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A barra na base do progresso
Ao referirmos atrás à situação da
barra de Aveiro, deixámo-la a sul da Vagueira, junto à linha
divisória dos concelhos de Mira e de Vagos. Durante o século XVIII o
seu estado foi piorando, e numerosas representações foram entregues
ao Governo com vista a que este desse remédio a tão deplorável
situação. É que os aveirenses sabiam ser factor de vida, de
progresso e de liberdade o bom estado da sua barra. D. José I, a 27
de Maio de 1756, atendendo às reclamações dos nossos antepassados,
resolveu criar a Superintendência da Barra e lançar o imposto do
real para ser pago por todas as Câmaras da Comarca de Esgueira, a
fim de se custearem as despesas com a abertura de uma nova barra em
São Jacinto.
Os trabalhos não se puderam então
fazer, devido a uma grande cheia: as ilhas e as salinas da ria, os
campos do Vouga e os bairros baixos de Aveiro ficaram inundados por
muito tempo; as águas represadas causaram enormes danos. Apenas em
Janeiro de 1757 o capitão-mor de Ílhavo, que era o aveirense João
de Sousa Ribeiro da Silveira, foi autorizado a abrir um regueirão na
areia, onde antes, na Vagueira, tinha estado a barra; mas tudo isto
se tornava muito precário.
Doze anos após, o Senado Municipal
representou a El-Rei sobre a falta de estabilidade e de segurança da
barra; e a este pedido outros mais se seguiram, pois os infortúnios
ocasionados sobressaltavam constantemente a região. Os aveirenses e
a sua Câmara não desistiram das pretensões sobre a abertura de uma
barra capaz; por isso, a 16 de Abril de 1794, a Câmara encarregava o
Dr. Manuel Joaquim Lopes Negrão de conseguir do Príncipe Regente,
mais tarde D. João VI, as providências necessárias para a
efectivação das desejadas obras.
Ante a miséria geral e as doenças
que dizimavam a população, a 2 de Janeiro de 1802, o ministro D.
Rodrigo de Sousa Coutinho, depois Conde de Olivares, encarregava os
engenheiros Coronel Reinaldo Oudinot e
Capitão Luís Gomes de Carvalho de
separadamente procederem a estudas para a abertura da nova barra, os
quais desistiram do sítio da Vagueira e escolheram um outro perto de
São Jacinto, próximo da anterior localização no século XVI, a 17600
metros a norte da barra velha. O Eng.º Oudinot enviaria ao Governo o
seu projecto a 6 de Março; e a 17 de Abril o Eng.º Gomes de Carvalho
remeteria a sua «Memória descritiva ou notícia circunstanciada do
plano e processo dos efectivos trabalhos hidráulicos empregados na
abertura da barra de Aveiro segundo as ordens de S. A. R. o príncipe
Regente Nosso Senhor».
Entretanto, os homens de Aveiro
estavam impacientes por via da insalubridade das águas pantanosas da
laguna, pelo prejuízo na feitura do sal e pelas inundações na
cidade. A própria Confraria de S. Miguel resolveu a 7 de Fevereiro
de 1802, já após aquela decisão superior, que, no primeiro ano
depois da abertura da barra nova, se desse a Sua Alteza Real a terça
parte líquida do sal das suas marinhas, «como prova de gratidão pela
munificência que por essa obra havia tido aquele Príncipe». E a 8 de
Abril o Príncipe Regente ordenava a demolição das antigas muralhas
de Aveiro, que ameaçavam ruína, devendo utilizar-se a pedra nas
obras da barra; diríamos hoje que foi uma triste decisão que as
condições do tempo obrigaram a tomar.
Os planos definitivos dos dois
engenheiros, essencialmente idênticos, foram aprovados pelo Príncipe
D. João; recebida a comunicação em aviso régio de 5 de Julho do
mesmo ano, logo se começaram a executar os trabalhos. Em Dezembro de
1803, estando eles em andamento, Oudinot foi transferido para a Ilha
da Madeira, onde faleceu em 1807; continuou a dirigir as obras o
citado Eng.º Luís Gomes de Carvalho.
Após porfiados esforços, não sem
graves desgostos e contrariedades, a abertura final da barra nova,
facto de excepcionaI importância para o progresso de Aveiro,
realizou-se no dia 3 de Abril de 1808, às sete horas da tarde. Do
acontecimento lavrou-se um auto, que tem a data de 15 de Abril e foi
subscrito por Miguel Joaquim Pereira da Silva; depois de referir os
trabalhos preparatórios e a maneira como se deu o rompimento da duna
de areia, lê-se no documento: – «As águas que cobriam as ruas da
praça, desta
/ 28 / cidade, e os bairros
do Alboi e da Praia, abaixaram três palmos de altura dentro de vinte
e quatro horas e outro tanto em o seguinte espaço, e em menos de
três dias já não havia água pelas ruas [...] e toda a cidade ficou
respirando melhor ar por estas providências com que o Céu se dignou
socorrê-la e a seus habitantes com esta grande obra da barra».
Assim ficou estabilizada a barra,
depois sucessivamente melhorada com outras obras e com a construção
do porto marítimo, até aos nossos dias. Aveiro, sempre unida às
vicissitudes da barra e bem consorciada com o mar e com a ria,
passou a olhar com optimismo um melhor futuro de progresso e de
liberdade.
Um bispo, defensor da liberdade
No princípio do século XIX, a
Diocese Aveirense teve como Bispo D. António José
Cordeiro, natural de Coimbra, figura erudita, máscula,
enérgica e disciplinadora, que viria a falecer em 1813; na altura da
sua elevação ao episcopado, era professor efectivo na velha
Universidade; dele se diz ter sido, no desempenho desse cargo, um
«homem muito escrupuloso e executor exacto da lei; nunca faltava à
aula [...]; tinha muito saber, e das suas prelecções tirava-se muita
utilidade». (20)
Em 1807 Portugal entrava numa das
graves crises da sua história, provocada exteriormente pelas
arbitrariedades despóticas de Napoleão Bonaparte; dava-se em
Novembro a primeira invasão francesa. D. António José Cordeiro, além
de atender aos deveres de homem da Igreja, manifestou-se também como
um grande defensor das liberdades de Aveiro e da Pátria, durante
este período de inquietação; após as primeiras hesitações ou
atitudes de prudência, no breve tempo em que o País esteve sob a
ditadura de Junot, o nosso Bispo aparece-nos como uma encarnação do
patriota e do aveirense.
Vitoriosa a revolta nortenha,
formou-se no Porto, a 19 de Junho de 1808, a Junta Provisional do
Supremo Governo do Reino, presidida pelo respectivo Prelado. A
22, o Bispo de Aveiro deu conhecimento dos factos e mandava que se
praticassem os costumados sinais de regozijo: te-deum, toques
festivos de sinos e luminárias nas igrejas e nas casas; a própria
Câmara Municipal mandava arvorar numa das janelas dos Paços do
Concelho a bandeira da cidade e restaurar os escudos das armas
portuguesas picadas por ordem de Junot. O povo percorreu as ruas da
cidade, dando vivas à Santa Religião, à Família Real e à Casa de
Bragança.
Mas, sendo necessária agir, as
ordens da Prelado sucediam-se – pediu a colaboração monetária para a
resistência, instigou o povo contra os injustos opressores, rogou a
união aos legítimos portugueses, mandou aos eclesiásticos que
pegassem em armas para lutarem pela Religião e pela Pátria,
secundando assim a guerrilha de Manuel Velho que, entre Coimbra e
Porto, molestava o estrangeiro.
Durante estes dias, constituiu-se em
Aveiro uma Junta Provisional, semelhante à do Porto e dela
dependente. Foi a 7 de Julho que, no Paço Episcopal, sob o maior
segredo, se reuniram diversas individualidades do Exército, da
Nobreza e do Clero que estabeleceram aquela junta sob a presidência
do Prelado e planearam a fortificação e a defesa da zona. Até ao fim
das Invasões, D. António não foi apenas o chefe espiritual do povo,
mas também o responsável na luta contra o inimigo; os documentos que
assinou e expediu bem demonstram a actividade de um dos grandes
combatentes pela liberdade. Dada a sua formação religiosa e a sua
piedade extraordinária, ele via que, se Deus não guardasse a cidade,
em vão vigiaria a sentinela, e instantemente solicitava que se
pedisse em preces públicas e particulares a ajuda divina, pela
intercessão de Santa Joana, «a quem já em princípio da nossa
consternação havíamos tomado por medianeira para com o Pai de
Misericórdias» – escrevia o Prelado a 5 de Agosto de 1808. Ele
próprio, na procissão de penitência que ordenou se fizesse na tarde
do dia 7 desse mês, desde a catedral até à igreja de Jesus, seguiu a
pé-descalço o andor do Senhor Ecce Homo, ante o espanto e a
comoção de todos.
Mal terminada a primeira invasão
napoleónica, dá-se inesperadamente a segunda nos princípios de 1809.
Entrando por Chaves, Soult, a 29 de Março, chegava ao Porto, que
logo capitulou. Em Aveiro, aos primeiros rumores da guerra, o povo
armou-se; assumiu a orientação o Prelado, que mandou executar o
plano de defesa do ano transacto. Quando, porém, chegou a triste
nova do Porto, verificou-se a debandada geral; D. António, todavia,
manteve-se firme e pôs à disposição da campanha as sobras da
resistência anterior. Os aveirenses não foram então dos menos
aguerridos no combate; somando-se à divisão do coronel inglês Trant
no início de Abril, guarneceram a margem sul do Vouga de tal forma
que o inimigo não transpôs e rio; a 10 de Maio, uma parte
atravessava o Vouga para o norte, surpreendendo e intruso em
Albergaria-a-Nova, enquanto outra, indo pela ria, desembarcava em
Ovar à retaguarda da ala direita francesa e acossava o invasor, que
se pressentia já na derrota. Foi nesta precisa ocasião, a 13 de
Maio, que entrou na barra de Aveiro um comboio marítimo inglês,
composto de trinta e nove navios de transporte, escoltados pelo
brigue de guerra Port Mahon, com mantimentos, munições e
forragens para o exército
/ 29 / inglês, tendo ancorado
na chamada praia da Senhora.
Mas, em Junho de 1810, de novo o
espectro da luta armada; a 30 desse mês, o Bispo de Aveiro escrevia
aos párocos, clero e fiéis e solicitava que se fizessem preces em
favor da causa portuguesa e que o povo colaborasse com eficácia na
defesa geral. Embora com extrema dificuldade, Massena e as suas
hostes foram avançando no centro do País. Entre nós, como noutras
povoações, deu-se ordem de abandono total dos habitantes, incluindo
as religiosas de clausura; a cidade refugiou-se nas areias de São
Jacinto e da Gafanha e nas ilhas da ria, estando em Setembro
completamente deserta. Assim, o inimigo só poderia atingir parte da
população por Ovar, com acesso arenoso e difícil. Contudo, marchando
os franceses para a sul após a derrota do Buçaco, Aveiro respirou e
os seus habitantes começaram a regressar.
Ainda outra vez, diante da
permanência do estrangeiro em território nacional, D. António
exortava, a 28 de Fevereiro de 1811, a santidade da vida, para que
Deus afastasse os castigos iminentes, e recomendava a piedade,
especialmente a devoção mariana do Terço do Rosário aos domingos e
dias Santos, tanto nas igrejas como nas capelas.
O invasor seria finalmente
destroçado em Março de 1811, continuando-se na sua perseguição
durante os meses seguintes, mesmo através da Espanha e da França. A
18 de Abril, o Bispo de Aveiro anunciava o feliz acontecimento,
possuído de intensa satisfação; por isso prescrevia o canto do
te-deum em todas as igrejas, em acção de graças pela libertação
de Portugal e pela vitória sobre os «bárbaros inimigos sem Religião,
sem fé e sem moralidade».
Pela sua extraordinária acção de
defensar da liberdade de Aveiro e da região, este homem bem se pode
considerar como um dos grandes aveirenses; por isso não o esquecemos
aqui.
Aveiro na vanguarda da liberdade
Na início de oitocentos, Portugal
continuava a sofrer a influência estrangeira do liberalismo
constitucional da Inglaterra e da mentalidade revolucionária da
França. No rescaldo das invasões napoleónicas ficaria entre nós um
certo descontentamento social e político, ante as misérias causadas.
Em Londres publicavam-se dois jornais portugueses, que incitavam à
revolta contra o Governo legítimo; e em Aveiro foi preponderante e
decisiva a acção da loja maçónica dos Santos Mártires.
Monumento aos Mártires da Liberdade.
Expressivo monumento que no
Cemitério Central de Aveiro evoca os Mártires da Liberdade. |
Regressando ao País depois de andar
ao serviço de Napoleão, o General Gomes Freire de Andrade tornou-se,
em 1816, o chefe dos descontentes, feito também Grão-Mestre da
Maçonaria Portuguesa. Pensou, com os seus correligionários, numa
conspiração que, descoberta, o levou afinal à forca, em Outubro.
Como razão da sua atitude, os insurrectos apresentavam o desejo de
libertar a Nação da influência dos ingleses, que cá continuavam;
mas, mais do que isso, queriam substituir o Governo estabelecido por
outro revolucionário. Vê-se que as novas ideias iam alastrando de
norte a sul, especialmente nos centros principais.
No Porto existia, pelo menos desde
1818, um agrupamento a que deram o nome de Sinédrio;
desenvolveu grande acção facciosa, recrutando adeptos e minando o
Exército com o auxílio das sociedades secretas de Madrid e com a
ajuda da Espanha e do seu ministro em Lisboa.
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Assim se preparava o
movimento que, em Agosto de 1820, com tropas a seu lado, provocou a
revolução. Vitoriosa esta, imediatamente se nomeou a Junta
Provisória do Governo Supremo do Reino, composta de quinze membros
sob a chefia de Manuel Fernandes Tomás, com o encargo de governar em
nome do Soberano, ausente no Brasil, e de convocar as Cortes para se
redigir uma Constituição.
Aveiro aderiu ao movimento a 30 de
Agosto, por proposta do Juiz de Fora, Teixeira Lebre. Reuniu-se o
/ 30 / Conselho da Câmara,
desfraldou-se a bandeira e reconheceu-se a Junta; lavrou-se um auto
que contém cerca de cento e vinte assinaturas, pelas quais se
depreende que esteve presente ao acto o que havia aqui de mais
distinto. O Bispo D. Manuel Pacheco de Resende, ausente, prometeu
mandar por escrito a sua adesão.
Tendo-se pronunciado Lisboa, em
Setembro, a favor da revolta, após o seu alastramento pelo País sem
grande oposição, foram destituídos os governadores reais e feitos
entendimentos com a Junta do Porto, criou-se a Junta Provisional
do Governo Supremo do Reino, que em Lisboa assumiu o poder.
Estava iniciado o Regime Liberal.
Não foi o Bispo de Aveiro, mas o
Vigário Geral – Dr. Gonçalo António Tavares de Sousa – quem
comunicou, a 17 de Outubro, as primeiras Ordens do novo Governo: –
juramento de obediência de todo o Clero ao Governo estabelecido, às
Cortes e à Constituição que elas haviam de fazer, mantida a Religião
Católica e o Casa de Bragança; actos litúrgicos de acção de graças,
com todo o povo adrede convocado, pela feliz união dos dois
Governos; e preces públicas a favor da causa em que a Nação estava
empenhada.
Entretanto, chegavam as notícias ao
Brasil; D. João VI, já Rei efectivo desde 1816, viu-se obrigado a
reconhecer a Constituição, embora não decretada, e resolveu
regressar a Lisboa, onde chegaria a 3 de Julho de 1821. Tendo já
sido eleitos os deputados para as Cortes Constituintes, estas
reuniram-se a partir de Janeiro de 1821 e logo começaram a aprovar
medidas contra a liberdade e a acção do Clero. A 9 de Março, as
Bases da Constituição eram aprovadas e promulgadas; iria então
proceder-se ao seu juramento por todo o País e, quem se negasse,
deixaria de ser cidadão e seria exilado. A cerimónia realizou-se em
Aveiro no dia 29, presentes a Câmara, o prelado e demais autoridades
civis, militares e eclesiásticas, com te-deum, luminárias e
fogo de artifício; lavrar-se-ia um auto de juramento, que viria a
ser queimado numa sessão camarária de 13 de Setembro de 1823, em
cumprimento de um ofício da Secretaria de Estado dos Negócios do
Reino, de 21 de Agosto. A 10 de Abril foi o juramento das Forças de
Linha, com parada em Santo António, missa solene e, no Convento de
Jesus, te-deum presidido pelo Vigário Geral.
Como persistisse a intranquilidade
pelo País fora, D. Manuel Pacheco de Resende achou bem intervir a
favor do sossego na sua Diocese; a 7 de Abril escreveu uma pastoral,
exortando os fiéis a conservarem-se «firmes em uma perfeita unidade
de sentimento e de afectos» e a acatarem as leis e a autoridade de
que haviam sido revestidos os «representantes das províncias do
Reino unidas em Cortes extraordinárias», para darem ao País «uma
Constituição que faça a base e o fundamente da sua felicidade».
Elaborada a Constituição, o
Congresso discutiu-a por mais um ano; assinada a 23 de Setembro de
1822 e jurada peles deputados a 30 do mesmo mês, o Rei prestou-lhe
assentimento a 1 de Outubro. Em Aveiro, com o juramento local a 3 de
Novembro, fechava-se o ciclo de 1820.
A Constituição, imprimindo uma
mudança brusca, provocou uma reacção generalizada. Apesar dos apelos
à união, à harmonia e à ordem, a intranquilidade não parava,
estalando mesmo em Vila Real uma revolução que se alargou a toda a
província de Trás-os-Montes, mas que foi debelada pelas tropas féis
ao Governo. No dia 27 de Maio de 1823 rebentou em Lisboa uma revolta
militar, chefiada por D. Miguel (Vilafrancada); os dissidentes
seguiram imediatamente para Vila Franca de Xira, onde aclamaram o
Absolutismo. D. João VI aceitou os acontecimentos, organizou nove
Ministério e nomeou o Infante generalíssimo e comandante do
Exército; assim se abolia a Constituição de 1822.
Os factos tiveram repercussão em
Aveiro; durante a rebelião do norte, ante uma Câmara Constitucional,
procurou-se aliciar a cidade para o realismo. Proclamado depois D.
João VI como Rei Absoluto, a nova Vereação festejou a ocorrência, a
4 de Junho, e dirigiu-se para o Convento de Jesus, onde foi cantado
um te-deum; e, no dia 12 seguinte, novas festas se
realizariam entre nós, com outro te-deum na catedral e com um
animado baile na casa do Barão de Vila Pouca e governador militar,
D. Rodrigo de Sousa Teixeira da Silva Alcoforado. Até aconteceu que,
uns meses passados, precisamente no Outono desse ano de 1823, D.
Miguel, indo do Porto para Lisboa, desviava-se por Angeja, onde foi
hóspede de D. João de Noronha e Camões de Albuquerque Sousa Moniz,
Marquês de Angeja e Conde de Vila Verde; aqui deu o Príncipe
audiência às pessoas mais categorizadas da região, autoridades
judiciais, civis, militares, administrativas e eclesiásticas – estas
precedidas por D. Manuel Pacheco de Resende.
Apesar de tudo, a Vilafrancada não
surtira os efeitos desejados, em virtude do entrave de certos
ministros de que o Monarca se rodeara. Por isso, D. Miguel
revoltava-se novamente a 30 de Abril de 1824 (Abrilada); mas, nesta
ocasião, o Infante era demitido pelo pai e obrigado a exilar-se.
Após a morte de D. João VI, ocorrida
a 10 de Março de 1826, seu filho D. Pedro confirmava a regência na
pessoa da Infanta D. Isabel Maria, outorgava uma Carta
Constitucional, onde declarava que o Governo era monárquico,
hereditário e representativo, e
/ 31 / abdicava em D. Maria
da Glória, sua filha de sete anos – que dispôs se casaria mais tarde
com D. Miguel.
Em Portugal, corriam três opiniões
sobre a sucessão no Trono: – uns entendiam ser D. Pedro o herdeiro,
porque o primogénito; outros achavam ser a Princesa D. Maria da
Glória, porque D. Pedro revoltara-se contra a Pátria na
independência do Brasil; ainda outros julgavam ser o Infante D.
Miguel, visto que D. Pedro era traidor e actualmente estrangeiro, e
sua filha também. Nestas condições, o movimento miguelista ganhou
muitos adeptos. O Infante, nomeado por seu irmão como Regente mas
logo aclamado como Rei Absoluto, chegou a Portugal a 22 de Fevereiro
de 1826; dissolveu a Câmara dos Deputados e convocou os Três Estados
do Reino. D. Pedro foi excluído da Coroa Portuguesa e abolidos os
seus decretos, incluindo a Carta Constitucional. As Câmaras
Municipais e os Governos Militares das províncias, após insinuações
secretas superiores, dirigiram petições a D. Miguel, requerendo que
se declarasse Rei Absoluto. A Câmara de Aveiro, a 16 de Abril,
nomeou uma deputação para ir à capital; o governador militar propôs
que se aclamasse o Infante a 25, em sessão extraordinária da Câmara,
convocando-se o Clero, a Nobreza e o Povo.
Contudo, prosseguia a agitação por
toda a parte. No que se refere a Aveiro, o desembargador da Relação
do Porto, Dr. Joaquim José de Queirós, havia tentado convencer os
seus colegas no Parlamento dissolvido a protestar contra tal acto
arbitrário de D. Miguel, mas nada conseguira. Recolhia a casa, em
Verdemilho, vencido mas não convencido; arvorado em promotor da
revolta, desenvolvia aí uma constante conspiração contra a política
anticonstitucional e tentava organizar um plano de rebelião, com o
apoio de alguns influentes colaboradores.
Na base de todo o projecto
arquitectado por Queirós estava a intervenção activa do Batalhão de
Caçadores Dez, de Aveiro, do comando do Coronel José Júlio de
Carvalho, o qual andava por fora; tendo regressado de Lamego no dia
3 de Maio, este Batalhão, que formou na Praça do Comércio, junto aos
Arcos, logo soltou vivas a D. Pedro, a D. Maria II, ao Infante
Regente e à Carta Constitucional, havendo correspondência espontânea
do povo ali aglomerado em grande número. As represálias que
imediatamente os absolutistas quiseram exercer sobre os militares
não tiveram o efeito desejado.
Depois, os factos iam precipitar-se.
De 15 para 16, numa reunião efectuada em casa do Corregedor
Francisco António de Abreu e Lima, ficava resolvido iniciar-se em
Aveiro, na madrugada imediata, a revolução liberal contra o desaforo
Miguelista; estiveram presentes, além do referido Desembargador
Joaquim José de Queirós e do dono da casa, o Coronel José Júlio de
Carvalho, o Tenente-Coronel Manuel Maria da Rocha Colmieiro e
Francisco Silvério de Magalhães Serrão.
Na verdade, às sete horas da manhã
de 16 de Maio de 1828, principiava em Aveiro a movimento
revolucionário contra o Infante-Rei, sendo os primeiros gritos de
guerra levantados pelo desembargador e pelos soldados do Batalhão de
Caçadores Dez, com vivas à Carta Constitucional, a D. Pedro IV e à
Rainha D. Maria II. Soriano, na sua História do Cerco do Porto,
escrevendo sobre este acontecimento, diria que, embora a favor do
Absolutismo estivesse a maioria do Clero regular e secular da
cidade, quase toda a Nobreza e o Regimento de Milícias, predominava
o partido liberal, no qual militavam muitas das principais pessoas
da terra; até o próprio Bispo, D. Manuel Pacheco de Resende, era
tido como simpatizante das novas correntes. Não esqueçamos porém
que, em política, então como agora, há pessoas que podem hoje aderir
a uma ideia e amanhã seguir outra opinião...
Depois de serem presos o Governador
Militar, o Juiz de Fora, o Comandante de Veteranos, Luís Estêvão
Couceiro da Costa, e o Escrivão da Câmara, e, deposta a Vereação
Municipal, logo substituída por outra, o movimento marchou, à tarde,
para a cidade do Porto, onde chegaria no dia imediato e onde se lhe
juntariam outras tropas. Senhores da situação, os revoltosos
nomearam uma Junta Provisória, em nome de D. Pedro e da Carta.
Seguiram-se mais levantamentos. Todavia, a revolta foi contrariada e
debelada pelas tropas de D. Miguel; a 3 de Julho entrava no Porto o
Exército Absolutista que fazia fracassar totalmente a revolução
liberal de 16 de Maio. Os vencedores iriam exercer as mais violentas
represálias sobre os adversários políticas.
Passados meses, precisamente a 9 de
Abril de 1829, a Alçada do Porto condenava à morte, além de outros,
os aveirenses Francisco Manuel Gravito da Veiga e Lima, Francisco
Silvério de Carvalho Magalhães Serrão e Clemente da Silva Melo
Soares de Freitas, implicados na revolução do ano anterior, que, com
Manuel Luís Nogueira, seriam enforcados na Praça Nova do Porto, a 7
de Maio, e em seguida decapitados; as suas cabeças seriam expostas
em Aveiro, durante alguns dias, à entrada do Rossio.
(21) Em
julgamentos posteriores, mais réus foram condenados à forca ou ao
degredo... mas ficariam conhecidos na História por «Mártires da
Liberdade». O conhecido capitão João de Sousa Pizarro, oficial do
Batalhão de Caçadores Dez e ilustre representante da Casa do
Terreiro, de Aveiro, havia já perdido a vida no combate da Cruz dos
Morouços, travado a 24 de Junho de 1828 entre as duas hostes.
O citado Bispo de Aveiro, D. Manuel
Pacheco de
/ 32 / Resende, vivendo dias
difíceis no meio de guerras fratricidas, mostrou-se superior em
caridade a favor de constitucionais e de realistas. Bondosíssimo
Prelado, «sobre cujas cãs sagradas caiu também um pouco de opróbrio
e de perseguição»,
(22) deixaria fama de austero, de esmoler, de santo, de
homem de Deus, da Igreja e das almas. Apesar de tudo seria acusado e
pronunciado por liberal pela Corregedor Dr. Alexandre Duarte
Carrilho Marques, valendo-lhe a Alçada do Porto que o despronunciou.
Entretanto, a 22 de Junho de 1828,
havia rebentado na lha Terceira – Açores – outra revolta liberal; os
amotinados tinham, sem demora, instituído um Governo interino e
pedido auxílio aos emigrados. Passados meses, D. Pedro IV, aderindo
aos revoltosos, instituía a 15 de Junho de 1829 uma Regência e,
protegido pela Inglaterra e pela França, foi organizando uma
expedição contra Portugal. Em Fevereiro de 1832, D. Pedro já estava
nos Açores e, presidindo à Regência, formava um Ministério. Nos fins
de Junho, saiu da Ilha de S. Miguel com uma expedição de 7500
homens, entre os quais muitos ingleses e franceses, e desembarcou na
praia do Mindelo, a 8 de Julho; tomou a cidade do Porto e, meses
depois, de vitória em vitória sobre os absolutistas, ficou senhor do
País. A 26 de Maio de 1834, era assinada a Convenção de Évora-Monte
que marcaria o fim do Absolutismo em Portugal, o restabelecimento da
Carta Constitucional e a derrota de D. Miguel – que partia para o
exílio.
Dias antes, a 12 de Maio, nos Paços
do Concelho de Aveiro, D. Maria II fora solenemente aclamada como
Rainha de Portugal, tendo-se jurado obediência e fidelidade àquela
Augusta Senhora e à Carta Constitucional, de tudo se lavrando um
curioso e interessante auto.
Distrito
Os distritos administrativas foram
criadas em Portugal logo após o triunfo do Liberalismo. Antes de nos
fixarmos no acontecimento, talvez nos seja útil recordar alguma
coisa sobre a divisão territorial do nosso País, ao longo dos
tempos.
Assim, no século XV, Portugal estava
dividido em cinco regiões, chamadas comarcas ou províncias: – Entre
Doure e Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, e Entre Tejo e
Guadiana (incluindo o Algarve). Considerando apenas a Estremadura e
a Beira, porque nos dizem proximamente respeito, sabemos que aquela
ocupava a faixa junto ao mar, desde o Douro até ao Tejo, e nela
estavam situadas, entre outras muitas terras, Aveiro, Oliveira do
Bairro, Esgueira, Ovar e Feira, e que esta, correndo paralelamente
com a anterior, era limitada a oriente pela Espanha e nela se
encontrava a vila de Arouca.
Havendo grande progresso social e
económico no País durante os reinados de D. João lI e de D. Manuel
I, reorganizou-se em novos moldes a administração nacional. Desta
forma, nos princípios do século XVI o território foi dividido em
catorze comarcas administrativas, cada qual com uma povoação
importante por cabeça: – Lisboa, Setúbal, Santarém, Leiria,
Alenquer, Évora, Beja, Coimbra, Viseu, Guarda, Porto, Guimarães,
Torre de Moncorvo e Reino do Algarve.
Em 1523, D. João III estabeleceu uma
comarca ou correição em Aveiro; poucos anos durou, pois viria a ser
extinta em virtude da fundação da Ouvidoria de Montemor-o-Velho para
o Ducado de Aveiro, instituído nos meados do século XVI. Em seu
lugar, seria criada a Comarca de Esgueira.
Nesta altura, a Província da Beira
já se tinha alargado também por toda a região a norte do rio
Mondego, de modo que passou a ficar limitada pelo Atlântico, a
ocidente.
Ao referirmos a elevação da vila de
Aveiro a cidade, observámos como foi extinto o dito Ducado e
restaurada a Comarca de Aveiro, à qual passou a pertencer todo o
território da de Esgueira. Dessa forma, na Província da Beira
passaram a existir oito comarcas, provedorias ou correições: –
Coimbra, Aveiro, Feira, Viseu, Lamego, Pinhel, Guarda e Castelo
Branco. A comarca de Aveiro seria a base da criação do futuro
Distrito Administrativo, como já acontecera para a instituição da
Diocese em 1774.
Nos princípios do século XX,
notava-se que a velha divisão do País se tinha tornado anacrónica e
incompatível com as necessidades sociais. Logo na Constituição de
1822 se futurava a divisão do território em distritos e o modo de
neles se fazer a administração judicial, política e civil. A Carta
Constitucional de 1826 manteve tal projecto.
Passados anos, em 1833, o território
era dividido em oito províncias: Minho, Trás-os-Montes, Douro,
Beira-Alta, Beira-Baixa, Estremadura, Alentejo e Algarve; estas
foram subdivididas em comarcas, que, por sua vez, o foram em
concelhos. A Comarca de Aveiro ficou situada na Província do Douro.
Por se verificarem graves
inconvenientes na divisão provincial, que eram circunscrições
administrativas demasiado extensas, abolir-se-ia tal divisão com
esse carácter em favor da divisão distrital. Discutida a questão no
Parlamento, concluiu-se pela supressão das províncias como
circunscrições administrativas e pela substituição das comarcas por
circunscrições de extensão intermediária entre elas e as províncias;
as novas divisões territoriais chamar-se-iam distritos
administrativos, que seriam subdivididos em concelhos. Assim, a 18
de Julho de 1835, o Governo publicava um decreto, fixando em
dezassete o número de distritos
/ 33 / de Portugal
Continental e indicando os nomes das suas capitais.
(23) A 25
seguinte seriam nomeados os respectivos governadores civis.
Para Aveiro foi escolhido José
Joaquim Lopes de Lima, oficial da Marinha e deputado pelas Ilhas de
Cabo Verde, que chegou à cidade nos meados de Setembro daquele ano.
O território do Distrito de Aveiro tem-se mantido sem alterações até
ao dia de hoje, excepção feita à troca com Coimbra do concelho de
Mira com o da Mealhada, por decreto de 24 de Outubro de 1855.
Este facto colocou Aveiro ao lado
das demais cidades capitais de distrito. Necessariamente que tal
facto constitui um poderoso impulso no caminho auspicioso do
progresso material e da liberdade política e social.
Após a criação do Distrito de
Aveiro, foram as quatro freguesias da cidade reduzidas a duas, por
alvará de 11 de Outubro de 1835 assinado pelo governador civil;
publicado o documento, foi ele remetido ao Bispo da Diocese que,
tendo-se conformado com tal redução e atendendo às razões expostas
no mesmo alvará, mandou passar a competente portaria com data de 13
de Outubro. Por esta forma, constituiu-se a norte do canal central
da Ria a freguesia da Vera-Cruz; e a sul a de Nossa Senhora da
Glória; o bairro de Sá, que até então fora de Ílhavo, era
incorporado na primeira daquelas paróquias.
A matriz da freguesia setentrional
de Aveiro fixou-se na igreja da Vera-Cruz, que existia no actual
Largo do Capitão Maia Magalhães. Anos depois, pensando-se em
construir um templo mais vasto, iniciou-se no mesmo sítio uma nova
edificação que não chegou a concluir-se e foi demolida. O centro
religioso, transferido provisoriamente para a igreja de Nossa
Senhora da Apresentação, lá foi ficando com carácter definitivo.
A paróquia meridional recebeu o nome
de Nossa Senhora da Glória – talvez para honrar também a Rainha D.
Maria da Glória que não apenas Nossa Senhora – e passou a ter como
sede a igreja do extinto convento de S. Domingos.
Quanto à vetusta igreja de S. Miguel
– quiçá o mais antigo monumento da cidade, porventura edificado no
século XI mas reconstruído diversas vezes – essa foi sacrificada
pelo camartelo demolidor. O aludido Governador Civil, José Joaquim
Lopes de Lima, a pedido de certos políticos influentes, sentenciou a
sua destruição, não fosse o nome do Titular lembrar perpetuamente o
do Rei proscrito; e a demolição iniciava-se em Novembro de 1835,
poucos dias depois de extinta a freguesia.
Decorridos os anos, verifica-se, com
pena, como em Aveiro se tem feito desaparecer alguns edifícios que
eram sinais de antiguidade e de história; até da muralha nada
existe, para além de insignificativo vestígio, que possa dizer-nos o
que ela era. De facto, praticamente apeada no início de oitocentos
para se valer, como atrás referimos, à abertura da barra, o lanço
que restava junto ao Cojo e a grandiosa porta da Ribeira foram
demolidos em 1855. Que belo seria se hoje existissem estes e outros
monumentos!...
Aveiro no Parlamento
|
Neste recordar de quadros luminosos
sujeitos ao tema da liberdade em Aveiro, não podemos esquecer o
insigne aveirense, dotado de rica personalidade, favorecido por
génio invulgar e adornado de um conjunto de qualidades, qual foi
José Estêvão Coelho de Magalhães. Nasceu
em Aveiro a 26 de Dezembro de 1809, ali na característica Rua dos
Mercadores, e foi baptizado na velha igreja da Apresentação;
deram-lhe o nome de José, de seu padrinho e tio materno, e Estêvão,
por ter vindo a este mundo em dia do Protomártir de Jerusalém. Pela
vida fora seria militar, advogado, deputado e professor.
|
José Estêvão com sua esposa, D. Rita
de Magalhães, e seu filho, Luís de Magalhães. |
De temperamento impetuoso e de
feitio combativo, era natural que ultrapassasse a trivialidade de um
soldado medíocre e anónimo, terçando armas pelas ideias liberais; o
patente militar conquistou-a ele com a sua bravura aguerrida, a
ponto de ser agraciado com a condecoração da Torre e Espada. De
espírito
/ 34 / vivo, de assimilação
pronta e de intuição além do comum, fácil lhe foi entrar no ensino;
a cadeira de professor de Economia na Escola Politécnica de Lisboa
ganhou-a num dos mais brilhantes concursos que se fizeram em
Portugal. De eloquência espontânea e dominadora, a um tempo enérgica
e espirituosa, irónica e familiar, patética e insinuante, não admira
que as populações o tenham escolhido para seu representante no
Parlamento; o mandato de deputado, várias vezes repetido, deram-lho
os vastos recursos do seu talento.
A par de tudo isto, nunca se
envaideceu da riqueza dos dotes nem nunca se vangloriou da
popularidade que o rodeava; não pretendia precedências a que teria
jus; detestava os cumprimentos dos aduladores e não se envaidecia
com as manifestações dos amigos; sem dificuldade, era sociável,
conversador cheio de espírito, nobre na bondade, coerentemente
desinteressado, sem aspirações do mando político, idealista na
pureza das intenções.
Em 1834, nas primeiras eleições que
se realizaram após o restabelecimento do Governo liberal, seu pai, o
médico Luís Cipriano Coelho de Magalhães – natural de Eixo – foi
escolhido como deputado pelo círculo de Aveiro; mas, em 1836, as
Câmaras foram dissolvidas. Perante isto, realizaram-se novas
eleições para a Constituinte, provocadas pela Revolução de Setembro
de 1836, cujo espírito era o radicalismo de 1820 e 1822. Luís
Cipriano abdicava no filho que, com 26 anos de idade, acabara a
formatura em Direito; era a primeira vez que José Estêvão ia à
Câmara, como um dos representantes da sua terra.
Eleito a 20 de Novembro desse ano,
fez a estreia a 5 de Abril de 1837, com o discurso sobre o projecto
da Constituição, que ficou conhecido pelo nome de «Profissão de Fé».
Mostrando-se Iogo como um dos primeiros na oratória parlamentar
portuguesa, quantos o ouviam ficavam presos das suas palavras.
Homem independente e livre, amando e
desejando a liberdade do povo, defendia que a vontade popular,
expressa em eleições e cometida aos seus representantes, era o único
poder legítimo. Se julgasse necessário, não deixava de criticar os
actos da Coroa, porque José Estêvão nunca timidamente se vergou ante
a idolatria do Trono. Por isso, não concordava com os vetos ou as
leis arbitrárias de reis ou de governos. «O Governo de um só homem é
o Governo mais perigoso de todos os Governos; é verdade antiga, mas
não é mau repeti-la» – afirmou ele no discurso sobre a questão da
barca Charles et Georges, continuando: – «As liberdades de
imprensa e de tribuna não são feitas para desafogar paixões e
contentar ambiciosos; são instituições indispensáveis para opor
vontade a vontade, parecer a parecer, opinião a opinião, e tirar
destas oposições as máximas e expedientes de razão, de justiça e de
moralidade, com que só se governam os povos».
Contudo, se José Estêvão era um
radical, um revolucionário, ele jamais foi um jacobino. Discutindo
embora os direitos, os critérios e as responsabilidades da Coroa,
nunca dos seus lábios saiu uma frase menos correcta, porque,
inteligente e respeitador, conciliava com o seu lealismo monárquico
o seu liberalismo e os seus sentimentos democráticos. «É preciso que
cada um de nós respeite as opiniões dos outros, para que as suas
sejam respeitadas; eu respeitá-las-ei todas, combatendo aquelas com
que não concordar, e espero que as minhas serão respeitadas, sem
deixarem de ser combatidas» – são palavras suas no discurso de
estreia. Não estará aqui a demonstração do espírito liberal e
tolerante do homem de Aveiro, tão bem testemunhado por José
Estêvão?!
Se se mostrava um democrata puro e
intransigente, não era um republicano, muito menos um republicano
vesgo e façanhudo. «Eu não sou republicano, nem esse nome é de
apetecer no nosso País» – confessava em 1837, dizendo mais adiante,
no mesmo discurso: – «Eu amo os Tronos, porque vejo neles um
princípio inocente na organização social; julgo que todos os danos
que têm feito não vêm deles, mas do modo de os constituir, do erro
de os cercar de direitos terríveis, que lhes são funestos».
Vemos assim que este homem ilustre,
cujo prestígio ultrapassou os acanhados limites da terra natal, no
ponto de vista das ideias foi a encarnação viva do liberalismo da
época, do idealismo revolucionário de 1820, do doutrinarismo
Constitucional dos novos tempos. Como escreveu Luís de Magalhães,
«os erros políticos e, sobretudo, sociais do Absolutismo, a
injustiça dos privilégios, o arbítrio das leis, a corrupção das
classes dirigentes, a miséria das plebes famintas constituíam um
conjunto de circunstâncias apropriadas para fazer germinar nos
oprimidos a esperança e a convicção de que só uma nova ordem social
[...] podia pôr termo a todos os males sociais, reparar todas as
injustiças, fundar enfim a cidade ideal da liberdade, da igualdade e
da fraternidade. Esta visão duma sociedade nova, emancipada e
nivelada, devia sobretudo deslumbrar aquele terceiro estado
constituído pela pequena burguesia e pelo povo, para quem sempre a
partilha do poder fora mínima e máximo o quinhão dos encargos e dos
sofrimentos. A ideia, pois, encontrava um largo terreno
admiravelmente preparado para germinar e frutificar. Nos espíritos
elevados e com a cultura humanista do tempo, era a sedução duma
doutrina nobre e generosa, inspirada por uma tradição histórica e
comprovada por um exemplo coevo. Nas massas era a esperança
deslumbrada de melhores dias e o orgulho
/ 35 / inebriante da
desforra». (24)
O nosso conterrâneo formou-se sobre e influxo de tais princípios e
com eles viveu. «A vida pública, que em mim foi um acaso, foi depois
um ponto de honra» – diria em 1852 na Câmara, quase a definir a sua
carreira pública.
José Estêvão não teve que sacrificar
a consciência de homem religioso às ideias políticas. Em espíritos
superiores e crentes, que sabem ordenar o pensamento e a vida
segundo os superiores princípios, tudo se consegue com mais ou menos
esforço. Por isso, no Parlamento, ele pôde declarar com a
sinceridade que era seu timbre: – «Eu sou religioso, católico,
apostólico, romano... Creio em Deus, e ele me deixa crer e esperar
também que este seja o melhor de todos os cultos, porque satisfaz as
necessidades do meu espírito, os desejos do meu coração, e não diz à
minha razão nada que repugne às minhas aspirações».
Se ele desaprovava a entrada em
Portugal das Irmãs da Caridade, que desejavam vir da França, era
sobretudo porque temia a acção política das Congregações Religiosas
naquilo que poderia haver de perigoso para o bom nome nacional, na
influência anti-patriótica que poderia vir do estrangeiro e na
«acção jesuítica» que poderia ser exercida a coberto dos princípios
de caridade, de religião e de ensina; era vítima inconsciente das
ideias do tempo, que, ultrapassadas as décadas seguintes, acabaram
por ser tidas sem fundamento válido e concreto. De resto, José
Estêvão reconhecia a virtude, o trabalho e o sacrifício dessas
senhoras tão abnegadas. «Eu conheço o que pode haver de poético e
sublime nesta instituição das Irmãs da Caridade; [...] eu venero e
respeito a instituição das Irmãs da Caridade». No fundo, o que o
orador augurava era uma beneficência feita por meios nacionais e por
pessoas portuguesas, como também diria a respeito do Ensino: –
«Quero juntamente a instrução religiosa enquanto for ministrado pelo
clero português».
Entre 1837 e 1862, ano em que
inesperadamente faleceu a 4 de Novembro, José Estêvão Coelho de
Magalhães apenas esteve afastado das lides parlamentares durante a
emigração de 1844 a 1846 e na legislatura de 1848-1850. Na Câmara e
fora dela foi também estrénuo defensor dos interesses da sua e nossa
terra. Mais do que uma vez, combateu para que o caminho-de-ferro da
Linha do Norte passasse por Aveiro; em carta de 11 de Setembro de
1860, possivelmente dirigida a um ministro, pedia a atenção do
Governo para a melhoria da barra, porque «esta obra para mim nem é
igrejinha política, nem preocupação de terra natal mas interessa à
economia geral do Estado»; a 4 de Junho de 1862, falando no
Parlamento sobre melhoramentos públicos, pedia a construção de um
farol na nossa costa, entre a barra e os areais de Mira.
(25)
Aveiro, por seu turno, não
esqueceria o paladino da sua liberdade e o notável homem público do
liberalismo. No próprio mês da sua morte, já algumas pessoas gradas
se reuniam no liceu local – de cuja criação ele foi um dos grandes
paladinos – para tratarem da construção de uma estátua em sua honra;
a 16 de Maio de 1864, desejando-se que os seus restos mortais
ficassem entre nós, efectuou-se a trasladação de Lisboa para Aveiro,
presidindo o Vigário-Geral da Diocese, Dr. José António Pereira
Bilhano; finalmente, a 12 de Agosto de 1889, era inaugurada a
estátua, erguida no coração da cidade, frente aos Paços do Concelho.
José Estêvão, patrono cívico de
Aveiro, símbolo dos aveirenses e expressão dos seus mais profundos
sentimentos de respeito pelos outros, continua a vencer a tirania
dos tempos e a sua memória não se deixa render à ingratidão dos
homens. Também aqui o quisemos evocar, ainda que a traços largos.
Mais alguns nomes
Neste relembrar de episódios e de
figuras caracteristicamente aveirenses, seria defeito imperdoável
esquecer os nomes de vários homens que bem serviram a nossa terra e
lutaram sob o estandarte da sua liberdade. É uma bela teoria
multicolor, onde se agrupam espíritos diferentes em ideias, mas
completando-se uns aos outros.
Um deles, por exemplo, é
Manuel José Mendes Leite, nascido em
Aveiro em 1809 e aqui falecido em 1887; formado em Direito e senhor
duma linguagem que apetecia ouvir, foi Deputado parlamentar e
Governador Civil de Aveiro. Há um facto que sobremaneira o distingue
dos mais, a avaliar pelo impulso que deu em importantíssima matéria
no âmbito do Direito Penal português. Na Câmara dos Deputados, já
aprovado na generalidade a «Acta Adicional», Mendes Leite
apresentou, a 10 de Março de 1852, o célebre aditamento que aboliria
a pena de morte nos crimes políticos; na sessão de 29 seguinte, após
larga discussão, o aditamento seria aprovado por 50 votes contra 32,
passando a constituir lei. Grande atitude de um aveirense, amante da
liberdade na Ordem! José Estêvão diria a 21 de Julho seguinte que a
abolição da pena de morte nos crimes políticos, «além de ser um
grande princípio, era o sentimento nacional, e mesmo nos crimes
civis a desejava ver abolida, para que o homem não pudesse ter mais
força que Deus». Passados quinze anos, a pena capital seria
proscrita da nossa legislação.
/ 36 /
Sebastião de
Carvalho e Lima,
que nasceu em Eixo em 1821 e faleceu em Aveiro em 1896,
distinguindo-se pela auto-cultura, pela agudeza de espírito, pela
prontidão na resposta, pela mordacidade da sátira, pela serenidade
fria, pela inteligência penetrante, pela acção política, social e
económica que exerceu no próprio meio. Foi Presidente da Câmara
Municipal de Aveiro e da Junta Geral do Distrito; com outros
promotores, fundou a Caixa Económica Aveirense e a Associação
Comercial de Aveiro. Entre os seus filhos, podemos lembrar dois:
Sebastião e Jaime.
Sebastião de
Magalhães Lima,
nasceu no Rio de Janeiro em 1850; contudo, tendo apenas quatro anos
de idade, veio para Aveiro com os pais. Foi jornalista e tribuno e
dirigiu o periódico República Portuguesa; formado em Direito
e advogado em Lisboa, assumiu a direcção do Comércio de Portugal,
a que sucedeu O Século, de que foi um dos fundadores e o
primeiro Director. Exerceu grande acção em favor do Regime
Republicano em Portugal, tanto no país como sobretudo nos meios
políticos e intelectuais do estrangeiro. Foi Deputado, Ministro da
Instrução, promotor da participação de Portugal na Primeira Grande
Guerra; representou ainda a Imprensa Nacional em diversas reuniões.
E não se poderá fazer a história pátria das primeiras décadas do
século XX, sem falar na actividade deste homem que sobressaiu
grandemente no meio dos correligionários. Sendo ainda estudante,
filiou-se na Maçonaria, vindo a ser seu Grão-Mestre desde Março de
1907; viveu e lutou vigorosamente pelo seu ideal político e pela
solidariedade humana. Viria a falecer em Lisboa a 7 de Dezembro de
1928.
Jaime de Magalhães
Lima nasceu em
Aveiro em 1859 e faleceu em Eixo a 26 de Fevereiro de 1936; como o
irmão, formou-se em Direito também em Coimbra. Depois de ter sido
representante do Partido Monárquico, Deputado e dirigente em Aveiro
do Partido Regenerador Liberal, abandonou a política para se dedicar
às actividades literárias. Entusiasmou-se também pelo cultivo da
natureza, particularmente das árvores, conseguindo que a Quinta do
Vale do Suão – por ele crismada com o nome de S. Francisco – se
tornasse valiosa mostra de eucaliptos. Sente-se na sua obra
literária a influência de Leão Tolstoi, que visitou numa viagem à
Rússia. Pensador, romancista, ensaísta, contista, crítico,
conferencista, jornalista, sociólogo, etnógrafo, paisagista, as
publicações de Jaime Lima são bem marcadas pelo vigor do estilo e
pela eloquência da expressão; ao lê-lo, parece que contemplamos um
profeta duma fraternidade e duma democracia com base na doutrina de
Cristo, se não por vezes, durante uma primeira fase da vida, num
universalismo de raízes panteístas. Nele se admira o homem na
autenticidade e na igualdade do seu carácter, vinculado a Aveiro mas
espraiando-se aos horizontes do Orbe; da sua pessoa parecia que
irradiava um halo de espiritualidade.
Em 1860 nascia em Aveiro
Francisco Manuel Homem Cristo, cuja
existência se prolongou até 1943. Foi Oficial do Exército, Professor
universitário, Deputado, paladino da instrução popular, escritor e
jornalista, inconfundível fundibulário, porventura, neste aspecto, o
maior de todos os tempos em Portugal. A causa dos obras da barra e
do porto de Aveiro é-lhe devedora dos mais assinalados serviços.
Tudo o que engrandecesse a cidade ou a região tinha nele um
propagandista entusiasta e aguerrido; pelo contrário, aqueles que se
atravessassem no caminho do progresso e da liberdade de Aveiro
podiam contar com o látego do seu verbo inflamado, sobretudo no
semanário O Povo de Aveiro. Interessou-se pela restauração da
Diocese de Aveiro, na década de 1930. Certa vez escreveu, para se
defender de possíveis ataques: – «Dir-se-á: Você, livre pensador e
democrata, a folgar com isso?!... Sim, senhores, por isso mesmo que
somos democrata e livre-pensador. Roma não cessa de afirmar que
respeita todas as formas de governo, desejando apenas que lhe não
movam hostilidade. Sendo assim, é muito fácil o entendimento. Por um
lado, a liberdade que nós queremos para nós é a liberdade que nós
queremos para todos. Igreja livre no Estado livre foi sempre um dos
parágrafos mais importantes da doutrina democrática. Por outro lado,
quando não possa haver entendimento, que a agressão parta dos
contrários. Os católicos de Aveiro querem o seu Bispo. Pois tenham o
seu Bispo, que, a nós, não nos afronta nada. [...] Aveiro deseja
tudo quanto de bom e honesto possa concorrer para o seu
engrandecimento e bem-estar. Na penúria em que vivem o comércio e a
indústria, uma migalha a mais que seja é de agradecer e desejar».
(26)
Outros aveirenses notabilizaram-se
pela pena, vulgarizando a história de Aveiro e a sua maneira de
estar no mundo; dessa forma, dando a conhecer a nossa terra, em
livros, opúsculos e jornais, trabalharam pelo seu engrandecimento e
pela sua liberdade.
José Reynaldo
Rangel de Quadros Oudinot,
aqui nascido em 1842, foi jornalista, escritor e professor do Liceu;
porque amava a autonomia religiosa de Aveiro, insurgiu-se
vigorosamente contra a supressão da Diocese em 1882, publicando o
livro «O Episcopado e o Governo de Portugal». Além disso, em
inúmeros artigos, Rangel de Quadros deixou-nos muito da história de
Aveiro, das suas coisas, dos seus costumes, dos seus monumentos e
dos seus homens.
Outro aveirógrafo, nascido e
falecido entre nós, respectivamente em 1853 e 1931, foi
João Augusto Marques Gomes – o organizador
do Museu no edifício
/ 37 / do velho Mosteiro de
Jesus. Abarcando uma larga visão da sua terra em todos os tempos,
descreveu-nos factos aveirenses, trouxe-nos a lume a vida dos
conventos, dos templos e dos monumentos, recordou-nos páginas de
antanho, avivou-nos a recordação de guerras liberais e de lutas
caseiras, deu-nos os perfis e os esboços de aveirenses que, por
obras valorosas, se haviam libertado da morte.
Queremos também lembrar
António Gomes da Rocha Madahil. Era da
próxima vila de Ílhavo, onde nasceu em 1893; mas, votado aos estudos
de investigação relativos a Aveiro e ao seu Distrito, bem se pode
considerar como homem da nossa terra pelo coração. Aveiro deve a
Rocha Madahil inestimáveis benefícios, porque ele, dedicando-lhe
grande parte do seu carinho e do seu labor, honrou a cidade com a
descoberta e a vulgarização de fontes documentais do passado. Um dos
seus gostos era a Princesa Santa Joana; tudo o que encontrou sobre a
nossa Padroeira, ele o recolheu, ordenou e deu a conhecer. Foi um
benemérito de Aveiro, relevada nos seus escritos, tanto no história
milenar como nas expressões mais salientes.
Se há nomes que são úteis para o
estudo de Aveiro e das suas gentes, Rangel de Quadros, Marques Gomes
e Rocha Madahil – ao lado de muitos outros – são autores cuja obra
tem de ser tomada em consideração.
Mas houve ainda quem, por diferentes
formas, se cansou por Aveiro, chamando a atenção das autoridades
governamentais para as suas carências e pondo-se ao serviço do bem
público. E agora podemos recordar Gustavo Ferreira
Pinto Basto, do Partido Progressista, homem de notável
iniciativa e acção, dotado de vontade enérgica; nasceu na Quinta do
Silveiro, em Oiã, em 18412, mas, além de presidir à Associação
Comercial, esteve à frente da Câmara de Aveiro. No exercício deste
cargo, vencendo obstáculos e contrariando opiniões opostas, em 1905
sacrificou parte do Convento das Carmelitas à abertura da que é hoje
a ampla Praça do Marquês de Pombal.
Lourenço Simões
Peixinho, durante
muitos anos à frente da Edilidade e falecido em Março de 1943, entre
muitas obras que se lhe devem, fez aparecer o jardim e parque do
Infante D. Pedro. Em 1918 propôs as expropriações para logo executar
o plano da avenida central, que hoje tem o seu nome e que
transformou completamente a fisionomia da cidade dando-lhe um ar
moderno e condígno – diríamos, um ar de liberdade.
Alberto Souto
é um desses nomes que os aveirenses não esquecem, antes
elogiosamente glorificam, sobretudo porque representou em nível
superior, durante longas dezenas de anos, a nossa mentalidade. É
preciso não saber nada de Aveiro e da sua região para não ligar o
nome deste homem a tantas manifestações da vida citadina e a tantos
sonhos, muitos dos quais se tornaram realidade. Licenciou-se em
Direito e logo manifestou espírito vivíssimo e inteligência pronta;
grande coração dotado de extrema sensibilidade, homem simples e de
vasta cultura, invulgar orador que arrebatava e fazia vibrar, foi
deputado às Constituintes de 1911; publicista de linguagem lapidar,
fundou e dirigiu a semanário A liberdade de 1911 a 1915;
revelando a sua reacção quando se tomavam atitudes para prejudicar
Aveiro, soube ouvir os anseios do povo que serviu com denodo;
enamorado da cidade, do distrito e da Ria, publicou dezenas de
estudos e inúmeros dispersos sobre temas regionais, de geologia, de
geografia, de arqueologia, de história, de arte, de folclore, etc.
Como se tudo não bastasse, Alberto Souto foi Presidente da Junta
Autónoma da Ria e Barra de Aveiro, Director do Museu local e
Presidente do Município. A sua actividade mostrou-se, de facto,
muito complexa; podemos contudo resumi-la, dizendo que amou
entranhadamente a terra aveirense, que lhe ficou a dever realizações
de vulto. Viria a falecer no vizinho lugar do Bonsucesso (Aradas),
em 1961, com 73 anos de idade. Deixou no testamento a razão por que
pedia que na sua sepultura houvesse uma cruz: – «Eu sou cristão.
Adoro Deus e creio na virtude divina de Jesus que foi muito justo e
muito bom e a cuja protecção muitas vezes me tenho confiado».
Aveiro não pode esquecer a plêiade
destes e doutros homens insignes que a dignificaram e a
engrandeceram, que lhe traçaram caminhos de futuro e que deixaram
bem vincados os pés nas sendas de terra livre. Desgosto é para nós
não podermos rememoriar mais nomes ilustres.
Manifestações de progresso e de liberdade
Uma das condições para o progresso
de qualquer terra, seja cidade, vila ou aldeia, é a existência de
vias de comunicação; assim o entenderam os nossos governantes do
século XIX. Aveiro, privada da passagem da grande via rodoviária que
é a estrada de Lisboa ao Porto, sentia-se arredada e à margem; era
difícil sair de cá e também só a visitava quem tinha necessidade.
A primeira estrada a ser construída
foi aquela que vai de Aveiro a Viseu; as obras do troço até
Albergaria-a-Velha tiveram início em 1854, o qual se utilizou da
ponte de madeira mandada erguer uns anos antes por conta de verbas
do Governo Civil de Aveiro. Ficava assim a cidade ligada à principal
estrada do País, que passava por aquela vila; posteriormente,
principiando em 1863, prosseguir-se-ia na
/ 38 / abertura da estrada
para Viseu, franqueada à circulação a partir de 1874.
Em 1855 foi iniciada a construção da
estrada de Aveiro para o Forte da Barra, passando pela Gafanha da
Nazaré; seria concluída em 1861. Mais tarde, unidas as margens do
canal de Mira com uma ponte, o traçado prosseguiria para a Barra e
para a Costa Nova do Prado.
A partir de 1856, uma outra estrada
se construiu, que iria de Aveiro a Penacova por Oliveira do Bairro,
Malaposta e Anadia; constituía uma nova ligação com a estrada de
Lisboa ao Porto.
Em 1862 principiava também a
construção da actual estrada para Águeda, por Eixo, Eirol e Travassô,
que depois seguiria para Tondela e Covilhã; como variante desta,
seria lançado em 1869 um troço de ligação entre Eixo e São João de
Loure, com três pontes de ferro.
Uma outra estrada, começada em 1867,
foi a que tinha por termo a vila de Mira, passando por Ílhavo e
Vagos; ligava Aveiro ao sul do Distrito.
Diferente factor de progresso são as
vias férreas. Já é sabido o interesse que José Estêvão pôs na
passagem da linha do Norte por Aveiro; e conseguiu-o. Efectivamente,
a 18 de Julho de 1863, uma locomotiva, vinda do norte até Aveiro,
atravessava a ponte de Esgueira pela primeira vez; mas, somente a 10
de Abril do ano seguinte, pela demora no aterro do vale do Cojo,
seria inaugurada a parte que vai desta cidade a Taveiro.
Uma nova via férrea, que se planeou
construir, foi a Linha do Vale do Vouga e o consequente ramal para
Aveiro. O projecto deste ramal, aprovado em Fevereiro de 1909,
estava executado em Setembro de 1911. Todo o conjunto –
Espinho-Sernada-Aveiro-Viseu – ficou pronto em 1914.
Neste quadro de comunicações podemos
também referir os serviços dos correios que, remontando ao século
XVI, se foram organizando por todo o País. Na reforma postal de
1852, Aveiro era considerada como Direcção dependente da
Administração de Coimbra. A 2 de Setembro de 1856, inaugurava-se o
telégrafo eléctrico em Aveiro; e, no ano seguinte, a malaposta
alcançava o Distrito de Aveiro.
Deixemos estes índices de progresso
local e voltemos a manifestações de liberdade – e estas dos nossos
dias. Foi nos últimos anos que se realizaram em Aveiro três
congressos da Oposição Democrática, que agrupando gente de variadas
tendências políticas e ideológicas, aqui reuniram centenas de
pessoas vindas de todo o País. A sua finalidade consistiu não só em
analisar e discutir os problemas próprios, mas principalmente em
estudar a situação nacional com os seus múltiplos problemas e
carências, apontando ao mesmo tempo novos rumos a seguir, à margem
da ordem estabelecida pelo regime autoritário, então vigente.
E até aconteceu que, nos primeiros
minutos do dia 25 de Abril de 1974, através das antenas da Rádio
Renascença, foi para o ar o sinal aglutinador dos homens sem sono
que, na Revolução dos Cravos, venceram a Ditadura: – «Grândola, vila
morena... o Povo é quem mais ordena». O anúncio foi cantado por Zeca
Afonso – de seu nome completo, José Afonso
Cerqueira da Encarnação – um homem nascido em Aveiro e de
génese aveirense. Se o grito entrou no peito dos portugueses, numa
onda de entusiasmo, ele saiu primeiro dum peito que respira
liberdade no berço da Liberdade.
Todavia, o entusiasmo inicial, na
alegria das liberdades cívicas alcançadas, ia esmorecendo entre o
povo, porque no horizonte nacional levantava-se a ameaça de nuvens
negras a pressagiar uma nova Ditadura; neste contexto, os ânimos
andavam preocupados. Os bispos portugueses, no seu campo específico,
mostravam-se firmes na defesa dos direitos fundamentais da pessoa
humana, nomeadamente do direito à informação livre e objectiva e do
direito de a Igreja Católica em Portugal possuir e orientar uma
estação emissora própria.
Pretendendo apoiar os bispos pela
sua determinação corajosa, os cristãos da Diocese de Aveiro
concentraram-se na cidade em grandiosa manifestação, na tarde de 13
de Julho de 1975. Com o bispo à frente, a inolvidável jornada de
luta pela liberdade terminou junto da catedral, envolvendo o vetusto
cruzeiro gótico-manuelino. Era uma multidão de cerca de quarenta mil
pessoas, provenientes de todas as categorias sociais.
Desta forma, teve início também em
Aveiro uma série de manifestações de cristãos, que se realizariam em
diversas cidades do País, em defesa da liberdade então novamente
ameaçada. Por fim, a Emissora Católica Portuguesa – Rádio Renascença
– que havia sido violentamente ocupada por forças adversas ao ideal
religioso, seria restituída à sua legítima proprietária.
Um democrata de coração
|
É tempo de ultimar as notas
subordinadas ao tema da liberdade em Aveiro; elas terão o seu limite
com a evocação de D. João Evangelista de Lima
Vidal. Talvez fechemos com chave de ouro.
Este homem, que nasceu em Aveiro em
1874, ao que ele supunha na proa de alguma bateira, sentia que entre
ele e Aveiro havia mais do que uma simples fraternidade; chegava a
crer que existia uma verdadeira
/ 39 / encarnação, o encontro
de duas coisas no mesmo ser; com os beiços a saber a salgado, a
pingar gotas de Ria por todo o corpo e por toda a alma, dizia ser
uma nesga, embora minúscula, da deliciosa aguarela de Aveiro, um
pedaço da nossa terra.
|
D. João Evangelista de Lima Vidal
Busto existente no Museu de Aveiro,
da autoria de João Calisto |
Nós não podemos separar o Arcebispo
Lima Vidal da sua grande obra em Aveiro: o trabalho pela restauração
da nossa autonomia religiosa. Os católicos – e mesmo os aveirenses
de qualquer ideologia – sabem que foi ele, pela sua influência e
prestígio, aliados ao entranhado amor ao berço natal, quem conseguiu
levar as autoridades da Igreja a reconstituírem a Diocese de Aveiro,
forçadamente extinta em 1882. O ano de 1938, pela via religiosa,
ficou a marcar um novo capítulo na história da liberdade em Aveiro.
Depois, Lima Vidal foi
inesperadamente escolhido para nosso Bispo. Então, todos os que o
conheceram viram, se já não o soubessem, como era rica a sua
personalidade. Com bondade translúcida, acarinhava os humildes; com
preocupação altruísta, interessava-se por todos; com paternal
caridade, ouvia as necessidades alheias; com delicada compreensão,
aconselhava jovens e adultos. Grande e modesto, dedicava-se sem nada
perder, dava-se sem se diminuir, fazia-se maior, tomando-se mais
pequeno. Ao reforçar pedidos de empregos, solicitar favores para
patrícios ou não, valer a aflições de conhecidos e desconhecidos,
Lima Vidal era, em muitas e muitas oportunidades, o libertador de
consciências atribuladas, o amparo de vidas em crise, a ajuda de
necessidades; em 1957, não receou mesmo subscrever um pedido de
amnistia para presos por crimes políticos e ainda outro para presos
por crimes de delito comum. Enfim, até à morte, ocorrida em Janeiro
de 1958, passou a vida a servir. Desde o dia 2 de Abril de 1974, o
bronze imortaliza-o no Largo da Apresentação.
Naturalmente, nós pressentimos o
antigo Bispo de Aveiro na moldura dos que vivem numa terra chã e
anfíbia, bem junto à água donde, extraindo o sal, as algas e o
peixe, também tiram o pão, senão mesmo o próprio carácter. Nele
vemos alguém que alimentou um entranhado aveirismo – esse misto de
amor dos aveirenses pela sua terra, de saudade pelas suas gentes, de
interesse pelas suas coisas, de entusiasmo pela sua tradição, de
orgulho pela sua história; esse sentimento que os leva a
solidarizarem-se num ideal de unidade, apesar da diversidade de
mesteres e da disparidade de opiniões; esse respeito e cultivo da
honrosa herança recebida, que se traduz na religiosidade espontânea
e cristã, na bondade natural e simples, na tolerância amiga e
compreensiva, na liberdade ordenada e consciente.
Mas... falar deste aveirense é
demasiado supérfluo, porque a sua memória mantém-se perene no
sentimento dos patrícios. Era um homem bom e tolerante; era um
Arcebispo caritativo e santo; era um amigo de todas as horas. Certa
vez escreveu: – «Vim do povo, pertenço ao povo, trabalho para o
povo, sinto com o povo, ausculto o povo, vou ao encontro do povo;
sou um democrata de coração».
___________________________
NOTAS
(1)
– Alguns topónimos e outras palavras portuguesas, em que talvez
entre a base ala, que significará ‘água corrente ou parada,
pântano, arrooo’: –Alarda → Arda; AIuela; Alviada, na Feira; Alviela;
Alagoa; Alagoela, em Eixo; Alvóo → Avô; Alafoen → Lafões; Alamenara
→ Almeara → Almiar; Alamenara → Almenar → Lumiar; Alazira → Lazira →
Lezíria; Alverca; Álamo; Lamigueiro; Leixões; Leça; Lima; Lena;
Leirla; Liz.
/ 40 /
Alguns topónimos e outras palavras portuguesas,
em que talvez entre a base avo (av, ava, apa, sava, lava),
que significará ‘água livre, curso de água, rio’: - Illiabum →
Illiavo → Ílhavo; Cádavo → Cávado; Cadaval; Ave (rio e povoações);
Avanca; Avizela; Vizela; Viseu; Viana; Vez; Avis; Vouga; Vouzela;
Gafanha; Pavia → Paiva; Vagos; Vagueira; Vacariça; Ovar; Veiros;
Vale; Vala; Valença; Valada; Valado; Veia; Lava; Lavar (verbo);
Lavar, perto de Barcelos; Lavadoros, perto da foz do Douro;
Lavadorinhos, perto da foz do Douro; Laveira e (Monte) Lavar, perto
de Lisboa; Lavos, perto da foz do Mondego; Lavandeira, de Soza;
Lavaça ou rabaça, planta da zona da ria de Aveiro; Labaçol, outra
planta da ria; Vessada; Devesa e Devesas; Aveiras; Avelar.
Alguns topónimos e outras palavras
portuguesas, em que talvez entre a base ariu (ar, ara),
que significará ‘água’: – Real ou Rial, ribeiros em Gaia e Feira;
Arigus → rigus → rivus → rio; Ariga → riga → ria; Aruga → ruga → rua
(significando mesmo corrente de água, no baixo latim); Corrugus →
córrego → corgo; Arrugius → arruio → arroio (e Arrujo, em Eixo);
Aripa → ripa → riba; Ariparium → riparium → ribeiro; Arelho;
Arrentela; Arregaça; Arrifana; Arauca → Arouca; Lav-arare → lavrar;
Arar; Arena → Areia; Esgueira.
Para outros a etimologia de
Aveiro será Lavara, cidade dos lusitanos na Mesopotâmia
Douro-Vouguense, citada por Cláudio Ptolomeu; assim: – Talábriga →
Talavera → Lavara → Alavarium → etc. Ainda para outros: – Aquarium →
Augueiro → Aueiro → Aveiro. E até: – Aviarium → Alaviarium →
Alavarium → etc.
(2)
– Torre do Tombo, Cortes, Suplemento, Maço I, n.º 5.
(3)
– Torre do Tombo, Chancelaria de D. Duarte, Livro I, fI. 52
v.
(4)
– Torre do Tombo, Chancelaria de D. Fernando I, Livro 1, fls.
105-105 v. 107-108.
(5)
– Torre do Tombo, Extremadura, Livro 2, fls. 70 v – 71.
(6)
– Torre do Tombo, Extremadura, Livro 2, fls. 70 v - 71.
(7)
– A 17-VI-1507, D. Jorge de Lencastre escreveu uma carta à Câmara
Municipal de Aveiro sobre assuntos de interesse local, por onde se
prova que o fidalgo era, na Corte, solicito procurador dos
aveirenses.
(8)
– Como vimos na nota n.º 1, de Alavóo → Alvóo terá
vindo Avô; por isso, parece verosímil que Alavóo (Alaavo) tenha
também dado Alabóo → Alabó → Albói. Coisa curiosa: no sul da Velha
Hispânia havia outrora o rio Alebus, que hoje tem o nome de Vinalapó
e banha Elche, na provinda de Alicante.
Há também quem faça descender Albói de
alboio – alpendre ou telheiro destinado à guarda de mercadorias
transportadas ou a transportar pelos barcos que vogavam a Ria –
termo que ainda agora se usa com o significado de ‘cúpula ou abóbada
de sala’ e, em certas regiões do Minho, mesmo com a pronúncia de
albói, com o de ‘alpendre’, de ‘arrecadação’. E outrossim lhe dão a
origem do inglês all-boys ou mesmo de Albion,
fundamentando esta hipótese numa provável colónia de ingleses.
(9)
– Câmara Municipal de Coimbra, Índices e Summarios, 2.ª parte,
fascículo I, pg. 37.
(10)
– Considerações sobre a Gente de Aveiro, 1974, pg. 28.
(11)
– Eduardo Cerqueira, ob. cit., pgs. 28 e 30.
(12)
– O Padre Fernão de Oliveira e a sua Obra; Lisboa, 1898, pg.
2.
(13)
– A Arte da Guerra do Mar, Edição do Ministério da Marinha,
1969, pgs. 23-25.
(14)
– Rangel de Quadros, Aveirenses Notáveis, fls. 20-21.
(15)
– Marques Gomes, Memórias de Aveiro, pgs. 84-85.
(16)
– Vd. Arquivo do Distrito de Aveiro, 1959, pgs. 255-258. Alvará e
carta de elevação de Aveiro a cidade.
(17)
– Milenário de Aveiro, 1959 – Colectânea de Documentos
Históricos – lI, Aveiro, pg. 592-593.
(18)
– Arquivo Secreto do Vaticano, processo consistorial n.º 166, ano de
1774, fls. 41, v-42.
(19)
– Id., fls. 35-35, V.
(20)
– Memórias de Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato,
revistas e coordenadas por Ernesto de Campos de Andrade, Coimbra,
1933, pgs. 28-29.
(21)
– A 20 de Fevereiro de 1866, as cabeças dos aveirenses mortos pela
Liberdade foram trasladadas para o monumento mandado erigir no
cemitério central pela Câmara da presidência de Manuel Firmino de
Almeida Maia. A 18 de Junho de 1878, no Porto, foram também
trasladadas para o cemitério do Repouso as ossadas dos mártires da
Liberdade, entre elas as dos aveirenses.
(22)
– António Feliciano de Castilho, citado por Júlio de Castilho,
Memórias de Castilho, Tomo lI, Livro lI, pg. 159.
(23)
– O Distrito de Setúbal seria criado a 22 de Dezembro de 1926.
(24)
– José Estêvão, Estudo e Colectânea, Edição da Comissão do
Centenário, Aveiro, 1962, pg. 44.
(25)
– O farol de Aveiro só viria a ser projectado em 1884; seria
construído a partir de Março de 1885, ficando pronto no Verão de
1893.
(26)
– O Povo de Aveiro, n.º 480, 28-III-1937, pg. 1. |