Na ânsia congénita de descobrir
sempre mais alguma coisa do mundo desconhecido, de dar remédio às
limitações que teimosamente o afligem e de encontrar explicações e
respostas para as múltiplas interrogações do seu espírito
insatisfeito, o homem tem procurado avançar com persistência por
caminhos não desvendados e tirar conclusões de premissas certas ou
prováveis.
Ao debruçarmo-nos sobre um traço
constante e proeminente da história de Aveiro, qual é o sentido dos
seus habitantes pela liberdade, surgem-nos logo umas quantas
perguntas: – Será que para este jeito dos aveirenses tenha
contribuído a terra onde se enraizaram? Será que, emigrados de
várias partes, tenham trazido consigo a natural desabituação das
tradições que encontraram nos povos vizinhos?
Se as perguntas são fáceis de fazer,
as respostas são difíceis de dar, porque nos faltam pontos de apoio
concretos.
Perscrutando o incógnito
Em determinada época da história
anterior a Cristo, decerto que homens e mulheres desceram das
alturas do interior ou, viajando por mar e aqui aportando, vieram de
outras paragens. Encontraram um solo de aluvião, que se alargaria
nos séculos futuros pelo afastamento da linha do mar; vieram a
usufruir de caudais de água, uma doce e outra salgada, donde
pescavam o peixe e colhiam o estrume para a agricultura. A Terra
mostrou-se-lhes fácil de trabalhar e branda para calcorrear; e esses
homens e essas mulheres, talvez morando em casas cujas paredes eram
de torrão e cujas coberturas eram de colmo, conseguiram fazer do seu
novo habitat uma zona humanizada e tirar dos campos o sustento
necessário à sua sobrevivência.
Mas não só. Com facilidade
descobriram que quase toda a água circundante, ao calor do sol
ardente, ia desaparecendo e deixava no chão uma toalha de sal –
óptimo elemento para temperar as parcas e rudimentares refeições.
Era o princípio do salgado aveirense. Depois, o engenho e o esforço
foram capazes de lançar no progresso a incipiente indústria,
retalhando o pântano em quadrículas e tirando o máximo resultado da
natureza.
Homens e mulheres, que se tinham
habituado a dominar a terra, o mar e os elementos, naturalmente não
aceitariam que outros os pretendessem dominar. Tendo vindo para
ficar, aqui formaram uma colónia de imigrados que, apesar de
oriundos de diversos quadrantes, todos se davam as mãos nas mesmas
tarefas comuns, vencendo obstáculos e ultrapassando dificuldades.
Necessariamente surgiu uma nova
povoação, exposta num montículo, à esquerda do canal do Cojo, perto
da «caldeira», a qual, apropriando-se do termo comum, tomou o nome
de Alavario – ou lugar por onde corre a água.
Não nos prenderíamos aqui a este
topónimo, se não nos inclinássemos a descobrir nele mais um índice
para a propensão liberal de Aveiro. Com efeito, podemos ver no
Alavario, decompondo-o em três elementos distintos, as palavras
ala, avo e ariu, nítidas referências a 'água
livre', nas línguas primitivas não só da Península Ibérica como ainda
da Europa Ocidental
(1).
Enfim... a água corrente, a grandeza
do mar, a vastidão dos horizontes – tudo daria aos nossos
antepassados o sentido da liberdade, à semelhança daquelas aves que
eles viam esvoaçar sobre os campos que trabalhavam ou sobre a massa
líquida que os banhava.
Um lugar na História
Como certificado milenário de Aveiro
é tida a doação testamentária que a Condessa
Mumadona Dias,
/ 15 / viúva do Conde
Hermenegildo, senhora de grande nobreza e muito rica de bens e
virtudes, fez ao Mosteiro de Guimarães a 26 de Janeiro de 959; entre
as propriedades legadas, aí se referem as terras in Alauario et
salinas que ibidem comparauimus. Por tal documento do século X é
testificada a existência de uma Aveiro, nascida sob o signo do sal e
desabrochando para a História..
Dada em 1187 por D. Sancho I a sua
irmã D. Urraca Afonso – essa nobre senhora de quem a tradição local
afirma ter possuído uns casais junto do arroio ou arrujo, em Eixo –
por troca do castelo e do termo de Avô, Aveiro conseguia ser vila e
cabeça de concelho no século XIII, talvez no reinado de D. Afonso
III, desenrolando-se ao redor da igreja matriz de S. Miguel.
Como vimos, algumas das primeiras
actividades do dia-a-dia de Aveiro foram, desde tempos remotos, a
indústria salina, as pescarias e a navegação. A 29 de Maio de 1361,
nas cartas de Elvas, os procuradores de Aveiro pediram a liberdade
de fazer o sal que pudessem, abrogando-se a legislação contrária.
(2) Mais tarde,
a 17 de Janeiro de 1434, El-Rei D. Duarte haveria de confirmar e
outorgar aos pescadores de Aveiro todos os seus privilégios, foros,
liberdades, graças, mercês e bons costumes, que sempre usaram e
costumaram.
(3)
|
Entretanto, a 14 de Abril de 1372,
num documento assinado em Avelar, D. Fernando fazia a D. Leonor
Teles livre e pura doação, entre vivos, da vila com seu termo e
porto de mar e com todas as suas dízimas e portagens, tributos
reais, direitos e pertenças dela, e ainda com o padroado das
igrejas, entradas e saídas, montes, fontes, rios, ribeiras e
pescarias.
(4)
Mas... no começa da século XV, um
incêndio devastador veio cortar abruptamente o esperançoso futuro de
Aveiro. Olharam então para o burgo as autoridades da governação
pública; por iniciativa de D. João I, que o Infante D. Pedro
grandemente impulsionou, a vila foi reconstruída e cercada de
muralhas, para defesa da sua liberdade ante possíveis ataques
inimigos.
Os muros começados em 1418 e
terminados quatro anos depois, além de quatro postigos e de grande
número de torreões, tinham nove portas: a sul, dando entrada na Rua
Direita, a da Vila, ornada com o brasão do mencionado Infante e com
a data de MCDXVIII; para oriente desta e em frente da Rua da
Corredoura, a do Sol; seguiam-se as do Campo e do Cojo; a da
ribeira, situada junto à ponte e à Rua da Costeira; continuando para
ocidente e para sul, encontravam-se as do Cais ou do Norte, a do
Alboi, a de Rabães e a de Vagos – esta junto ao futuro Convento de
Santo António. Crê-se que o arquitecto das muralhas teria sido
Lourenço Eanes de Morais, que foi o mestre-de-obras do Infante em
Aveiro.
|
Condessa Mumadona Dias. Estátua
existente em Guimarães. No seu testamento, de 959, refere as
terras e as salinas que possuía no «Alavario». |
Dentro do plano de engrandecimento
da vila, nesta ocasião, não é de esquecer a edificação do Convento
Dominicano de Nossa Senhora da Misericórdia. Diz o cronista da Ordem
em Portugal, Frei Luís de Sousa, que a fundação do Mosteiro se ficou
a dever a uma milagrosa aparição da Virgem Maria a Afonso Domingues,
/ 16 / homem piedoso e de
idade avançada, sobre um dos bastiões da muralha; para comemorar o
facto, o Infante D. Pedro, amigo sincero dos domínicos e muito
devoto de Nossa Senhora do Pranto, da Piedade ou da Misericórdia,
alcançou do Papa Martinho V, a 19 de Fevereiro de 1423 – pouco antes
da largada para as «sete partidas» – um breve pelo qual lhe era
facultado estabelecer em Aveiro um convento para a Ordem.
Efectivamente, a 23 de Maio, lançava-se a primeira pedra do
edifício, que se tornou digno do seu fundador; foi-lhe dado como
orago Nossa Senhora da Misericórdia, cujo retábulo se encontra hoje
na primeira capela à esquerda de quem entra na actual igreja
paroquial da Glória. O Capítulo Geral da Ordem, celebrado em Bolonha
em 1426, registava expressamente o advento da nova Casa de S.
Domingos.
Com o mesmo propósito de
engrandecimento da povoação, a 27 de Fevereiro de 1434 D. Duarte
concedia o privilégio «ao concelho da vila de Aveiro para aí fazerem
feira cada ano, que começará no primeiro de Maio e durará até ao dia
de S. Miguel (8 de Maio), que são oito dias»; e «os que a ela vierem
comprar e vender pagarão só meia sisa».
(5)
O Infante D. Pedro, constituído por
El-Rei, seu pai, como senhor de Aveiro «em sua vida», vira a doação
confirmada pelo irmão, D. Duarte; a seguir, o sobrinho, D. Afonso V,
novamente declarava D. Pedro e seus descendentes por senhores da
vila «para todo o sempre», por carta passada em Santarém a 12 de
Julho de 1448.
Entretanto, surgiam as lutas entre o
Rei e o Infante e travava-se a desastrosa batalha de AIfarrobeira,
em que D. Pedro perdeu a vida.
|
Convento dominicano de Nossa Senhora da Misericórdia.
Relíquias da primitiva construção gótica. |
Como consequência, D. Afonso V, em
1499, doava Aveiro ao primo D. Sancho de Noronha, conde de Odemira;
(6) mas,
confiscada esta casa nobre pelo seu envolvimento numa conspiração
contra D. João II, este Monarca fez mercê da vila à irmã, a Infante
D. Joana, recolhida no Mosteiro de Jesus, de Aveiro. A doação foi em
1485, conservando a donatária o senhorio até à morte, ocorrida cinco
anos após. D. João II legou depois ao filho bastardo D. Jorge de
Lencastre, em testamento de 24 de Setembro de 1495, Aveiro com suas
lezírias e ilhas de dentro da foz – o que D. Manuel I confirmaria na
maior parte, em 1500. Seguiram-se-lhe, na qualidade de donatários,
os Duques de Aveiro, descendentes de D. Jorge.
(7)
Com D. José de Mascarenhas,
sentenciado e morto aquando da conspiração contra EI-Rei D. José I,
em 1758, terminaria a série destes senhores, passando a vila à posse
da Coroa, donde não mais sairia.
Naquela altura do século de
quatrocentos, a vila de 3000 habitantes estendia-se para fora das
muralhas, formando na margem norte do canal a chamada Vila Nova,
onde se fixava a classe marítima e a burguesia; para além da zona
muralhada – a tradicional e a nobre – surgia então estoutra,
composta de gente dedicada às actividades marítimas, mercantis e
piscatórias – os cagaréus. Mas não só: para sul da porta da
Vila formava-se novo agrupamento habitacional, de pessoas que se
ocupavam na cultura das quintas e dos campos – os ceboleiros;
era o Cimo de Vila. Ainda extra-muros à ilharga da Ria e para
ocidente, pululava um outro bairro, a cujo núcleo inicial, nascido
junto de uma represa de águas paradas e barrentas, foi talvez dado,
por razão da vizinhança do pântano, o nome de Alavô ou
Alabó – o Albói dos nossos dias;
(8) seria povo quiçá a viver
modestamente, auferindo o pão nos trabalhos da estiva.
/ 17 /
Assim nos aparece Aveiro de há
quinhentos anos; D. Manuel I dar-lhe-ia novo foral a 4 de Agosto de
1515.
Santa Joana, teimosamente livre
Voltemos, porém, uns anos atrás. Na
segunda metade do século XV, um novo facto decisivo ficou a marcar
na história de Aveiro, que a engrandeceria diante das demais
povoações portuguesas e que a impulsionaria no caminho da liberdade.
Construído o Mosteiro de Jesus, cuja fundação fora autorizada pelo
Papa Pio II em bula de 16 de Maio de 1461 e cuja primeira pedra fora
lançada pessoalmente por D. Afonso V, nele veio habitar a Princesa
Santa Joana, filha daquele Monarca e modelo de quem deseja viver com
liberdade o seu ideal.
Certa vez encontrava-se no Porto D.
Afonso V, com seus dois filhos. Ouviu dizer que iria proceder-se em
Aveiro à profissão religiosa de várias dominicanas, algumas delas
senhoras de nobre linhagem. O Monarca fez questão de, no regresso à
capital, passar por Aveiro e, no dia 12 de Janeiro de 1466, assistia
à comovente cerimónia, a primeira realizada no Mosteiro após a da
Madre Brites Leitoa, a superiora da comunidade que instituíra.
Parece que a jovem filha do Rei, que ia nos catorze anos de idade,
não teve a dita de assistir; porém, como se sentiria feliz, ouvindo
narrar ao pai os diversos actos litúrgicos!... E tudo lhe entraria
bem dentro da alma, que se abrira já a anseos de espiritualidade.
Seria até o começo do seu entusiasmo por Aveiro.
Foram passando os anos. D. Joana,
senhora da casa paterna porque órfã de mãe desde pequenina, contava
agora dezanove anos. Ia desabafando com D. Leonor, filha única do
segundo casamento do Conde de Viana, D. Duarte de Meneses, que de há
tempos pensava seriamente na vida religiosa. Criara-se assim viva
amizade e ambas comungavam nos mesmos sentimentos, que desejavam
concretizar.
D. Leonor colhia informes deste e
daquele convento e, a pedido da confidente, procurava também
notícias do Mosteiro de Jesus, de Aveiro, e do seu teor de vida
austera e piedosa; e tais foram essas novidades que por Aveiro se
decidiu. Uma vez aqui, apressou-se D. Leonor a informar a amiga, que
lhe havia pedido mais pormenores. Efectivamente, D. Joana ficaria a
saber que o cenóbio era um oásis de fervor, na oração, na
penitência, na caridade, no trabalho, na alegria. À maneira que as
missivas lhe iam chegando, cada vez se radicava mais na Princesa a
aspiração de vir para Aveiro, que já tinha começado a amar; não
desejava outro hábito senão o dominicano, nem outro convento senão o
de Jesus.
Princesa Santa Joana. Modelo de quem
deseja viver com liberdade o seu ideal. |
Após o pedido feito ao pai, na
altura do seu regresso do norte de África, ocorreu a experiência de
Odivelas, bem contra sua vontade, junto das freiras bernardas;
sempre visitada e importunada, a Princesa não encontrava aí a
felicidade e a paz. Suplicou, então, ao Rei que a deixasse ir para
longe da Corte; já na viagem, conseguiu demover o pai, que a queria
em Santa Clara (Coimbra), e a caravana prosseguiu para Aveiro.
O que ela sofreu na ocasião! Houve
protestos; Aveiro... rodeada de pântanos, era lugar de desterro e
não morada de príncipes... Santa Joana, todavia, assumiu
voluntariosamente a chefia do grupo, que chegou aqui a 30 de Julho
de 1472; a clausura seria a 4 de Agosto seguinte. Ambicionava ser
uma mulher livre, gozando da liberdade de se realizar na sua
vocação. A 25 de Janeiro de 1475, na sala do capítulo, tomava o
hábito das Irmãs Dominicanas.
|
Depois, pelos anos fora, ninguém,
nem o irmão D. João II, nem os procuradores das cidades e das vilas,
nem os bispos, nem a Corte, nem as ameaças, nem as perspectivas de
casamentos reais, conseguiram retirá-la de Aveiro, onde foi vivendo
a simplicidade da Casa e a vida do claustro.
Se D. Joana se interessou pelo
Convento de Jesus – a sua «Lisboa, a pequena» – mesmo no aspecto
económico que não só no conforto moral, no afecto humano e no
exemplo de santidade que dava às religiosas, também foi alma aberta
para as gentes e coisas da vila, cujos habitantes considerava como
se entregues aos seus cuidados e responsabilidades. Também ela
procurou defender a liberdade de Aveiro ante as atitudes menos
simpáticas ou as prepotências de estranhos.
Assim, por exemplo, os vereadores de
Coimbra haviam tirado ao carpinteiro J. Fernandes o ofício de
assinador das medidas; a Santa Princesa, a 28 de Abril de 1483,
escreveu-lhes uma carta, rogando que o retomassem nesse mester para,
em sua velhice, o pobre homem ter galardão do muito tempo que
servira (9).
Mas a sua acção na defesa da
liberdade de Aveiro ficou sobretudo bem demonstrada na resolução da
caso ocorrido em 1487, quando, em ocasião de peste, rareavam os
mantimentos. A Câmara Municipal mandara vir da Ilha da Madeira um
navio de trigo que, ao chegar, não pôde entrar na barra e rumou para
o Douro. Os tripeiros, ao darem com o tesouro, apreenderam-no e não
autorizavam a saída do navio e da carga. Os nossos homens bons
acorreram confiantes à Princesa, tornada sua irmã e conterrânea, a
fim de interpor valimento junto do Senado do Porto. Santa Joana, de
facto, escreveu aos portuenses a 4 de Outubro, fazendo-lhes ver que
aquele carregamento pertencia a Aveiro. E conseguiu que se fizesse
justiça.
/ 18 /
Com efeito, estava bem gravado na
Princesa este sentimento tão aveirense: o da liberdade!... Ou não
soubesse ela quanto lhe tinha custado conseguir a sua própria
liberdade, ante as invectivas e agressões...
Conta-nos ainda Margarida Pinheiro
que os escravos mouros que lhe eram sujeitos, trazidos nas
caravelas, confiava-os a quem os preparasse para o Baptismo. E, mal
entrados no grémio da Igreja, logo lhe passava cartas de alforria,
promovia-lhes casamentos, dotava os novos casais e ajudava-os na
constituição da família conforme à dignidade cristã.
Diz-nos também a mesma biógrafa,
testemunha dos factos, que, sentindo aproximar-se a morte, Santa
Joana fez o testamento, que é um modelo de humildade e de caridade;
o documento foi assinado a 19 de Março de 1490. Entre as
disposições, tem excepcional importância a que se refere aos
escravos e às escravas, seus filhos, filhas e descendentes, que
deixou forros. E, nos derradeiros momentos, solicitou, ao sacerdote
que a assistia – o prior do vizinho Convento Dominicano – que, no
domingo seguinte, pedisse por ela perdão ao povo da vila,
recomendando que, a haver qualquer reclamação tida por justa, esta
fosse apresentada aos seus procuradores; perdoava mesmo todas as
dívidas de que fosse credora. Belo acta de libertação, criador de
liberdade!...
Se o povo de Aveiro queria tanto à
sua protectora e amiga, mais se teria enternecido com a
magnanimidade desta última atitude, que foi uma extraordinária prova
de interesse e de amor pelas nossas gentes. Por isso, após a morte
ocorrida a 12 de Maio de 1490, confundindo-se com o som plangente
dos sinos da vila, podiam ouvir-se os comentários tristes à triste
nova: – Morreu a mãe dos desamparados! Deus levou-nos a libertadora
dos oprimidos! Desapareceu dentre nós quem nos valia nas
aflições....
Na liberdade do mar
O nome de João
Afonso de Aveiro figura, com merecimento e relevo, na
história ímpar da gesta heróica dos descobrimentos portugueses e nas
páginas da nossa literatura. É cheia de enigmas a sua biografia, em
que há perguntas sem respostas claramente demonstradas:
– Será o mesmo João Afonso de Aveiro
o homem da literatura e o homem do mar. Em geral admite-se que são
dois indivíduos diferentes; mas nada obsta a que sejam a mesma
pessoa, que se tenha dedicado não apenas à navegação e ao comércio
mas também à poesia na Corte, em boa camaradagem com muitos outros
poetas palacianos. Escreveu poemas; o seu nome figura entre os
autores do século XV e no Cancioneiro de Garcia de Resende.
– O pronome de Aveiro
indicará a sua naturalidade ou será apenas um apelido familiar?
Comummente tem-se por sinal da terra onde terá nascido, e isso é-nos
extremamente agradável. Todavia, há também quem opine – e com certo
fundamento – que João Afonso de Aveiro teria nascido em Coimbra,
sendo seu pai Afonso Domingues de Aveiro, o Moço, que por sua vez
descendeu de Afonso Domingues de Aveiro, o Velho – este nado,
baptizado e criado em Aveiro e que, no actual Rossio, adquirira uma
marinha de sal. É ainda este Afonso Domingues de Aveiro que nos
aparece como partidário do Mestre de Avis; vivendo em Coimbra, tomou
parte nas cortes que aí se realizaram em 1385, como procurador dos
concelhos de Coimbra e de Aveiro, para nomearem e aclamarem D. João
I como Rei de Portugal. Foi denodado batalhador das liberdades
nacionais.
Na actividade marítima, João Afonso
de Aveiro foi um dos homens de D. João II que desvendaram os
segredos da terra e do mar, no caminho da Índia. Navegou pela Guiné,
redescobriu o reino e as terras de Benim e estabeleceu uma feitoria
no porto de Gató, para tráfico de escravos e comércio de pimenta,
marfim, ouro e outros produtos. O primeiro cronista que se lhe
refere é Rui de Pina que, na Crónica d'El-Rei D. João lI, diz
o seguinte:
/ 19 /
– «Neste ano (1484) foi
primeiramente descoberta a terra de Benim além da Mina nos Rios dos
Escravos por João Afonso de Aveiro, que lá faleceu; donde a este
Reino veio a primeira pimenta da Guiné cujas mostras foram logo
enviadas à Flandres e a outras partes e foi logo havida em grande
preço e estima. E o rei de Benim enviou a El-Rei um negro seu
capitão dum lugar de porto de mar, que se diz Ugató, como
embaixador, desejoso de saber novas destas terras cujas gentes
souberam lá por grande novidade. Era este embaixador homem de bom
repouso e natural saber, foram-lhe feitas grandes festas e mostradas
muitas coisas boas destes Reinos. E foi retornado a sua terra em
navio d’El-Rei, que à sua partida lhe fez mercê de vestidos ricos
para ele e sua mulher; e assim enviou por ele ao rei um rico
presente de coisas que ele entendeu que muito estimaria. E assim
santos e mui católicos conselhos com louvadas admoestações para a
fé, repreendendo as heresias e grandes idolatrias e feitiçarias de
que naquela terra os negros usam. E com ele foram logo novos
feitores d'El-Rei, para lá estarem e resgatarem a dita pimenta; e
assim algumas outras coisas que para os tratos d'El-Rei pertenciam.
Mas por a terra se achar depois de muito perigo e doenças, e não ser
de tanto proveito como se esperava, o trato se desfez».
João de Barros, na sua Ásia –
Década I, atribuiria a João Afonso de Aveiro uma acção decisiva
na descoberta da Índia e diria que o navegador informara D. João II
de que, para Oriente de Benim, a cerca de duzentas e cincoenta
léguas, «havia um rei, o mais poderoso daquelas partes, a que eles
chamavam Ogané, que entre os príncipes pagãos das comarcas de Benim
era havido em tanta veneração, como acerca de nós os Sumos
Pontífices»; era este soberano quem confirmava os reis de Benim. D.
João II entenderia erradamente tratar-se do decantado Prestes João
das Índias.
João Afonso de Aveiro, falecido na
Guiné em 1487, é bem o protótipo dos nossos mareantes que,
consagrados às actividades do tráfego comercial por rotas oceânicas,
receberam influxos de outras gentes e de outras civilizações e,
insensível e concomitantemente, foram alicerçando em si próprios um
sentido emancipador de liberdade em face das apertadas e estagnadas
tradições ancestrais. A burguesia marítima destacava-se no conceito
social de Aveiro e naturalmente, pelo seu modo de vida mais
confortável pelos lucros que auferia, levava muitos elementos da
população rural a buscarem trabalho sobre as largas ondas. O mar
continuava a fortalecer nos aveirenses uma tendencial liberal, que
os tornava insubservientes a escravizações de nobres, insubmissos no
seu íntimo a injustiças de prepotentes, apenas dobrando os joelhos
ante o Senhor da terra e da água. Apesar de pouco expansivo em
exteriorizações, o nosso povo parecia já ter o sentido da
independência na ordem, sem deixar de atender aos seus deveres
dentro da sociedade nacional.
Um mestre conservador e um padre progressista
Citando palavras de Eduardo
Cerqueira, «há, decerto, entre os aveirenses nossos maiores os que
afinam pelo diapasão e compasso dos que regem a governação e o
pensamento, e, solistas embora, participam no coro geral»;
(10)
Aires de Figueiredo Barbosa,
célebre humanista de latim e grego, é um deles. A sua vida decorreu
no último quartel de quatrocentos e na primeira metade do século XVI;
em 1496 teria começado a carreira docente na Universidade de
Salamanca como professor contratado de Grego, em 1503 era nomeado
professor proprietário da cadeira de Retórica e mais tarde, em 1509,
concorria e era aprovado na cadeira de prima de Gramática, vendo
satisfeita a sua aspiração de professor de Latim. Até fins de 1523,
data em que foi jubilado, ensinou sempre as duas línguas clássicas,
mas a grega com mais distinção, motivo por que ficou conhecido pelo
epíteto de «Mestre Grego». Depois, até 1530, vemo-lo na Corte
Portuguesa a instruir em humanidades o Cardeal Infante D. Afonso,
que então tinha catorze anos de idade, irmão de D. João III.
Aires Barbosa, que viria a falecer
em Esgueira, nas suas pousadas da Rua da Corredoura, a 20 de Janeiro
de 1540, «apegara-se conservadoramente às ideias, digamos, oficiais
do tempo, que sofriam as primeiras fendas. Esse mesmo, todavia, para
defender o imobilismo do pensamento radicado, sai à liça e quebra
lanças. Não se cala, reponta. Não deixa correr, aperta os freios e
pospõe obstáculos, que suporá irremovíveis, às novas correntes
desgarradas. É do seu tempo, integralmente, e não vislumbra o futuro
de que apontam arrebóis, mas corre como que uma cortina para não
ver, nem deixar que se veja uma nova aurora, com novas luzes mais
cintilantes».
(11)
O nosso humanista, na Antimoria,
que redigiu em verso latino durante os últimos anos de vida, exalta
a sabedoria cristã, opondo-se ao Encomium Moriae (Elogio
da Loucura), que o célebre Erasmo de Roterdão publicara em 1501.
Havia muito tempo que Aires Barbosa desejava realizar este seu sonho
dos verdes anos, pondo por escrito ideias que ensinava aos
discípulos; mas só o conseguiria ao ver-se liberto dos trabalhos
universitários e da educação de D.
Afonso.
Tão díspar na vida e no pensamento é
o Padre
Fernão de Oliveira
– ou Fernando Oliveira –
nascido
/ 20 / em Aveiro em 1507.
Desde já, não o julguemos como observador estrito da disciplina
eclesiástica nem como homem rigoroso no cumprimento de programas; é
que ele, no decorrer da sua existência, mostrou-se dotado de um
carácter irrequieto e pouco maleável. Henrique Lopes de Mendonça,
deu-nos um retrato completo deste insigne aveirense:
– «Filólogo como João de Barros,
aventureiro como Fernão Mendes Pinto, perseguido pela Inquisição
como Damião de Góis, navegador como D. João de Castro, porventura o
único dos escritores de arquitectura naval do seu tempo e do seu
País, ele tem além disso para recomendá-lo à consideração da
posteridade uma vida tão cortada de peripécias que constitui um
verdadeiro romance. Foi clérigo e foi soldado, foi marinheiro e foi
diplomata, esteve prisioneiro em mãos de ingleses e em mãos de
turcos, gemeu nos cárceres do Santo Ofício, teve relações com homens
eminentes do seu século».
(12)
Figura curiosíssima da nossa era
quinhentista e precursor em vários ramos do saber, que não deslustra
a época de Camões, escreveu em 1536 a Gramática da Linguagem
Portuguesa; além disso, são de sua autoria a Arte de Navegar,
o Livro da Fábrica das Naus e A Arte da Guerra do Mar.
Se acolá ele tem a glória de ser o primeiro a codificar em letra de
forma o nosso idioma, aqui conseguiu estabelecer normas técnicas
para a navegação, bases reguladoras da construção naval e princípios
militares bélicos. Lendo as suas obras literárias, surpreende-nos
uma tão vasta erudição clássica: os grandes vultos da antiguidade,
tiranos, guerreiros, escritores, poetas, filósofos, humanistas,
luminares da Igreja, são frequentemente citados por Fernão de
Oliveira.
Desassombrada e energicamente
condenou as guerras movidas por cristãos contra infiéis e também
considerou odiosa a prática de os escravizar, como então se fazia
sem escrúpulos nem reservas, mesmo entre povos tidos na vanguarda da
civilização. «Não podemos fazer guerra justa aos infiéis que nunca
foram cristãos, como são os mouros e judeus e gentios que connosco
querem ter paz e não tomaram nossas terras nem por alguma via
prejudicaram a Cristandade» – escreveu o nosso ilustre aveirense n'
A Arte da Guerra do Mar, continuando: – «Porque com todos é
bom que tenhamos paz, se for possível; [...] os quais melhor
converteremos à fé e mais edificaremos nela com exemplo de paz e
justiça que com guerra ou tirania. Tomar as terras, impedir a
franqueza delas, cativar as pessoas daqueles que não blasfemam de
Jesus Cristo nem resistem à pregação da sua Fé, quando com modéstia
lha pregam, é manifesta tirania». E avançava no seu justo
raciocínio, sob os ditames de um espírito tolerante e amigo da
liberdade:
– «E não é nesta parte boa escusa
dizer que eles se vendem uns aos outros, que não deixa de ter culpa
quem compra o mal vendido e as leis humanas desta terra e doutras o
condenam, porque, se não hovesse compradores, não haveria maus
vendedores, nem os ladrões furtariam para vender. [...] Não se
achará nem razão humana consente que jamais houvesse no mundo trato
público e livre de comprar e vender homens livres e pacíficos, como
quem compra e vende alimárias, bois ou cavalos e semelhantes. Assim
os tangem, assim os constrangem, trazem, e levam, e provam, e
escolhem com tanto desprezo e ímpeto, como faz o magarefe ao gado no
curral. Não somente eles, mas também seus filhos e toda a geração,
depois de que nascidos e cristãos, nunca têm remissão. [...] Os que
vão buscar esta gente não pretendem sua salvação e consta que, se
lhe tirarem o interesse, não irão lá. [...] Quanto mais que muitos
não ensinam a seus escravos como hão-de conhecer e servir a Deus,
antes os constrangem fazer mais o que lhes eles mandam que a lei de
Deus e da sua Igreja, tanto que nem os deixam ir ouvir missa nem
Evangelho, nem sabem a porta da igreja para isso, nem guardam
domingos nem festas».
(13)
A citação saiu demasiada; mas por
ela vemos a têmpera de Fernão de Oliveira, que não transigia com o
cercear das liberdades fundamentais e que desejava uma sociedade
onde os homens se respeitassem mutuamente, sem explorações nem
atropelos. Sempre que encontrava motivo para verberar pessoas ou
acontecimentos, não se retraía; mesmo aos possíveis críticos das
suas obras ousou lançar um desafio no final da Gramática da
Linguagem Portuguesa:
- «Eu não dou licença que alguém
possa ser meu juiz, senão quem ler os livros que eu li e com tanto
trabalho e tão bem ou melhor entendidos. E, ainda assim, a sentença
há-de ser que para meus erros escrevam da mesma matéria outras obras
melhores, nas quais mostrem saber mais que eu disto de que falámos».
Aventureiro capaz de conviver
igualmente com nobres e marítimos, mas sem nunca perder a índole
naturalmente rebelde e franca, já pressentimos que este clérigo é
uma das figuras mais completas da Renascença em Portugal,
manifestando largueza de vistas e arrojo de opiniões, que soube
manter mesmo em oposição às instituições da época. Não se sentindo
bem na regra e no hábito dos frades dominicanos, ainda novo
conseguiu exclausurar-se e passou a trajar como os leigos. Mas não
só. Certa vez, passando pelo Tejo uma armada francesa, alistou-se
clandestinamente como piloto numa das galés e seguiu para o Canal da
Mancha; chegado aqui, deram-se lutas entre ingleses e franceses,
primeiro com sorte indecisa, mas depois, em 1546, com favor para os
bretões. O
/ 21 / Padre Fernão de
Oliveira foi feito prisioneiro e levado para a Inglaterra, onde
rapidamente travou relações com o próprio Rei Henrique VllI Na
Grã-Bretanha degladiavam-se então os conservadores católicos e os
protestantes reformados – estes favorecidos pelo Monarca; decerto
que, no ambiente de disputa, ao espírito revoltadiço e céptico do
antigo dominicano não foi indiferente a hostilidade contra a
supremacia do poder papal. Pois se Fernão de Oliveira havia de se
manifestar mais tarde contra o abuso na veneração das imagens e de
condenar os milagres sem provas, que julgava uma exploração do povo
ignorante!...
Regressando ao Reino, em 1547, logo
começou a publicar ideias heterodoxas acerca do Catolicismo, com
escândalo dos ouvintes. Não tardaria que o nosso aveirense
quinhentista caísse nas garras da Inquisição e sofresse castigo, por
mais do que uma vez, nas suas implacáveis cadeias.
Foi desta forma toda a existência
conturbada do Padre Fernão de Oliveira. Os últimos anos da sua vida
passaram-se na obscuridade, de modo que nem sequer se tem
conhecimento exacto de lugar e da data da sua morte. Apenas se sabe
que, em 1565, já com cinquenta e oito anos, D. Sebastião lhe
concedeu uma tença de 20.000 réis anuais, na qualidade de clérigo de
Missa que lera casos de consciência no Convento de Palmela; um
desses casos seria o que respeitava à rebeldia em que se consumira
contra alguns preconceitos do tempo e contra entidades poderosas que
os defendiam.
Na história da liberdade em Aveiro,
não se pode esquecer este homem do século XVI, criatura de tão
singular psicologia, de tão malbaratada actividade, de tão
surpreendente erudição e de tão grande perspicácia.
Vila Notável
Entretanto, dava-se o
enfraquecimento de Portugal, após a epopeia dos descobrimentos,
motivada pelas lutas da sucessão ao trono. D. António, Prior do
Crato, foi derrotado na batalha de Alcântara, a 25 de Agosto de
1580, pelas tropas espanholas comandadas pelo Duque de Alba. Fugindo
precipitadamente por Sacavém, D. António dirigiu-se para o norte,
passou por Santarém, que o não recebeu com agrado, e chegou a
Coimbra, onde foi esperado com demonstrações de alegria; depois de
retemperar as forças e de juntar cerca de cinco mil homens, resolveu
atacar Aveiro, que não lhe era favorável. Apesar da viva resistência
que ofereceu ao invasor, a vila cedeu ante a força de Prior do
Crato; abertas violentamente as portas da muralha, foi saqueada de
quanto tinha, sem lhe ficar nada: pratos, roupas, sal, móveis,
dinheiro – tudo levou esse bando de soldados, logo que entrou nas
ruas de Aveiro. Estabelecido o seu centro de defesa no largo do
Rossio, não longe da ponte da Porta da Ribeira, D. António
mostrou-se duro para com a população e para com os nobres, em
vexames, desacatos e enforcamentos. Essas atitudes de
amesquinhamento levariam Aveiro, amante da liberdade, a emparceirar
ainda mais ao lado das pretensões do Rei de Espanha e dos seus
desejos.
Filipe I de Portugal não foi
insensível às mostras de fidelidade dos nossos antepassados e
procurou valorizar a vila de Aveiro. A 12 de Maio de 1581 far-lhe-ia
a seguinte mercê: – «Que os da governança dela e seus descendentes
que da mesma maneira pelo tempo em diante forem da dita governança
possam gozar e gozem dos privilégios concedidos pelos reis passados
destes Reinos à cidade de Coimbra»; e, no dia imediato, elevou-a à
categoria de «Vila Notável», atendendo à grandeza da povoação «e
havendo outrossim respeito aos muitos serviços que os moradores dela
têm feito aos reis meus antecessores e aos que espero que ao diante
a mim façam e a meus sucessores, e a ser povoada de muitos fidalgos
cavaleiros e pessoas de nobre geração e criação, e casas nobres e de
criação dos reis destes Reinos, e acompanhada de outro muito povo, e
por ser cercada de muros e enobrecida de igrejas, mosteiros e de
muitos edifícios e casas nobres».
Um daqueles fidalgos era, por
exemplo, Fernão Gabriel da Veiga,
falecido uns anos após, em 1588. Sendo um valoroso militar e
pertencendo à Casa de D. Jorge, Duque de Aveiro, foi maltratado e
detido pelas tropas do Prior do Crato; conseguindo fugir da prisão,
embora com o sequestro dos bens que possuía, seguiu na «Armada
Invencível». Destroçados os barcos espanhóis por uma horrorosa
tempestade, o ilustre aveirense salvou-se a nado, mas, exausto, não
logrou sobreviver.
Outra aveirense de nobre linhagem
aqui nascida uns anos depois, a 23 de Fevereiro de 1586, filha dos
primeiros Condes de Miranda do Corvo, foi D.
Beatriz de Vilhena. De tenra idade, esta senhora saiu
para Madrid, onde foi nomeada dama do Paço por D. Margarida de
Áustria, mulher de Filipe II de Portugal e III de Espanha. Notável
pela inteligência, erudição e formosura, recusou todas as propostas
de casamento e veio a professar num Mosteiro de Capuchas,
ficando-nos a fama das suas qualidades e virtudes.
(14)
Uma gaiata travessa
É da época filipina uma filha
ilustre de Aveiro, Antónia Rodrigues,
nascida a 31 de Março de 1580, segundo opinião mais corrente; era da
freguesia da
/ 22 / Apresentação, onde se
situava o bairro piscatório – aglomerado de casas modestas, muitas
cobertas de colmo. Filha da arraia miúda e humilde, contou em poucos
anos de idade largos merecimentos e morreu tão ilustre que podia ser
timbre das heroínas da Grécia e de Roma – no dizer do Padre António
Carvalho da Costa, na Corografia Portuguesa.
Seu pai, Simão Rodrigues, era
marítimo de profissão e sua mãe, Leonor Dias, ocupava-se nos
trabalhos domésticos e nos cuidados do marido e dos filhos. Como os
rendimentos do casal fossem parcos, a Antónia foi, nos seus verdes
anos, para a companhia de uma irmã casada que vivia em Lisboa. Na
capital, a nossa adolescente não teve boa aceitação e era mesmo
maltratada pela irmã e pelo cunhado – o que criou no espírito
insubmisso de Antónia Rodrigues o sentido da revolta e da
libertação; a pobre rapariga levava com obediência forçada uma vida
desgostosa.
Mas... por pouco tempo; deslumbrada
com as aventuras contadas pelos capitães dos navios que regressavam
a Lisboa, vindos de outras paragens, a pequena começou a sonhar «com
os esplendores do Oriente, com os jardins de Ceuta, com os
dramáticos encontros afrontando piratas no alto mar e com os cercos
famosos das fortalezas de África e da índia, em que as mulheres
representavam por vezes tão insigne papel» – nas palavras do Conde
de Sabugosa. E a sua índole de aventureira na liberdade
independente, com origens nas ruelas da Beira-Mar de Aveiro ou no
pequeno barco do pai pela ria e pelo oceano, ia sendo estimulada
pela tentação de correr mundo.
Soltando o brado da emancipação,
juntou umas pequenas economias, fugiu da casa da irmã, comprou e
vestiu um fato conforme ao trajo dos moços que serviam nos navios
mercantes, cortou o cabelo e indo ao cais da Ribeira, contratou-se
com o mestre de uma caravela que, carregada de trigo, se aprestava a
zarpar para Mazagão, no norte de África. Conseguindo ocultar a sua
feminilidade, trabalhou de grumete com o nome de António.
Uma vez em Mazagão, foi o
capitão-mor da Praça avisado de que o mestre do navio fizera furto e
falsidade no trigo que levava; abriu-se uma devassa e Antónia
Rodrigues, sem temer represálias, falando com decisão e declarando
toda a verdade, descobriu a desonestidade do mestre. Por isso, o
capitão-mor não consentiu que o grumete voltasse ao reino naquela
caravela, para que ninguém lhe fizesse mal, e alistou-o entre os
soldados de infantaria. Tomou-se hábil no manejo das armas, camarada
dos seus colegas, exemplar no seu comportamento, sempre conseguindo
encobrir a sua condição de mulher. Sendo de inteligência arguta,
denunciou a tempo uma conjura dos mouros que se preparavam para,
numa noite, fazerem uma sortida, matarem pessoas e destruírem as
searas. Tendo-lhe sido dado o comando de um troço de tropas, dirigiu
as manobras de tal forma que liquidou completamente o inimigo. No
regresso, Mazagão recebeu-a com delírio e aclamações. Passados
alguns meses, o capitão-mor incorporou-a na cavalaria; começaria
então o período mais famoso da sua carreira militar.
Não pretendemos analisar com as
coordenadas do nosso tempo os factos e os acontecimentos do século
XVI. Cada época tem a sua maneira de ser, com os seus claros e
escuros, com as suas qualidades e defeitos, e as acções dos homens
têm de ser julgadas no ambiente em que eles viveram. Embora
descubramos no comportamento social dos tempos passados aspectos
negativos de baixa escala, nós nunca devemos praticar a injustiça de
julgar os homens desencarnando-os do contexto histórico em que
estiveram integrados. A Cristandade ainda vivia sob o medo das
terríveis incursões mouras; a Europa não só procurava defender-se
das razias da «guerra santa» dos árabes, como até procurava
castigá-los noutras regiões, para criar várias frentes de conflito e
desviar as atenções dos seguidores de Mafoma. Estão nesta linha as
flagelações com que os portugueses os castigavam no norte de África
e mesmo na longínqua índia. Eram restos do espírito medieval da
Cruzada.
Antónia Rodrigues – ou António
Rodrigues – aparece-nos envolvida nas operações militares à volta de
Mazagão, em defesa da Praça contra os ataques e as surpresas da
mourama. Avantajava-se aos outros na destreza das cavalgadas; «e no
cometer aos inimigos nas empresas maiores e de importância, sempre o
capitão o nomeava e mandava na dianteira, como ao mais destro
cavaleiro que tinha» – informa Duarte Nunes de Leão. Espalhava o
terror nas hostes inimigas, realizava prodígios de audácia militar
em inúmeras correrias e combatia encarniçadamente de tal sorte que
lhe deram o epíteto de «Terror dos Mouros».
Assim viveu durante cinco anos
Antónia Rodrigues, ocultando o segredo do seu sexo e servindo o
exército com trajo de homem. Mas, agora que estava na pujança da
juventude, não podia continuar a viver como rapaz. Abriu-se
voluntariamente a um sacerdote digno e austero, e os dois foram ao
capitão-mor. Combinou-se que Antónia Rodrigues abandonasse o
exercício das armas, o uniforme de soldado e os vestidos de varão.
Decerto que logo tinha de correr a fama por toda a Praça, que a
estimava, como homem de luta e agora a reconhecia como donzela.
«Invejando todos em tão humilde fortuna tão nobre coração, não
cessavam de encarecer a honra que soubera ganhar, menos vencendo
tantas vezes o inimigo na campanha, que triunfando da mesma natureza
nos viciosos quartéis da soldadesca, virtude que se deve contar
nesta
/ 23 / heroína por primeira
entre outras muitas» – assim escreveu Frei João de São Pedro.
Tendo casado, regressou ao Reino,
onde foi galardoada com mercês régias e onde viria a falecer. Na
nossa recordação e na nossa história, ficou-nos este grande exemplo
de decisão, energia, independência, aprumo e heroísmo. Sobretudo o
que nos surpreende é a conquista da sua própria liberdade, na
vitória sobre si mesma e sobre o ambiente que proximamente a
rodeava. Antes de ser valente militar, soube ser mulher superior.
Para nós, Antónia Rodrigues é mais um testemunho da maneira de ser
das gentes de Aveiro, que também souberam marcar a sua
individualidade na epopeia dos descobrimentos e das conquistas.
A barra e o índice demográfico
Entretanto, neste século XVII, mesmo
sob a dominação filipina, Aveiro conheceu um período de certo
progresso material, atestado ainda hoje por edifícios desse tempo.
Ergueu-se a singular fábrica pós-renascentista da igreja da
Misericórdia, construiu-se o Convento do Carmo, fundou-se o de Santo
António e apareceram diversas casas que subsistem por aqui e por
ali, sobretudo na velha Rua Direita e na Vila Nova. Ao longo do
século seguinte, levantaram-se os Conventos das Carmelitas de S.
João Evangelista e das Franciscanas da Madre de Deus em Sá e o
Recolhimento das Terceiras Capuchas de S. Bernardino. No primeiro
quartel de setecentos edificou-se outrossim a capela do Senhor das
Barrocas, tão venerado da gente do mar, e o século culminou com a
feitura da Casa da Câmara.
Mas as vicissitudes de Aveiro têm
estado sobremaneira ligadas às condições da nossa barra; por isso,
até podemos acompanhar o índice populacional da povoação pelas
flutuações na localização da referida barra. Assim, por 1200,
formada a nova linha de costa pelo depósito de areias, a barra
achava-se na Torreira; nos fins do século XV encontrava-se quase
obstruída perto de São Jacinto, e uma peste, causada pela estagnação
das águas, dizimava Aveiro, que se via reduzida a cerca de 3000
habitantes; à volta de 1580 a barra estava fixada na Costa Nova do
Prado e os habitantes da vila ascenderam a uma cifra jamais atingida
até então. Era tal o progresso que, em 1572, a população alcançava o
número de 11 365, contudo apenas as pessoas de comunhão, de sorte
que o Bispo de Coimbra, D. Frei João Soares, recentemente chegado do
Concílio de Trento, achou excessiva aquela população para a única
freguesia de S. Miguel e, por provisão de 10 de Julho desse ano,
criou mais três paróquias: Espírito Santo, Apresentação e Vera-Cruz.
Posteriormente, nos meados do século
XVII, a barra encontrava-se na Vagueira e, em 1756, caminhava ainda
mais para o sul, para perto do limite do concelho de Mira, e Aveiro
voltava a decrescer para cerca de 10000 habitantes, e até para cerca
de 7000, em 1774. Havemos também de nos referir à fixação definitiva
da barra em 1808; desde então a cidade não cessaria de subir no
ritmo demográfico.
Na restauração da liberdade nacional
Foi em 1640 que se deu o
levantamento nacional contra a dominação espanhola. A 1 de Dezembro,
um grupo de fidalgos, concretizando e aglutinando a vontade de um
povo, ergueu o brado da revolta e, expulsando o domínio estrangeiro,
proclamou D. João IV como nosso Rei.
Para as campanhas da chamada Guerra
da Restauração, que se prolongou por muitos anos, foram alistados
militares por todo o País, cujas idades iam de vinte a quarenta
anos.
Também os homens de Aveiro,
englobados no movimento geral de libertação, ajudaram a consolidar a
independência nacional, após o golpe revolucionário. Formaram-se
diversas companhias e esquadras com seus capitães – a de São Miguel,
a do Espírito Santo, a da Vera-Cruz... – que agruparam heróis
desconhecidos, é certo, mas soldados beneméritos de uma Pátria que
se queria livre, a viver a sua sorte e a sua liberdade.
É bem significativo para nós o
alvará de 12 de Abril de 1641, em que D. João IV confirmou todos os
privilégios de que Aveiro gozava por concessões anteriores,
manifestando aos aveirenses a maior gratidão, tanto pela sua
constante fidelidade aos Reis de Portugal, como por «ajudarem a
sustentar a independência da Pátria com suas pessoas e fazendas».
(15)
Seria etnocentrismo estreito, de
vistas apertadas, se os aveirenses não estivessem abertos aos
superiores interesses nacionais. Quando a Pátria está em jogo, há
que defendê-la e trabalhar por ela, ultrapassando as barreiras do
burgo. Talvez mesmo acontecesse que, lutando pela liberdade, os
aveirenses estivessem a abrir horizontes à sociedade portuguesa...
Os sinais dos tempos manifestam-se de muitos modos.
Um agente da Revolução Cultural
O século XVIII – conhecido por
«século das luzes» – foi um tempo de mutação profunda e ampla em
muitos sectores da sociedade europeia; e sucedeu até que, antes de
acontecer a transformação revolucionária na ordem dos factos, já se
verificara uma outra transformação no campo das ideias. Em França,
por exemplo, a Revolução de 1789 foi precedida pelo filosofismo da
/ 24 / Enciclopédia e
dos seus corifeus. Tais ideias haviam sido importadas da
protestante, liberal e livre-pensadora Inglaterra, provocando a
dúvida e a negação do sistema católico-absolutista da velha Europa;
tinha concorrido para isso um mal-estar generalizado, proveniente
das sangrentas lutas religiosas, das perseguições, do fausto
escandaloso das Cortes e da Nobreza, do testemunho negativo do
Clero, das estéreis polémicas de filósofos e de teólogos.
Em Portugal, os próprios governantes
abriam brecha na armadura forjada para preservar a nossa sociedade
de influências duvidosas. Em 1708, um primeiro decreto punha termo
ao monopólio jesuítico do ensino secundário; depois, outras se
seguiriam. Pelos meados do século, havia portugueses que estudavam e
se notabilizavam no estrangeiro e simultaneamente transmitiam para
Portugal o novo espírito do positivismo científico, lá fora em pleno
triunfo e entre nós timidamente semeado; viriam depois o Padre
Oratoriano Luís António Verney e o Marquês de Pombal. Na teoria
daqueles portugueses, conta-se o Padre João
Jacinto de Magalhães, nascido em Aveiro a 4 de Novembro
de 1722.
Para este homem, cheio de grandes
sonhos, Aveiro, a iniciar um declínio acelerado para a sua mais
grave crise, era terra demasiado pequena; em 1743, entrava na
Congregação dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, em Coimbra,
tendo professado com o nome de Frei João de Nossa Senhora do
Desterro. Passados breves anos, consciente do modo imaturo com que
ele e outros faziam os votos religiosos, obteve o breve de
secularização; vestiu a batina vulgar, um pouco mais larga, até que,
ainda não satisfeito, mudaria de terra e viria a desfazer-se da
sotaina de clérigo. Julgava assim concretizar a sua libertação
interior.
De facto, João Jacinto de Magalhães,
ansioso de viver em ambiente de ideias mais livres, ausentava-se de
Portugal entre 1756 e 1758, vindo a fixar-se em Londres (1764), onde
encontraria um meio culto mais conforme às suas inclinações; deixava
o País, mas não só o engrandeceria com o seu nome prestigiado como
também nunca lhe negaria o seu contributo. Correspondeu-se com
sábios europeus, como Euler, Lavoisier, Volta e Watt, pertenceu a
influentes organizações científicas do tempo, escreveu diversos
livros de ciências experimentais, dedicou-se à construção e
aperfeiçoamento de aparelhos de precisão, alguns dos quais lhe
compraram os governos de Portugal e de Espanha. Por semelhante
razão, este aveirense, falecido na Inglaterra em 1790, foi um dos
homens que mais contribuíram para o progresso da Física na última
metade do século XVllI.
Sobrinho-trineto do circum-navegador
Fernão de Magalhães, João Jacinto não foi um homem propriamente do
povo, mas trabalhou incansavelmente nas suas experiências e
escritos. Rumando por outros caminhos que não os das águas largas do
Oceano, andava-lhe nas veias o sangue de mareantes e de
desvendadores de novas rotas; se não tem o autêntico cerne do homem
de Aveiro, ele é, todavia, um dos expoentes do espírito das nossas
gentes. Como frisou um dos seus biógrafos a propósito da feitura do
livro Mineralogy – um «trabalho beneditino» – o ilustre homem
de ciência elaborou-o sem pensar em auxílio material ou em
remuneração. Mesmo nisto, o Padre João Jacinto de Magalhães se
mostrou um homem liberal.
Cidade
Detenhamo-nos agora num facto
importante para Aveiro, a encher uma nova página ilustrada da
história da liberdade na nossa terra.
Decorria o ano de 1758. A 13 de
Dezembro, ao tornar-se público o respectivo processo, comunicava-se
oficialmente ao País ter sido El-Rei D. José I vítima de um atentado
na noite de 3 para 4 de Setembro; entre os implicados no crime,
encontrava-se gravemente responsabilizado D. José de Mascarenhas,
Duque de Aveiro e Marquês de Gouveia, além de Grão-Mestre da Casa
Real. Em face desta versão, urdida em segredo durante meses, a
população aveirense verberou indignada o «horroroso e sacrílego
insulto» e revoltou-se contra o donatário da vila. A 6 de Janeiro de
1759, na igreja matriz de S. Miguel, reuniram-se o Senado Municipal,
a Nobreza, o Clero, o Elemento Militar e o Povo e, nas mãos do
prior, Frei Paulo Pedro Ferreira, depuseram um protesto solene
contra aquele atentado, declarando que não queriam que esta povoação
continuasse sob a tutela de donatários mas que desejavam que ela
ficasse imediatamente sob o governo de D. José I, a quem prestaram
juramento de fidelidade. Na sequência dos factos, D. José de
Mascarenhas seria condenado à morte, a 12 de Janeiro; a duríssima
sentença executar-se-ia no dia seguinte, em Belém, no meio de
horríveis sofrimentos e com requintes de ferocidade.
O Monarca mostrou-se sensível e
agradecido perante a atitude de repulsa dos habitantes de Aveiro e
procurou, desde logo, valorizar a vila, coadjuvado pelo Marquês de
Pombal. Assim, a 11 de Abril daquele ano, D. José I assinava o
alvará pelo qual a vila de Aveiro, notável por mercê filipina, era
elevada à dignificante categoria de cidade: – «Hei por bem e me
apraz que a dita vila de Aveiro do dia da publicação deste em diante
fique erecta em cidade» – lê-se no documento.
A 1 de Junho, a Câmara Municipal,
por sua vez, resolveu agradecer oficialmente a El-Rei a graça
/ 25 / concedida,
encarregando o aveirense João de Sousa Ribeiro da Silveira,
cavaleiro da Ordem de Cristo e capitão-mor de Ílhavo, de beijar a
mão de Sua Majestade, como sinal da mais viva gratidão, e de lhe
pedir dispensa de pagamento dos direitos. Desempenhando-se dessa
honrosa missão, o ilustre fidalgo trouxe a carta régia que
entretanto o Monarca tinha assinado a 25 de Julho, pela qual se
fazia público de que Aveiro – elevada a cidade – definitivamente
teria «todos os privilégios e liberdades de que devem gozar e gozam
as outras cidades deste reino, concorrendo com elas em todos os
actos públicos e usando os cidadãos da mesma cidade de todas as
distinções e proeminências de que usam os de todas as outras
cidades». (16)
O capitão-mor, chegado a Aveiro, leu
e entregou o documento nos Paços do Concelho, a 29 de Setembro,
festa de S. Miguel, presentes a Vereação, o Clero, a Nobreza e o
Povo. Seguidamente, na igreja matriz, houve missa solene, sermão
pelo orador Frei Bernardo de S. José Magalhães, da Ordem dos
Pregadores; à tarde, cantou-se um te-deum, levantaram-se
preces pelo Rei e uma procissão em honra de S. Miguel percorreu as
ruas da nova cidade, bem ornamentadas; e as manifestações de alegria
prolongaram-se pelos dois dias seguintes, com festejos populares,
iluminações, encamisadas e touradas. Aveiro era a décima sétima
cidade de Portugal, por ordem cronológica.
Como o acontecimento fora de
transcendência para a povoação, o vigário da freguesia de Nossa
Senhora da Apresentação, Padre Frei Manuel Marques de Figueiredo,
quis registá-lo no livre corrente dos assentos dos Baptismos,
referindo o facto e as mostras de regozijo.
A 19 de Setembro de 1790, D. José I
assinava mais uma provisão pela qual delimitava a jurisdição da
comarca ou correição de Aveiro, que se estenderia às vilas de
Esgueira, Ílhavo, Aradas, Soza, Vagos, Frossos, Pinheiro, Angeja,
Estarreja, Fermedo, Bemposta, Trofa, Serém, Vouga, Aguieira,
Préstimo, Assequins, Recardães, Segadães, Casal de Álvaro, Brunhido,
Avelãs de Cima, SangaIhos, Ferreiros, São Lourenço do Bairro, Couto
de Esteves, Paredes, Ois do Bairro e Oliveira do Bairro; mais
declarava El-Rei que «o provedor, que até agora se intitulava de
Esgueira, ficará de hoje em diante sendo provedor da cidade de
Aveiro». (17)
O Governo demonstrou ainda efectivo
interesse pelo progresso de Aveiro, mesmo pensando na instalação de
indústrias de vidro e de seda, embora o índice populacional da
cidade, nessa segunda metade de século XVIII, continuasse a
declinar.
Autonomia religiosa
Em remotos tempos da Cristandade,
havia em cada Catedral, à imitação da Santa Sé, um arcediago – o
primeiro dos diáconos – que nos pontificais ministrava ao Bispo e
que o auxiliava no governo temporal da Diocese. Assim devia também
suceder na Catedral de Coimbra, a cuja jurisdição pertencia Aveiro.
Temos mesmo alguns documentos que nos falam da existência deste
cargo, sobretudo a partir da reconquista da cidade aos mouros em
1064 por D. Fernando Magno, Rei de Leão. Dada a extensão da Diocese,
o Prelado tinha necessidade de escolher pessoas que o coadjuvassem;
assim, em 1116 havia em Coimbra três arcediagos e em 1131 quatro,
aos quais pertencia visitar as igrejas em nome do Bispo e de
ajudá-lo no governo. Então, o grande território conimbricense havia
sido dividido em três zonas, além da cidade: na parte oriental
existia o chamado Arcediagado de Seia, pela vila que lhe servia de
cabeça; a região ocidental estava naturalmente dividida pelo rio
Mondego, de leste a oeste, em duas partes, das quais a setentrional
se chamava Arcediagado do Vouga, com sede em Esgueira e depois na
vila de Aveiro, e a meridional Arcediagado de Penela, com sede na
vila do mesmo nome. Os arcediagos intitulavam-se pelos respectivos
Arcediagados: Cidade, Seia, Vouga e Penela.
Quanto ao Arcediagado do Vouga, ele
alargava-se por cento e quarenta e cinco freguesias e dilatava-se
por vasta região; confinava a norte com a Diocese do Porto no rio
Antuã, a oriente com a Diocese de Viseu e com o Arcediagado de Seia,
a sul com o rio Mondego e com o termo da cidade de Coimbra, e a
ocidente com o Atlântico.
Os arcediagos tinham ainda outros
deveres a cumprir na Sé: residência coral em certas épocas do ano,
na medida em que isso fosse compatível com os trabalhos da visitação
e do governo, e serviço litúrgico nos actos pontificais.
Todavia, as antigas jurisdições dos
arcediagos foram diminuindo, no decurso do tempo, até se
extinguirem. Eram participações da jurisdição ordinária do Bispo
diocesano; pouco a pouco, por conveniência da Igreja, foram
reassumidas pelo dito Ordinário. Se o interesse eclesiástico havia
produzido a descentralização, o mesmo interesse veio aconselhar
depois a nova centralização; passaram os bispos de Coimbra a fazer
por si, ou por seus delegados ad hoc, a visita às freguesias
e aos conventos, conservando-se ainda, para esse efeito, a divisão
regional da Diocese em arcediagados. Para cada zona era escolhido e
nomeado um visitador, sem referência ao arcediago, para quem era
estranha a visitação. As cúrias arquidiaconais desapareceram e todas
as causas passaram a ser julgadas
/ 26 / pelos juízes da Cúria
Episcopal, em primeira instância; apenas permaneceram as funções
litúrgicas nos actos da Sé.
Voltando a fixar a nossa atenção no
Arcediagado do Vouga, no dealbar do século XVIII ele encontrava-se
naquela situação e o respectivo titular somente tinha o privilégio
litúrgico de servir o Bispo na Catedral, como diácono da Missa. Mas
quanto às prebendas, o arcediago do Vouga, ao contrário dos colegas,
continuaria a recebê-las até à supressão de 1834, mesmo após a
criação da Diocese de Aveiro.
Efectivamente, dentro do plano de
engrandecimento de Aveiro, torna-se fácil enquadrar o propósito de
D. José I e do Marquês de Pombal em estabelecer aqui uma sede
episcopal, tanto mais que a urbe era também um centro de piedade à
volta do túmulo e das cinzas da Princesa Santa Joana. A 28 de
Setembro de 1773, o Monarca dirigia ao Papa Clemente XIV uma carta
em que rogava a Sua Santidade a partilha da disforme extensão do
Bispado de Coimbra», separando-se «a comarca de Esgueira para nela
constituir uma nova Diocese, a que sirva de cabeça a cidade de
Aveiro, constituindo a mesma comarca o território da nova Diocese».
(18)
Não podemos deixar de referir uma
outra circunstância que porventura terá também influído no ânimo do
Marquês para o levar a tomar a resolução que nos ocupa. Vítima do
despotismo pombalino, o valoroso e heróico Bispo de Coimbra, D.
Miguel da Anunciação, encontrava-se desde há anos encarcerado, em
condições desumanas, no forte de Pedrouços; tinha por prisão um
cubículo quadrado de nove palmos, que recebia a luz do tecto por uma
minúscula fresta. Foi precisamente nesta altura que D. José I e
Carvalho e Melo resolveram solicitar a divisão da Diocese
Conimbricense. Nem será descabido duvidar se se pretendia a erecção
do Bispado de Aveiro apenas para mais serviço a Deus e bem das
almas, acrescidas embora do intuito de engrandecer a nova cidade, ou
ainda para amesquinhar um Prelado destemido. Entra aqui o plano da
Providência, conduzindo a história dos homens, mesmo servindo-se de
intenções menos puras, para fazer brotar as suas obras admiráveis.
Aveiro no início do século XIX. Cercada
de muralhas para defesa da sua liberdade. (Versão
2000 px)
Após o respectivo processo, a Sumo
Pontífice, pela breve Militantis Ecclesiae gubernacula, de 12
de Abril de 1774, erigiu canonicamente a Diocese de Aveiro, nos
termos e segundo os limites em que lhe fora solicitado por El-Rei.
Ficava-lhe a pertencer toda a comarca, correição ou provedoria de
Esgueira que, no século XVIII, agrupava setenta e uma freguesias e
um curato praticamente autónomo, com mais de 20 000 fogos
/ 27 / e com cerca de 75000
almas. Aveiro «edificada numa planície», que «se compõe de cerca de
duas mil casas e é habitada por sete mil fiéis»
(19), ficou, pois, a ser
também cidade episcopal, com a liberdade própria de um governo
eclesiástico, cujo responsável era um Bispo particular.
Para executar as Letras Apostólicas,
foi escolhido pelo Papa o Cardeal Inocêncio Conti, Pró-Núncio em
Portugal, com o poder de subdelegar. De facto, presidiu à cerimónia
o Arcebispo Titular de Lacedemónia e Vigário-Geral do Patriarcado de
Lisboa, D. António Bonifácio Coelho, amigo e servidor de Carvalho e
Melo; o acto realizou-se a 24 de Março de 1775, na igreja da
Misericórdia que, em consequência de prévia portaria real de 10 do
mesmo mês, se viu elevada a catedral.
Perdurou até 1882 a primeira Diocese
de Aveiro; neste ano efectivou-se uma nova delimitação dos Bispados
portugueses, sendo extinto o de Aveiro que, em 1938 – como veremos –
seria reconstituído com nova configuração territorial.
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