha Madahil. Era da próxima vila de Ílhavo, onde nasceu em 1893; mas, votado aos estudos de investigação relativos a Aveiro e ao seu Distrito, bem se pode considerar como homem da nossa terra pelo coração. Aveiro deve a Rocha Madahil inestimáveis benefícios, porque ele, dedicando-lhe grande parte do seu carinho e do seu labor, honrou a cidade com a descoberta e a vulgarização de fontes documentais do passado. Um dos seus gostos era a Princesa Santa Joana; tudo o que encontrou sobre a nossa Padroeira, ele o recolheu, ordenou e deu a conhecer. Foi um benemérito de Aveiro, relevada nos seus escritos, tanto no história milenar como nas expressões mais salientes.

Se há nomes que são úteis para o estudo de Aveiro e das suas gentes, Rangel de Quadros, Marques Gomes e Rocha Madahil – ao lado de muitos outros – são autores cuja obra tem de ser tomada em consideração.

 

Mas houve ainda quem, por diferentes formas, se cansou por Aveiro, chamando a atenção das autoridades governamentais para as suas carências e pondo-se ao serviço do bem público. E agora podemos recordar Gustavo Ferreira Pinto Basto, do Partido Progressista, homem de notável iniciativa e acção, dotado de vontade enérgica; nasceu na Quinta do Silveiro, em Oiã, em 18412, mas, além de presidir à Associação Comercial, esteve à frente da Câmara de Aveiro. No exercício deste cargo, vencendo obstáculos e contrariando opiniões opostas, em 1905 sacrificou parte do Convento das Carmelitas à abertura da que é hoje a ampla Praça do Marquês de Pombal.

 

Lourenço Simões Peixinho, durante muitos anos à frente da Edilidade e falecido em Março de 1943, entre muitas obras que se lhe devem, fez aparecer o jardim e parque do Infante D. Pedro. Em 1918 propôs as expropriações para logo executar o plano da avenida central, que hoje tem o seu nome e que transformou completamente a fisionomia da cidade dando-lhe um ar moderno e condígno – diríamos, um ar de liberdade.

 

Alberto Souto é um desses nomes que os aveirenses não esquecem, antes elogiosamente glorificam, sobretudo porque representou em nível superior, durante longas dezenas de anos, a nossa mentalidade. É preciso não saber nada de Aveiro e da sua região para não ligar o nome deste homem a tantas manifestações da vida citadina e a tantos sonhos, muitos dos quais se tornaram realidade. Licenciou-se em Direito e logo manifestou espírito vivíssimo e inteligência pronta; grande coração dotado de extrema sensibilidade, homem simples e de vasta cultura, invulgar orador que arrebatava e fazia vibrar, foi deputado às Constituintes de 1911; publicista de linguagem lapidar, fundou e dirigiu a semanário A liberdade de 1911 a 1915; revelando a sua reacção quando se tomavam atitudes para prejudicar Aveiro, soube ouvir os anseios do povo que serviu com denodo; enamorado da cidade, do distrito e da Ria, publicou dezenas de estudos e inúmeros dispersos sobre temas regionais, de geologia, de geografia, de arqueologia, de história, de arte, de folclore, etc. Como se tudo não bastasse, Alberto Souto foi Presidente da Junta Autónoma da Ria e Barra de Aveiro, Director do Museu local e Presidente do Município. A sua actividade mostrou-se, de facto, muito complexa; podemos contudo resumi-la, dizendo que amou entranhadamente a terra aveirense, que lhe ficou a dever realizações de vulto. Viria a falecer no vizinho lugar do Bonsucesso (Aradas), em 1961, com 73 anos de idade. Deixou no testamento a razão por que pedia que na sua sepultura houvesse uma cruz: – «Eu sou cristão. Adoro Deus e creio na virtude divina de Jesus que foi muito justo e muito bom e a cuja protecção muitas vezes me tenho confiado».

Aveiro não pode esquecer a plêiade destes e doutros homens insignes que a dignificaram e a engrandeceram, que lhe traçaram caminhos de futuro e que deixaram bem vincados os pés nas sendas de terra livre. Desgosto é para nós não podermos rememoriar mais nomes ilustres.

 

Manifestações de progresso e de liberdade

Uma das condições para o progresso de qualquer terra, seja cidade, vila ou aldeia, é a existência de vias de comunicação; assim o entenderam os nossos governantes do século XIX. Aveiro, privada da passagem da grande via rodoviária que é a estrada de Lisboa ao Porto, sentia-se arredada e à margem; era difícil sair de cá e também só a visitava quem tinha necessidade.

A primeira estrada a ser construída foi aquela que vai de Aveiro a Viseu; as obras do troço até Albergaria-a-Velha tiveram início em 1854, o qual se utilizou da ponte de madeira mandada erguer uns anos antes por conta de verbas do Governo Civil de Aveiro. Ficava assim a cidade ligada à principal estrada do País, que passava por aquela vila; posteriormente, principiando em 1863, prosseguir-se-ia na / 38 / abertura da estrada para Viseu, franqueada à circulação a partir de 1874.

Em 1855 foi iniciada a construção da estrada de Aveiro para o Forte da Barra, passando pela Gafanha da Nazaré; seria concluída em 1861. Mais tarde, unidas as margens do canal de Mira com uma ponte, o traçado prosseguiria para a Barra e para a Costa Nova do Prado.

A partir de 1856, uma outra estrada se construiu, que iria de Aveiro a Penacova por Oliveira do Bairro, Malaposta e Anadia; constituía uma nova ligação com a estrada de Lisboa ao Porto.

Em 1862 principiava também a construção da actual estrada para Águeda, por Eixo, Eirol e Travassô, que depois seguiria para Tondela e Covilhã; como variante desta, seria lançado em 1869 um troço de ligação entre Eixo e São João de Loure, com três pontes de ferro.

Uma outra estrada, começada em 1867, foi a que tinha por termo a vila de Mira, passando por Ílhavo e Vagos; ligava Aveiro ao sul do Distrito.

 

Diferente factor de progresso são as vias férreas. Já é sabido o interesse que José Estêvão pôs na passagem da linha do Norte por Aveiro; e conseguiu-o. Efectivamente, a 18 de Julho de 1863, uma locomotiva, vinda do norte até Aveiro, atravessava a ponte de Esgueira pela primeira vez; mas, somente a 10 de Abril do ano seguinte, pela demora no aterro do vale do Cojo, seria inaugurada a parte que vai desta cidade a Taveiro.

Uma nova via férrea, que se planeou construir, foi a Linha do Vale do Vouga e o consequente ramal para Aveiro. O projecto deste ramal, aprovado em Fevereiro de 1909, estava executado em Setembro de 1911. Todo o conjunto – Espinho-Sernada-Aveiro-Viseu – ficou pronto em 1914.

 

Neste quadro de comunicações podemos também referir os serviços dos correios que, remontando ao século XVI, se foram organizando por todo o País. Na reforma postal de 1852, Aveiro era considerada como Direcção dependente da Administração de Coimbra. A 2 de Setembro de 1856, inaugurava-se o telégrafo eléctrico em Aveiro; e, no ano seguinte, a malaposta alcançava o Distrito de Aveiro.

 

Deixemos estes índices de progresso local e voltemos a manifestações de liberdade – e estas dos nossos dias. Foi nos últimos anos que se realizaram em Aveiro três congressos da Oposição Democrática, que agrupando gente de variadas tendências políticas e ideológicas, aqui reuniram centenas de pessoas vindas de todo o País. A sua finalidade consistiu não só em analisar e discutir os problemas próprios, mas principalmente em estudar a situação nacional com os seus múltiplos problemas e carências, apontando ao mesmo tempo novos rumos a seguir, à margem da ordem estabelecida pelo regime autoritário, então vigente.

E até aconteceu que, nos primeiros minutos do dia 25 de Abril de 1974, através das antenas da Rádio Renascença, foi para o ar o sinal aglutinador dos homens sem sono que, na Revolução dos Cravos, venceram a Ditadura: – «Grândola, vila morena... o Povo é quem mais ordena». O anúncio foi cantado por Zeca Afonso – de seu nome completo, José Afonso Cerqueira da Encarnação – um homem nascido em Aveiro e de génese aveirense. Se o grito entrou no peito dos portugueses, numa onda de entusiasmo, ele saiu primeiro dum peito que respira liberdade no berço da Liberdade.

Todavia, o entusiasmo inicial, na alegria das liberdades cívicas alcançadas, ia esmorecendo entre o povo, porque no horizonte nacional levantava-se a ameaça de nuvens negras a pressagiar uma nova Ditadura; neste contexto, os ânimos andavam preocupados. Os bispos portugueses, no seu campo específico, mostravam-se firmes na defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana, nomeadamente do direito à informação livre e objectiva e do direito de a Igreja Católica em Portugal possuir e orientar uma estação emissora própria.

Pretendendo apoiar os bispos pela sua determinação corajosa, os cristãos da Diocese de Aveiro concentraram-se na cidade em grandiosa manifestação, na tarde de 13 de Julho de 1975. Com o bispo à frente, a inolvidável jornada de luta pela liberdade terminou junto da catedral, envolvendo o vetusto cruzeiro gótico-manuelino. Era uma multidão de cerca de quarenta mil pessoas, provenientes de todas as categorias sociais.

Desta forma, teve início também em Aveiro uma série de manifestações de cristãos, que se realizariam em diversas cidades do País, em defesa da liberdade então novamente ameaçada. Por fim, a Emissora Católica Portuguesa – Rádio Renascença – que havia sido violentamente ocupada por forças adversas ao ideal religioso, seria restituída à sua legítima proprietária.

 

Um democrata de coração

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É tempo de ultimar as notas subordinadas ao tema da liberdade em Aveiro; elas terão o seu limite com a evocação de D. João Evangelista de Lima Vidal. Talvez fechemos com chave de ouro.

Este homem, que nasceu em Aveiro em 1874, ao que ele supunha na proa de alguma bateira, sentia que entre ele e Aveiro havia mais do que uma simples fraternidade; chegava a crer que existia uma verdadeira / 39 / encarnação, o encontro de duas coisas no mesmo ser; com os beiços a saber a salgado, a pingar gotas de Ria por todo o corpo e por toda a alma, dizia ser uma nesga, embora minúscula, da deliciosa aguarela de Aveiro, um pedaço da nossa terra.

D. João Evangelista de Lima Vidal

Busto existente no Museu de Aveiro, da autoria de João Calisto

Nós não podemos separar o Arcebispo Lima Vidal da sua grande obra em Aveiro: o trabalho pela restauração da nossa autonomia religiosa. Os católicos – e mesmo os aveirenses de qualquer ideologia – sabem que foi ele, pela sua influência e prestígio, aliados ao entranhado amor ao berço natal, quem conseguiu levar as autoridades da Igreja a reconstituírem a Diocese de Aveiro, forçadamente extinta em 1882. O ano de 1938, pela via religiosa, ficou a marcar um novo capítulo na história da liberdade em Aveiro.

Depois, Lima Vidal foi inesperadamente escolhido para nosso Bispo. Então, todos os que o conheceram viram, se já não o soubessem, como era rica a sua personalidade. Com bondade translúcida, acarinhava os humildes; com preocupação altruísta, interessava-se por todos; com paternal caridade, ouvia as necessidades alheias; com delicada compreensão, aconselhava jovens e adultos. Grande e modesto, dedicava-se sem nada perder, dava-se sem se diminuir, fazia-se maior, tomando-se mais pequeno. Ao reforçar pedidos de empregos, solicitar favores para patrícios ou não, valer a aflições de conhecidos e desconhecidos, Lima Vidal era, em muitas e muitas oportunidades, o libertador de consciências atribuladas, o amparo de vidas em crise, a ajuda de necessidades; em 1957, não receou mesmo subscrever um pedido de amnistia para presos por crimes políticos e ainda outro para presos por crimes de delito comum. Enfim, até à morte, ocorrida em Janeiro de 1958, passou a vida a servir. Desde o dia 2 de Abril de 1974, o bronze imortaliza-o no Largo da Apresentação.

Naturalmente, nós pressentimos o antigo Bispo de Aveiro na moldura dos que vivem numa terra chã e anfíbia, bem junto à água donde, extraindo o sal, as algas e o peixe, também tiram o pão, senão mesmo o próprio carácter. Nele vemos alguém que alimentou um entranhado aveirismo – esse misto de amor dos aveirenses pela sua terra, de saudade pelas suas gentes, de interesse pelas suas coisas, de entusiasmo pela sua tradição, de orgulho pela sua história; esse sentimento que os leva a solidarizarem-se num ideal de unidade, apesar da diversidade de mesteres e da disparidade de opiniões; esse respeito e cultivo da honrosa herança recebida, que se traduz na religiosidade espontânea e cristã, na bondade natural e simples, na tolerância amiga e compreensiva, na liberdade ordenada e consciente.

Mas... falar deste aveirense é demasiado supérfluo, porque a sua memória mantém-se perene no sentimento dos patrícios. Era um homem bom e tolerante; era um Arcebispo caritativo e santo; era um amigo de todas as horas. Certa vez escreveu: – «Vim do povo, pertenço ao povo, trabalho para o povo, sinto com o povo, ausculto o povo, vou ao encontro do povo; sou um democrata de coração».

 

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NOTAS

(1) – Alguns topónimos e outras palavras portuguesas, em que talvez entre a base ala, que significará ‘água corrente ou parada, pântano, arrooo’: –Alarda → Arda; AIuela; Alviada, na Feira; Alviela; Alagoa; Alagoela, em Eixo; Alvóo → Avô; Alafoen → Lafões; Alamenara → Almeara → Almiar; Alamenara → Almenar → Lumiar; Alazira → Lazira → Lezíria; Alverca; Álamo; Lamigueiro; Leixões; Leça; Lima; Lena; Leirla; Liz. / 40 /
      Alguns topónimos e outras palavras portuguesas, em que talvez entre a base avo (av, ava, apa, sava, lava), que significará ‘água livre, curso de água, rio’: - Illiabum → Illiavo → Ílhavo; Cádavo → Cávado; Cadaval; Ave (rio e povoações); Avanca; Avizela; Vizela; Viseu; Viana; Vez; Avis; Vouga; Vouzela; Gafanha; Pavia → Paiva; Vagos; Vagueira; Vacariça; Ovar; Veiros; Vale; Vala; Valença; Valada; Valado; Veia; Lava; Lavar (verbo); Lavar, perto de Barcelos; Lavadoros, perto da foz do Douro; Lavadorinhos, perto da foz do Douro; Laveira e (Monte) Lavar, perto de Lisboa; Lavos, perto da foz do Mondego; Lavandeira, de Soza; Lavaça ou rabaça, planta da zona da ria de Aveiro; Labaçol, outra planta da ria; Vessada; Devesa e Devesas; Aveiras; Avelar.
       Alguns topónimos e outras palavras portuguesas, em que talvez entre a base ariu (ar, ara), que significará ‘água’: – Real ou Rial, ribeiros em Gaia e Feira; Arigus → rigus → rivus → rio; Ariga → riga → ria; Aruga → ruga → rua (significando mesmo corrente de água, no baixo latim); Corrugus →  córrego → corgo; Arrugius → arruio → arroio (e Arrujo, em Eixo); Aripa → ripa → riba; Ariparium → riparium → ribeiro; Arelho; Arrentela; Arregaça; Arrifana; Arauca → Arouca; Lav-arare → lavrar; Arar; Arena → Areia; Esgueira.
         Para outros a etimologia de Aveiro será Lavara, cidade dos lusitanos na Mesopotâmia Douro-Vouguense, citada por Cláudio Ptolomeu; assim: – Talábriga → Talavera → Lavara → Alavarium → etc. Ainda para outros: – Aquarium → Augueiro → Aueiro → Aveiro. E até: – Aviarium → Alaviarium → Alavarium → etc.

(2) – Torre do Tombo, Cortes, Suplemento, Maço I, n.º 5.

(3) – Torre do Tombo, Chancelaria de D. Duarte, Livro I, fI. 52 v.

(4) – Torre do Tombo, Chancelaria de D. Fernando I, Livro 1, fls. 105-105 v. 107-108.

(5) – Torre do Tombo, Extremadura, Livro 2, fls. 70 v – 71.

(6) – Torre do Tombo, Extremadura, Livro 2, fls. 70 v - 71.

(7) – A 17-VI-1507, D. Jorge de Lencastre escreveu uma carta à Câmara Municipal de Aveiro sobre assuntos de interesse local, por onde se prova que o fidalgo era, na Corte, solicito procurador dos aveirenses.

(8) – Como vimos na nota n.º 1, de AlavóoAlvóo terá vindo Avô; por isso, parece verosímil que Alavóo (Alaavo) tenha também dado Alabóo → Alabó → Albói. Coisa curiosa: no sul da Velha Hispânia havia outrora o rio Alebus, que hoje tem o nome de Vinalapó e banha Elche, na provinda de Alicante.
       Há também quem faça descender Albói de alboio – alpendre ou telheiro destinado à guarda de mercadorias transportadas ou a transportar pelos barcos que vogavam a Ria – termo que ainda agora se usa com o significado de ‘cúpula ou abóbada de sala’ e, em certas regiões do Minho, mesmo com a pronúncia de albói, com o de ‘alpendre’, de ‘arrecadação’. E outrossim lhe dão a origem do inglês all-boys ou mesmo de Albion, fundamentando esta hipótese numa provável colónia de ingleses.

(9) – Câmara Municipal de Coimbra, Índices e Summarios, 2.ª parte, fascículo I, pg. 37.

(10)Considerações sobre a Gente de Aveiro, 1974, pg. 28.

(11) – Eduardo Cerqueira, ob. cit., pgs. 28 e 30.

(12)O Padre Fernão de Oliveira e a sua Obra; Lisboa, 1898, pg. 2.

(13)A Arte da Guerra do Mar, Edição do Ministério da Marinha, 1969, pgs. 23-25.

(14) – Rangel de Quadros, Aveirenses Notáveis, fls. 20-21.

(15) – Marques Gomes, Memórias de Aveiro, pgs. 84-85.

(16) – Vd. Arquivo do Distrito de Aveiro, 1959, pgs. 255-258. Alvará e carta de elevação de Aveiro a cidade.

(17)Milenário de Aveiro, 1959 – Colectânea de Documentos Históricos – lI, Aveiro, pg. 592-593.

(18) – Arquivo Secreto do Vaticano, processo consistorial n.º 166, ano de 1774, fls. 41, v-42.

(19) – Id., fls. 35-35, V.

(20)Memórias de Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato, revistas e coordenadas por Ernesto de Campos de Andrade, Coimbra, 1933, pgs. 28-29.

(21) – A 20 de Fevereiro de 1866, as cabeças dos aveirenses mortos pela Liberdade foram trasladadas para o monumento mandado erigir no cemitério central pela Câmara da presidência de Manuel Firmino de Almeida Maia. A 18 de Junho de 1878, no Porto, foram também trasladadas para o cemitério do Repouso as ossadas dos mártires da Liberdade, entre elas as dos aveirenses.

(22) – António Feliciano de Castilho, citado por Júlio de Castilho, Memórias de Castilho, Tomo lI, Livro lI, pg. 159.

(23) – O Distrito de Setúbal seria criado a 22 de Dezembro de 1926.

(24) – José Estêvão, Estudo e Colectânea, Edição da Comissão do Centenário, Aveiro, 1962, pg. 44.

(25) – O farol de Aveiro só viria a ser projectado em 1884; seria construído a partir de Março de 1885, ficando pronto no Verão de 1893.

(26)O Povo de Aveiro, n.º 480, 28-III-1937, pg. 1.

 

páginas 14 a 40

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