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N.º 19

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1975 

A Liberdade em Aveiro

Pelo Padre

João Gonçalves Gaspar

Figuras abordadas: Condessa Mumadona Dias Princesa Santa JoanaJoão Afonso de Aveiro Aires de Figueiredo Barbosa Padre Fernão de OliveiraFernão Gabriel da VeigaD. Beatriz de VilhenaAntónia Rodrigues Padre João Jacinto de Magalhães ●   ● Coronel Reinaldo OudinotCapitão Luís Gomes de CarvalhoBispo D. António José CordeiroJosé Estêvão Coelho de MagalhãesManuel José Mendes LeiteSebastião de Carvalho e Lima Sebastião de Magalhães LimaJaime de Magalhães LimaFrancisco Manuel Homem CristoJosé Reynaldo Rangel de Quadros OudinotJoão Augusto Marques GomesAntónio Gomes da Rocha MadahilGustavo Ferreira Pinto BastoLourenço Simões PeixinhoAlberto SoutoJosé Afonso Cerqueira da EncarnaçãoD. João Evangelista de Lima Vidal


Na ânsia congénita de descobrir sempre mais alguma coisa do mundo desconhecido, de dar remédio às limitações que teimosamente o afligem e de encontrar explicações e respostas para as múltiplas interrogações do seu espírito insatisfeito, o homem tem procurado avançar com persistência por caminhos não desvendados e tirar conclusões de premissas certas ou prováveis.

Ao debruçarmo-nos sobre um traço constante e proeminente da história de Aveiro, qual é o sentido dos seus habitantes pela liberdade, surgem-nos logo umas quantas perguntas: – Será que para este jeito dos aveirenses tenha contribuído a terra onde se enraizaram? Será que, emigrados de várias partes, tenham trazido consigo a natural desabituação das tradições que encontraram nos povos vizinhos?

Se as perguntas são fáceis de fazer, as respostas são difíceis de dar, porque nos faltam pontos de apoio concretos.

Perscrutando o incógnito

Em determinada época da história anterior a Cristo, decerto que homens e mulheres desceram das alturas do interior ou, viajando por mar e aqui aportando, vieram de outras paragens. Encontraram um solo de aluvião, que se alargaria nos séculos futuros pelo afastamento da linha do mar; vieram a usufruir de caudais de água, uma doce e outra salgada, donde pescavam o peixe e colhiam o estrume para a agricultura. A Terra mostrou-se-lhes fácil de trabalhar e branda para calcorrear; e esses homens e essas mulheres, talvez morando em casas cujas paredes eram de torrão e cujas coberturas eram de colmo, conseguiram fazer do seu novo habitat uma zona humanizada e tirar dos campos o sustento necessário à sua sobrevivência.

Mas não só. Com facilidade descobriram que quase toda a água circundante, ao calor do sol ardente, ia desaparecendo e deixava no chão uma toalha de sal – óptimo elemento para temperar as parcas e rudimentares refeições. Era o princípio do salgado aveirense. Depois, o engenho e o esforço foram capazes de lançar no progresso a incipiente indústria, retalhando o pântano em quadrículas e tirando o máximo resultado da natureza.

Homens e mulheres, que se tinham habituado a dominar a terra, o mar e os elementos, naturalmente não aceitariam que outros os pretendessem dominar. Tendo vindo para ficar, aqui formaram uma colónia de imigrados que, apesar de oriundos de diversos quadrantes, todos se davam as mãos nas mesmas tarefas comuns, vencendo obstáculos e ultrapassando dificuldades.

Necessariamente surgiu uma nova povoação, exposta num montículo, à esquerda do canal do Cojo, perto da «caldeira», a qual, apropriando-se do termo comum, tomou o nome de Alavario – ou lugar por onde corre a água.

Não nos prenderíamos aqui a este topónimo, se não nos inclinássemos a descobrir nele mais um índice para a propensão liberal de Aveiro. Com efeito, podemos ver no Alavario, decompondo-o em três elementos distintos, as palavras ala, avo e ariu, nítidas referências a 'água livre', nas línguas primitivas não só da Península Ibérica como ainda da Europa Ocidental (1).

Enfim... a água corrente, a grandeza do mar, a vastidão dos horizontes – tudo daria aos nossos antepassados o sentido da liberdade, à semelhança daquelas aves que eles viam esvoaçar sobre os campos que trabalhavam ou sobre a massa líquida que os banhava.

Um lugar na História

Como certificado milenário de Aveiro é tida a doação testamentária que a Condessa Mumadona Dias, / 15 / viúva do Conde Hermenegildo, senhora de grande nobreza e muito rica de bens e virtudes, fez ao Mosteiro de Guimarães a 26 de Janeiro de 959; entre as propriedades legadas, aí se referem as terras in Alauario et salinas que ibidem comparauimus. Por tal documento do século X é testificada a existência de uma Aveiro, nascida sob o signo do sal e desabrochando para a História..

Dada em 1187 por D. Sancho I a sua irmã D. Urraca Afonso – essa nobre senhora de quem a tradição local afirma ter possuído uns casais junto do arroio ou arrujo, em Eixo – por troca do castelo e do termo de Avô, Aveiro conseguia ser vila e cabeça de concelho no século XIII, talvez no reinado de D. Afonso III, desenrolando-se ao redor da igreja matriz de S. Miguel.

Como vimos, algumas das primeiras actividades do dia-a-dia de Aveiro foram, desde tempos remotos, a indústria salina, as pescarias e a navegação. A 29 de Maio de 1361, nas cartas de Elvas, os procuradores de Aveiro pediram a liberdade de fazer o sal que pudessem, abrogando-se a legislação contrária. (2) Mais tarde, a 17 de Janeiro de 1434, El-Rei D. Duarte haveria de confirmar e outorgar aos pescadores de Aveiro todos os seus privilégios, foros, liberdades, graças, mercês e bons costumes, que sempre usaram e costumaram. (3)

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Entretanto, a 14 de Abril de 1372, num documento assinado em Avelar, D. Fernando fazia a D. Leonor Teles livre e pura doação, entre vivos, da vila com seu termo e porto de mar e com todas as suas dízimas e portagens, tributos reais, direitos e pertenças dela, e ainda com o padroado das igrejas, entradas e saídas, montes, fontes, rios, ribeiras e pescarias. (4)

Mas... no começa da século XV, um incêndio devastador veio cortar abruptamente o esperançoso futuro de Aveiro. Olharam então para o burgo as autoridades da governação pública; por iniciativa de D. João I, que o Infante D. Pedro grandemente impulsionou, a vila foi reconstruída e cercada de muralhas, para defesa da sua liberdade ante possíveis ataques inimigos.

Os muros começados em 1418 e terminados quatro anos depois, além de quatro postigos e de grande número de torreões, tinham nove portas: a sul, dando entrada na Rua Direita, a da Vila, ornada com o brasão do mencionado Infante e com a data de MCDXVIII; para oriente desta e em frente da Rua da Corredoura, a do Sol; seguiam-se as do Campo e do Cojo; a da ribeira, situada junto à ponte e à Rua da Costeira; continuando para ocidente e para sul, encontravam-se as do Cais ou do Norte, a do Alboi, a de Rabães e a de Vagos – esta junto ao futuro Convento de Santo António. Crê-se que o arquitecto das muralhas teria sido Lourenço Eanes de Morais, que foi o mestre-de-obras do Infante em Aveiro.

Condessa Mumadona Dias. Estátua existente em Guimarães. No seu testamento, de 959, refere as terras e as salinas que possuía no «Alavario».

Dentro do plano de engrandecimento da vila, nesta ocasião, não é de esquecer a edificação do Convento Dominicano de Nossa Senhora da Misericórdia. Diz o cronista da Ordem em Portugal, Frei Luís de Sousa, que a fundação do Mosteiro se ficou a dever a uma milagrosa aparição da Virgem Maria a Afonso Domingues, / 16 / homem piedoso e de idade avançada, sobre um dos bastiões da muralha; para comemorar o facto, o Infante D. Pedro, amigo sincero dos domínicos e muito devoto de Nossa Senhora do Pranto, da Piedade ou da Misericórdia, alcançou do Papa Martinho V, a 19 de Fevereiro de 1423 – pouco antes da largada para as «sete partidas» – um breve pelo qual lhe era facultado estabelecer em Aveiro um convento para a Ordem. Efectivamente, a 23 de Maio, lançava-se a primeira pedra do edifício, que se tornou digno do seu fundador; foi-lhe dado como orago Nossa Senhora da Misericórdia, cujo retábulo se encontra hoje na primeira capela à esquerda de quem entra na actual igreja paroquial da Glória. O Capítulo Geral da Ordem, celebrado em Bolonha em 1426, registava expressamente o advento da nova Casa de S. Domingos.

Com o mesmo propósito de engrandecimento da povoação, a 27 de Fevereiro de 1434 D. Duarte concedia o privilégio «ao concelho da vila de Aveiro para aí fazerem feira cada ano, que começará no primeiro de Maio e durará até ao dia de S. Miguel (8 de Maio), que são oito dias»; e «os que a ela vierem comprar e vender pagarão só meia sisa». (5)

O Infante D. Pedro, constituído por El-Rei, seu pai, como senhor de Aveiro «em sua vida», vira a doação confirmada pelo irmão, D. Duarte; a seguir, o sobrinho, D. Afonso V, novamente declarava D. Pedro e seus descendentes por senhores da vila «para todo o sempre», por carta passada em Santarém a 12 de Julho de 1448.

Entretanto, surgiam as lutas entre o Rei e o Infante e travava-se a desastrosa batalha de AIfarrobeira, em que D. Pedro perdeu a vida.

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Convento dominicano de Nossa Senhora da Misericórdia.
Relíquias da primitiva construção gótica.

Como consequência, D. Afonso V, em 1499, doava Aveiro ao primo D. Sancho de Noronha, conde de Odemira; (6) mas, confiscada esta casa nobre pelo seu envolvimento numa conspiração contra D. João II, este Monarca fez mercê da vila à irmã, a Infante D. Joana, recolhida no Mosteiro de Jesus, de Aveiro. A doação foi em 1485, conservando a donatária o senhorio até à morte, ocorrida cinco anos após. D. João II legou depois ao filho bastardo D. Jorge de Lencastre, em testamento de 24 de Setembro de 1495, Aveiro com suas lezírias e ilhas de dentro da foz – o que D. Manuel I confirmaria na maior parte, em 1500. Seguiram-se-lhe, na qualidade de donatários, os Duques de Aveiro, descendentes de D. Jorge. (7)

Com D. José de Mascarenhas, sentenciado e morto aquando da conspiração contra EI-Rei D. José I, em 1758, terminaria a série destes senhores, passando a vila à posse da Coroa, donde não mais sairia.

Naquela altura do século de quatrocentos, a vila de 3000 habitantes estendia-se para fora das muralhas, formando na margem norte do canal a chamada Vila Nova, onde se fixava a classe marítima e a burguesia; para além da zona muralhada – a tradicional  e a nobre – surgia então estoutra, composta de gente dedicada às actividades marítimas, mercantis e piscatórias – os cagaréus. Mas não só: para sul da porta da Vila formava-se novo agrupamento habitacional, de pessoas que se ocupavam na cultura das quintas e dos campos – os ceboleiros; era o Cimo de Vila. Ainda extra-muros à ilharga da Ria e para ocidente, pululava um outro bairro, a cujo núcleo inicial, nascido junto de uma represa de águas paradas e barrentas, foi talvez dado, por razão da vizinhança do pântano, o nome de Alavô ou Alabó – o Albói dos nossos dias; (8) seria povo quiçá a viver modestamente, auferindo o pão nos trabalhos da estiva. / 17 /

Assim nos aparece Aveiro de há quinhentos anos; D. Manuel I dar-lhe-ia novo foral a 4 de Agosto de 1515.

 

Santa Joana, teimosamente livre

Voltemos, porém, uns anos atrás. Na segunda metade do século XV, um novo facto decisivo ficou a marcar na história de Aveiro, que a engrandeceria diante das demais povoações portuguesas e que a impulsionaria no caminho da liberdade. Construído o Mosteiro de Jesus, cuja fundação fora autorizada pelo Papa Pio II em bula de 16 de Maio de 1461 e cuja primeira pedra fora lançada pessoalmente por D. Afonso V, nele veio habitar a Princesa Santa Joana, filha daquele Monarca e modelo de quem deseja viver com liberdade o seu ideal.

Certa vez encontrava-se no Porto D. Afonso V, com seus dois filhos. Ouviu dizer que iria proceder-se em Aveiro à profissão religiosa de várias dominicanas, algumas delas senhoras de nobre linhagem. O Monarca fez questão de, no regresso à capital, passar por Aveiro e, no dia 12 de Janeiro de 1466, assistia à comovente cerimónia, a primeira realizada no Mosteiro após a da Madre Brites Leitoa, a superiora da comunidade que instituíra. Parece que a jovem filha do Rei, que ia nos catorze anos de idade, não teve a dita de assistir; porém, como se sentiria feliz, ouvindo narrar ao pai os diversos actos litúrgicos!... E tudo lhe entraria bem dentro da alma, que se abrira já a anseos de espiritualidade. Seria até o começo do seu entusiasmo por Aveiro.

Foram passando os anos. D. Joana, senhora da casa paterna porque órfã de mãe desde pequenina, contava agora dezanove anos. Ia desabafando com D. Leonor, filha única do segundo casamento do Conde de Viana, D. Duarte de Meneses, que de há tempos pensava seriamente na vida religiosa. Criara-se assim viva amizade e ambas comungavam nos mesmos sentimentos, que desejavam concretizar.

D. Leonor colhia informes deste e daquele convento e, a pedido da confidente, procurava também notícias do Mosteiro de Jesus, de Aveiro, e do seu teor de vida austera e piedosa; e tais foram essas novidades que por Aveiro se decidiu. Uma vez aqui, apressou-se D. Leonor a informar a amiga, que lhe havia pedido mais pormenores. Efectivamente, D. Joana ficaria a saber que o cenóbio era um oásis de fervor, na oração, na penitência, na caridade, no trabalho, na alegria. À maneira que as missivas lhe iam chegando, cada vez se radicava mais na Princesa a aspiração de vir para Aveiro, que já tinha começado a amar; não desejava outro hábito senão o dominicano, nem outro convento senão o de Jesus.

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Princesa Santa Joana. Modelo de quem deseja viver com liberdade o seu ideal.

Após o pedido feito ao pai, na altura do seu regresso do norte de África, ocorreu a experiência de Odivelas, bem contra sua vontade, junto das freiras bernardas; sempre visitada e importunada, a Princesa não encontrava aí a felicidade e a paz. Suplicou, então, ao Rei que a deixasse ir para longe da Corte; já na viagem, conseguiu demover o pai, que a queria em Santa Clara (Coimbra), e a caravana prosseguiu para Aveiro.

O que ela sofreu na ocasião! Houve protestos; Aveiro... rodeada de pântanos, era lugar de desterro e não morada de príncipes... Santa Joana, todavia, assumiu voluntariosamente a chefia do grupo, que chegou aqui a 30 de Julho de 1472; a clausura seria a 4 de Agosto seguinte. Ambicionava ser uma mulher livre, gozando da liberdade de se realizar na sua vocação. A 25 de Janeiro de 1475, na sala do capítulo, tomava o hábito das Irmãs Dominicanas.

Depois, pelos anos fora, ninguém, nem o irmão D. João II, nem os procuradores das cidades e das vilas, nem os bispos, nem a Corte, nem as ameaças, nem as perspectivas de casamentos reais, conseguiram retirá-la de Aveiro, onde foi vivendo a simplicidade da Casa e a vida do claustro.

Se D. Joana se interessou pelo Convento de Jesus – a sua «Lisboa, a pequena» – mesmo no aspecto económico que não só no conforto moral, no afecto humano e no exemplo de santidade que dava às religiosas, também foi alma aberta para as gentes e coisas da vila, cujos habitantes considerava como se entregues aos seus cuidados e responsabilidades. Também ela procurou defender a liberdade de Aveiro ante as atitudes menos simpáticas ou as prepotências de estranhos.

Assim, por exemplo, os vereadores de Coimbra haviam tirado ao carpinteiro J. Fernandes o ofício de assinador das medidas; a Santa Princesa, a 28 de Abril de 1483, escreveu-lhes uma carta, rogando que o retomassem nesse mester para, em sua velhice, o pobre homem ter galardão do muito tempo que servira (9).

Mas a sua acção na defesa da liberdade de Aveiro ficou sobretudo bem demonstrada na resolução da caso ocorrido em 1487, quando, em ocasião de peste, rareavam os mantimentos. A Câmara Municipal mandara vir da Ilha da Madeira um navio de trigo que, ao chegar, não pôde entrar na barra e rumou para o Douro. Os tripeiros, ao darem com o tesouro, apreenderam-no e não autorizavam a saída do navio e da carga. Os nossos homens bons acorreram confiantes à Princesa, tornada sua irmã e conterrânea, a fim de interpor valimento junto do Senado do Porto. Santa Joana, de facto, escreveu aos portuenses a 4 de Outubro, fazendo-lhes ver que aquele carregamento pertencia a Aveiro. E conseguiu que se fizesse justiça. / 18 /

Com efeito, estava bem gravado na Princesa este sentimento tão aveirense: o da liberdade!... Ou não soubesse ela quanto lhe tinha custado conseguir a sua própria liberdade, ante as invectivas e agressões...

Conta-nos ainda Margarida Pinheiro que os escravos mouros que lhe eram sujeitos, trazidos nas caravelas, confiava-os a quem os preparasse para o Baptismo. E, mal entrados no grémio da Igreja, logo lhe passava cartas de alforria, promovia-lhes casamentos, dotava os novos casais e ajudava-os na constituição da família conforme à dignidade cristã.

Diz-nos também a mesma biógrafa, testemunha dos factos, que, sentindo aproximar-se a morte, Santa Joana fez o testamento, que é um modelo de humildade e de caridade; o documento foi assinado a 19 de Março de 1490. Entre as disposições, tem excepcional importância a que se refere aos escravos e às escravas, seus filhos, filhas e descendentes, que deixou forros. E, nos derradeiros momentos, solicitou, ao sacerdote que a assistia – o prior do vizinho Convento Dominicano – que, no domingo seguinte, pedisse por ela perdão ao povo da vila, recomendando que, a haver qualquer reclamação tida por justa, esta fosse apresentada aos seus procuradores; perdoava mesmo todas as dívidas de que fosse credora. Belo acta de libertação, criador de liberdade!...

Se o povo de Aveiro queria tanto à sua protectora e amiga, mais se teria enternecido com a magnanimidade desta última atitude, que foi uma extraordinária prova de interesse e de amor pelas nossas gentes. Por isso, após a morte ocorrida a 12 de Maio de 1490, confundindo-se com o som plangente dos sinos da vila, podiam ouvir-se os comentários tristes à triste nova: – Morreu a mãe dos desamparados! Deus levou-nos a libertadora dos oprimidos! Desapareceu dentre nós quem nos valia nas aflições....

 

Na liberdade do mar

O nome de João Afonso de Aveiro figura, com merecimento e relevo, na história ímpar da gesta heróica dos descobrimentos portugueses e nas páginas da nossa literatura. É cheia de enigmas a sua biografia, em que há perguntas sem respostas claramente demonstradas:

– Será o mesmo João Afonso de Aveiro o homem da literatura e o homem do mar. Em geral admite-se que são dois indivíduos diferentes; mas nada obsta a que sejam a mesma pessoa, que se tenha dedicado não apenas à navegação e ao comércio mas também à poesia na Corte, em boa camaradagem com muitos outros poetas palacianos. Escreveu poemas; o seu nome figura entre os autores do século XV e no Cancioneiro de Garcia de Resende.

– O pronome de Aveiro indicará a sua naturalidade ou será apenas um apelido familiar? Comummente tem-se por sinal da terra onde terá nascido, e isso é-nos extremamente agradável. Todavia, há também quem opine – e com certo fundamento – que João Afonso de Aveiro teria nascido em Coimbra, sendo seu pai Afonso Domingues de Aveiro, o Moço, que por sua vez descendeu de Afonso Domingues de Aveiro, o Velho – este nado, baptizado e criado em Aveiro e que, no actual Rossio, adquirira uma marinha de sal. É ainda este Afonso Domingues de Aveiro que nos aparece como partidário do Mestre de Avis; vivendo em Coimbra, tomou parte nas cortes que aí se realizaram em 1385, como procurador dos concelhos de Coimbra e de Aveiro, para nomearem e aclamarem D. João I como Rei de Portugal. Foi denodado batalhador das liberdades nacionais.

Na actividade marítima, João Afonso de Aveiro foi um dos homens de D. João II que desvendaram os segredos da terra e do mar, no caminho da Índia. Navegou pela Guiné, redescobriu o reino e as terras de Benim e estabeleceu uma feitoria no porto de Gató, para tráfico de escravos e comércio de pimenta, marfim, ouro e outros produtos. O primeiro cronista que se lhe refere é Rui de Pina que, na Crónica d'El-Rei D. João lI, diz o seguinte: / 19 /

– «Neste ano (1484) foi primeiramente descoberta a terra de Benim além da Mina nos Rios dos Escravos por João Afonso de Aveiro, que lá faleceu; donde a este Reino veio a primeira pimenta da Guiné cujas mostras foram logo enviadas à Flandres e a outras partes e foi logo havida em grande preço e estima. E o rei de Benim enviou a El-Rei um negro seu capitão dum lugar de porto de mar, que se diz Ugató, como embaixador, desejoso de saber novas destas terras cujas gentes souberam lá por grande novidade. Era este embaixador homem de bom repouso e natural saber, foram-lhe feitas grandes festas e mostradas muitas coisas boas destes Reinos. E foi retornado a sua terra em navio d’El-Rei, que à sua partida lhe fez mercê de vestidos ricos para ele e sua mulher; e assim enviou por ele ao rei um rico presente de coisas que ele entendeu que muito estimaria. E assim santos e mui católicos conselhos com louvadas admoestações para a fé, repreendendo as heresias e grandes idolatrias e feitiçarias de que naquela terra os negros usam. E com ele foram logo novos feitores d'El-Rei, para lá estarem e resgatarem a dita pimenta; e assim algumas outras coisas que para os tratos d'El-Rei pertenciam. Mas por a terra se achar depois de muito perigo e doenças, e não ser de tanto proveito como se esperava, o trato se desfez».

João de Barros, na sua Ásia – Década I, atribuiria a João Afonso de Aveiro uma acção decisiva na descoberta da Índia e diria que o navegador informara D. João II de que, para Oriente de Benim, a cerca de duzentas e cincoenta léguas, «havia um rei, o mais poderoso daquelas partes, a que eles chamavam Ogané, que entre os príncipes pagãos das comarcas de Benim era havido em tanta veneração, como acerca de nós os Sumos Pontífices»; era este soberano quem confirmava os reis de Benim. D. João II entenderia erradamente tratar-se do decantado Prestes João das Índias.

João Afonso de Aveiro, falecido na Guiné em 1487, é bem o protótipo dos nossos mareantes que, consagrados às actividades do tráfego comercial por rotas oceânicas, receberam influxos de outras gentes e de outras civilizações e, insensível e concomitantemente, foram alicerçando em si próprios um sentido emancipador de liberdade em face das apertadas e estagnadas tradições ancestrais. A burguesia marítima destacava-se no conceito social de Aveiro e naturalmente, pelo seu modo de vida mais confortável pelos lucros que auferia, levava muitos elementos da população rural a buscarem trabalho sobre as largas ondas. O mar continuava a fortalecer nos aveirenses uma tendencial liberal, que os tornava insubservientes a escravizações de nobres, insubmissos no seu íntimo a injustiças de prepotentes, apenas dobrando os joelhos ante o Senhor da terra e da água. Apesar de pouco expansivo em exteriorizações, o nosso povo parecia já ter o sentido da independência na ordem, sem deixar de atender aos seus deveres dentro da sociedade nacional.

 

Um mestre conservador e um padre progressista

Citando palavras de Eduardo Cerqueira, «há, decerto, entre os aveirenses nossos maiores os que afinam pelo diapasão e compasso dos que regem a governação e o pensamento, e, solistas embora, participam no coro geral»; (10) Aires de Figueiredo Barbosa, célebre humanista de latim e grego, é um deles. A sua vida decorreu no último quartel de quatrocentos e na primeira metade do século XVI; em 1496 teria começado a carreira docente na Universidade de Salamanca como professor contratado de Grego, em 1503 era nomeado professor proprietário da cadeira de Retórica e mais tarde, em 1509, concorria e era aprovado na cadeira de prima de Gramática, vendo satisfeita a sua aspiração de professor de Latim. Até fins de 1523, data em que foi jubilado, ensinou sempre as duas línguas clássicas, mas a grega com mais distinção, motivo por que ficou conhecido pelo epíteto de «Mestre Grego». Depois, até 1530, vemo-lo na Corte Portuguesa a instruir em humanidades o Cardeal Infante D. Afonso, que então tinha catorze anos de idade, irmão de D. João III.

Aires Barbosa, que viria a falecer em Esgueira, nas suas pousadas da Rua da Corredoura, a 20 de Janeiro de 1540, «apegara-se conservadoramente às ideias, digamos, oficiais do tempo, que sofriam as primeiras fendas. Esse mesmo, todavia, para defender o imobilismo do pensamento radicado, sai à liça e quebra lanças. Não se cala, reponta. Não deixa correr, aperta os freios e pospõe obstáculos, que suporá irremovíveis, às novas correntes desgarradas. É do seu tempo, integralmente, e não vislumbra o futuro de que apontam arrebóis, mas corre como que uma cortina para não ver, nem deixar que se veja uma nova aurora, com novas luzes mais cintilantes». (11)

O nosso humanista, na Antimoria, que redigiu em verso latino durante os últimos anos de vida, exalta a sabedoria cristã, opondo-se ao Encomium Moriae (Elogio da Loucura), que o célebre Erasmo de Roterdão publicara em 1501. Havia muito tempo que Aires Barbosa desejava realizar este seu sonho dos verdes anos, pondo por escrito ideias que ensinava aos discípulos; mas só o conseguiria ao ver-se liberto dos trabalhos

universitários e da educação de D. Afonso.

 

Tão díspar na vida e no pensamento é o Padre Fernão de Oliveira – ou Fernando Oliveira – nascido / 20 / em Aveiro em 1507. Desde já, não o julguemos como observador estrito da disciplina eclesiástica nem como homem rigoroso no cumprimento de programas; é que ele, no decorrer da sua existência, mostrou-se dotado de um carácter irrequieto e pouco maleável. Henrique Lopes de Mendonça, deu-nos um retrato completo deste insigne aveirense:

– «Filólogo como João de Barros, aventureiro como Fernão Mendes Pinto, perseguido pela Inquisição como Damião de Góis, navegador como D. João de Castro, porventura o único dos escritores de arquitectura naval do seu tempo e do seu País, ele tem além disso para recomendá-lo à consideração da posteridade uma vida tão cortada de peripécias que constitui um verdadeiro romance. Foi clérigo e foi soldado, foi marinheiro e foi diplomata, esteve prisioneiro em mãos de ingleses e em mãos de turcos, gemeu nos cárceres do Santo Ofício, teve relações com homens eminentes do seu século». (12)

Figura curiosíssima da nossa era quinhentista e precursor em vários ramos do saber, que não deslustra a época de Camões, escreveu em 1536 a Gramática da Linguagem Portuguesa; além disso, são de sua autoria a Arte de Navegar, o Livro da Fábrica das Naus e A Arte da Guerra do Mar. Se acolá ele tem a glória de ser o primeiro a codificar em letra de forma o nosso idioma, aqui conseguiu estabelecer normas técnicas para a navegação, bases reguladoras da construção naval e princípios militares bélicos. Lendo as suas obras literárias, surpreende-nos uma tão vasta erudição clássica: os grandes vultos da antiguidade, tiranos, guerreiros, escritores, poetas, filósofos, humanistas, luminares da Igreja, são frequentemente citados por Fernão de Oliveira.

Desassombrada e energicamente condenou as guerras movidas por cristãos contra infiéis e também considerou odiosa a prática de os escravizar, como então se fazia sem escrúpulos nem reservas, mesmo entre povos tidos na vanguarda da civilização. «Não podemos fazer guerra justa aos infiéis que nunca foram cristãos, como são os mouros e judeus e gentios que connosco querem ter paz e não tomaram nossas terras nem por alguma via prejudicaram a Cristandade» – escreveu o nosso ilustre aveirense n' A Arte da Guerra do Mar, continuando: – «Porque com todos é bom que tenhamos paz, se for possível; [...] os quais melhor converteremos à fé e mais edificaremos nela com exemplo de paz e justiça que com guerra ou tirania. Tomar as terras, impedir a franqueza delas, cativar as pessoas daqueles que não blasfemam de Jesus Cristo nem resistem à pregação da sua Fé, quando com modéstia lha pregam, é manifesta tirania». E avançava no seu justo raciocínio, sob os ditames de um espírito tolerante e amigo da liberdade:

– «E não é nesta parte boa escusa dizer que eles se vendem uns aos outros, que não deixa de ter culpa quem compra o mal vendido e as leis humanas desta terra e doutras o condenam, porque, se não hovesse compradores, não haveria maus vendedores, nem os ladrões furtariam para vender. [...] Não se achará nem razão humana consente que jamais houvesse no mundo trato público e livre de comprar e vender homens livres e pacíficos, como quem compra e vende alimárias, bois ou cavalos e semelhantes. Assim os tangem, assim os constrangem, trazem, e levam, e provam, e escolhem com tanto desprezo e ímpeto, como faz o magarefe ao gado no curral. Não somente eles, mas também seus filhos e toda a geração, depois de que nascidos e cristãos, nunca têm remissão. [...] Os que vão buscar esta gente não pretendem sua salvação e consta que, se lhe tirarem o interesse, não irão lá. [...] Quanto mais que muitos não ensinam a seus escravos como hão-de conhecer e servir a Deus, antes os constrangem fazer mais o que lhes eles mandam que a lei de Deus e da sua Igreja, tanto que nem os deixam ir ouvir missa nem Evangelho, nem sabem a porta da igreja para isso, nem guardam domingos nem festas». (13)

A citação saiu demasiada; mas por ela vemos a têmpera de Fernão de Oliveira, que não transigia com o cercear das liberdades fundamentais e que desejava uma sociedade onde os homens se respeitassem mutuamente, sem explorações nem atropelos. Sempre que encontrava motivo para verberar pessoas ou acontecimentos, não se retraía; mesmo aos possíveis críticos das suas obras ousou lançar um desafio no final da Gramática da Linguagem Portuguesa:

- «Eu não dou licença que alguém possa ser meu juiz, senão quem ler os livros que eu li e com tanto trabalho e tão bem ou melhor entendidos. E, ainda assim, a sentença há-de ser que para meus erros escrevam da mesma matéria outras obras melhores, nas quais mostrem saber mais que eu disto de que falámos».

Aventureiro capaz de conviver igualmente com nobres e marítimos, mas sem nunca perder a índole naturalmente rebelde e franca, já pressentimos que este clérigo é uma das figuras mais completas da Renascença em Portugal, manifestando largueza de vistas e arrojo de opiniões, que soube manter mesmo em oposição às instituições da época. Não se sentindo bem na regra e no hábito dos frades dominicanos, ainda novo conseguiu exclausurar-se e passou a trajar como os leigos. Mas não só. Certa vez, passando pelo Tejo uma armada francesa, alistou-se clandestinamente como piloto numa das galés e seguiu para o Canal da Mancha; chegado aqui, deram-se lutas entre ingleses e franceses, primeiro com sorte indecisa, mas depois, em 1546, com favor para os bretões. O / 21 / Padre Fernão de Oliveira foi feito prisioneiro e levado para a Inglaterra, onde rapidamente travou relações com o próprio Rei Henrique VllI Na Grã-Bretanha degladiavam-se então os conservadores católicos e os protestantes reformados – estes favorecidos pelo Monarca; decerto que, no ambiente de disputa, ao espírito revoltadiço e céptico do antigo dominicano não foi indiferente a hostilidade contra a supremacia do poder papal. Pois se Fernão de Oliveira havia de se manifestar mais tarde contra o abuso na veneração das imagens e de condenar os milagres sem provas, que julgava uma exploração do povo ignorante!...

Regressando ao Reino, em 1547, logo começou a publicar ideias heterodoxas acerca do Catolicismo, com escândalo dos ouvintes. Não tardaria que o nosso aveirense quinhentista caísse nas garras da Inquisição e sofresse castigo, por mais do que uma vez, nas suas implacáveis cadeias.

Foi desta forma toda a existência conturbada do Padre Fernão de Oliveira. Os últimos anos da sua vida passaram-se na obscuridade, de modo que nem sequer se tem conhecimento exacto de lugar e da data da sua morte. Apenas se sabe que, em 1565, já com cinquenta e oito anos, D. Sebastião lhe concedeu uma tença de 20.000 réis anuais, na qualidade de clérigo de Missa que lera casos de consciência no Convento de Palmela; um desses casos seria o que respeitava à rebeldia em que se consumira contra alguns preconceitos do tempo e contra entidades poderosas que os defendiam.

Na história da liberdade em Aveiro, não se pode esquecer este homem do século XVI, criatura de tão singular psicologia, de tão malbaratada actividade, de tão surpreendente erudição e de tão grande perspicácia.

 

Vila Notável

Entretanto, dava-se o enfraquecimento de Portugal, após a epopeia dos descobrimentos, motivada pelas lutas da sucessão ao trono. D. António, Prior do Crato, foi derrotado na batalha de Alcântara, a 25 de Agosto de 1580, pelas tropas espanholas comandadas pelo Duque de Alba. Fugindo precipitadamente por Sacavém, D. António dirigiu-se para o norte, passou por Santarém, que o não recebeu com agrado, e chegou a Coimbra, onde foi esperado com demonstrações de alegria; depois de retemperar as forças e de juntar cerca de cinco mil homens, resolveu atacar Aveiro, que não lhe era favorável. Apesar da viva resistência que ofereceu ao invasor, a vila cedeu ante a força de Prior do Crato; abertas violentamente as portas da muralha, foi saqueada de quanto tinha, sem lhe ficar nada: pratos, roupas, sal, móveis, dinheiro – tudo levou esse bando de soldados, logo que entrou nas ruas de Aveiro. Estabelecido o seu centro de defesa no largo do Rossio, não longe da ponte da Porta da Ribeira, D. António mostrou-se duro para com a população e para com os nobres, em vexames, desacatos e enforcamentos. Essas atitudes de amesquinhamento levariam Aveiro, amante da liberdade, a emparceirar ainda mais ao lado das pretensões do Rei de Espanha e dos seus desejos.

Filipe I de Portugal não foi insensível às mostras de fidelidade dos nossos antepassados e procurou valorizar a vila de Aveiro. A 12 de Maio de 1581 far-lhe-ia a seguinte mercê: – «Que os da governança dela e seus descendentes que da mesma maneira pelo tempo em diante forem da dita governança possam gozar e gozem dos privilégios concedidos pelos reis passados destes Reinos à cidade de Coimbra»; e, no dia imediato, elevou-a à categoria de «Vila Notável», atendendo à grandeza da povoação «e havendo outrossim respeito aos muitos serviços que os moradores dela têm feito aos reis meus antecessores e aos que espero que ao diante a mim façam e a meus sucessores, e a ser povoada de muitos fidalgos cavaleiros e pessoas de nobre geração e criação, e casas nobres e de criação dos reis destes Reinos, e acompanhada de outro muito povo, e por ser cercada de muros e enobrecida de igrejas, mosteiros e de muitos edifícios e casas nobres».

Um daqueles fidalgos era, por exemplo, Fernão Gabriel da Veiga, falecido uns anos após, em 1588. Sendo um valoroso militar e pertencendo à Casa de D. Jorge, Duque de Aveiro, foi maltratado e detido pelas tropas do Prior do Crato; conseguindo fugir da prisão, embora com o sequestro dos bens que possuía, seguiu na «Armada Invencível». Destroçados os barcos espanhóis por uma horrorosa tempestade, o ilustre aveirense salvou-se a nado, mas, exausto, não logrou sobreviver.

Outra aveirense de nobre linhagem aqui nascida uns anos depois, a 23 de Fevereiro de 1586, filha dos primeiros Condes de Miranda do Corvo, foi D. Beatriz de Vilhena. De tenra idade, esta senhora saiu para Madrid, onde foi nomeada dama do Paço por D. Margarida de Áustria, mulher de Filipe II de Portugal e III de Espanha. Notável pela inteligência, erudição e formosura, recusou todas as propostas de casamento e veio a professar num Mosteiro de Capuchas, ficando-nos a fama das suas qualidades e virtudes. (14)

 

Uma gaiata travessa

É da época filipina uma filha ilustre de Aveiro, Antónia Rodrigues, nascida a 31 de Março de 1580, segundo opinião mais corrente; era da freguesia da / 22 / Apresentação, onde se situava o bairro piscatório – aglomerado de casas modestas, muitas cobertas de colmo. Filha da arraia miúda e humilde, contou em poucos anos de idade largos merecimentos e morreu tão ilustre que podia ser timbre das heroínas da Grécia e de Roma – no dizer do Padre António Carvalho da Costa, na Corografia Portuguesa.

Seu pai, Simão Rodrigues, era marítimo de profissão e sua mãe, Leonor Dias, ocupava-se nos trabalhos domésticos e nos cuidados do marido e dos filhos. Como os rendimentos do casal fossem parcos, a Antónia foi, nos seus verdes anos, para a companhia de uma irmã casada que vivia em Lisboa. Na capital, a nossa adolescente não teve boa aceitação e era mesmo maltratada pela irmã e pelo cunhado – o que criou no espírito insubmisso de Antónia Rodrigues o sentido da revolta e da libertação; a pobre rapariga levava com obediência forçada uma vida desgostosa.

Mas... por pouco tempo; deslumbrada com as aventuras contadas pelos capitães dos navios que regressavam a Lisboa, vindos de outras paragens, a pequena começou a sonhar «com os esplendores do Oriente, com os jardins de Ceuta, com os dramáticos encontros afrontando piratas no alto mar e com os cercos famosos das fortalezas de África e da índia, em que as mulheres representavam por vezes tão insigne papel» – nas palavras do Conde de Sabugosa. E a sua índole de aventureira na liberdade independente, com origens nas ruelas da Beira-Mar de Aveiro ou no pequeno barco do pai pela ria e pelo oceano, ia sendo estimulada pela tentação de correr mundo.

Soltando o brado da emancipação, juntou umas pequenas economias, fugiu da casa da irmã, comprou e vestiu um fato conforme ao trajo dos moços que serviam nos navios mercantes, cortou o cabelo e indo ao cais da Ribeira, contratou-se com o mestre de uma caravela que, carregada de trigo, se aprestava a zarpar para Mazagão, no norte de África. Conseguindo ocultar a sua feminilidade, trabalhou de grumete com o nome de António.

Uma vez em Mazagão, foi o capitão-mor da Praça avisado de que o mestre do navio fizera furto e falsidade no trigo que levava; abriu-se uma devassa e Antónia Rodrigues, sem temer represálias, falando com decisão e declarando toda a verdade, descobriu a desonestidade do mestre. Por isso, o capitão-mor não consentiu que o grumete voltasse ao reino naquela caravela, para que ninguém lhe fizesse mal, e alistou-o entre os soldados de infantaria. Tomou-se hábil no manejo das armas, camarada dos seus colegas, exemplar no seu comportamento, sempre conseguindo encobrir a sua condição de mulher. Sendo de inteligência arguta, denunciou a tempo uma conjura dos mouros que se preparavam para, numa noite, fazerem uma sortida, matarem pessoas e destruírem as searas. Tendo-lhe sido dado o comando de um troço de tropas, dirigiu as manobras de tal forma que liquidou completamente o inimigo. No regresso, Mazagão recebeu-a com delírio e aclamações. Passados alguns meses, o capitão-mor incorporou-a na cavalaria; começaria então o período mais famoso da sua carreira militar.

Não pretendemos analisar com as coordenadas do nosso tempo os factos e os acontecimentos do século XVI. Cada época tem a sua maneira de ser, com os seus claros e escuros, com as suas qualidades e defeitos, e as acções dos homens têm de ser julgadas no ambiente em que eles viveram. Embora descubramos no comportamento social dos tempos passados aspectos negativos de baixa escala, nós nunca devemos praticar a injustiça de julgar os homens desencarnando-os do contexto histórico em que estiveram integrados. A Cristandade ainda vivia sob o medo das terríveis incursões mouras; a Europa não só procurava defender-se das razias da «guerra santa» dos árabes, como até procurava castigá-los noutras regiões, para criar várias frentes de conflito e desviar as atenções dos seguidores de Mafoma. Estão nesta linha as flagelações com que os portugueses os castigavam no norte de África e mesmo na longínqua índia. Eram restos do espírito medieval da Cruzada.

Antónia Rodrigues – ou António Rodrigues – aparece-nos envolvida nas operações militares à volta de Mazagão, em defesa da Praça contra os ataques e as surpresas da mourama. Avantajava-se aos outros na destreza das cavalgadas; «e no cometer aos inimigos nas empresas maiores e de importância, sempre o capitão o nomeava e mandava na dianteira, como ao mais destro cavaleiro que tinha» – informa Duarte Nunes de Leão. Espalhava o terror nas hostes inimigas, realizava prodígios de audácia militar em inúmeras correrias e combatia encarniçadamente de tal sorte que lhe deram o epíteto de «Terror dos Mouros».

Assim viveu durante cinco anos Antónia Rodrigues, ocultando o segredo do seu sexo e servindo o exército com trajo de homem. Mas, agora que estava na pujança da juventude, não podia continuar a viver como rapaz. Abriu-se voluntariamente a um sacerdote digno e austero, e os dois foram ao capitão-mor. Combinou-se que Antónia Rodrigues abandonasse o exercício das armas, o uniforme de soldado e os vestidos de varão. Decerto que logo tinha de correr a fama por toda a Praça, que a estimava, como homem de luta e agora a reconhecia como donzela. «Invejando todos em tão humilde fortuna tão nobre coração, não cessavam de encarecer a honra que soubera ganhar, menos vencendo tantas vezes o inimigo na campanha, que triunfando da mesma natureza nos viciosos quartéis da soldadesca, virtude que se deve contar nesta / 23 / heroína por primeira entre outras muitas» – assim escreveu Frei João de São Pedro.

Tendo casado, regressou ao Reino, onde foi galardoada com mercês régias e onde viria a falecer. Na nossa recordação e na nossa história, ficou-nos este grande exemplo de decisão, energia, independência, aprumo e heroísmo. Sobretudo o que nos surpreende é a conquista da sua própria liberdade, na vitória sobre si mesma e sobre o ambiente que proximamente a rodeava. Antes de ser valente militar, soube ser mulher superior. Para nós, Antónia Rodrigues é mais um testemunho da maneira de ser das gentes de Aveiro, que também souberam marcar a sua individualidade na epopeia dos descobrimentos e das conquistas.

 

A barra e o índice demográfico

Entretanto, neste século XVII, mesmo sob a dominação filipina, Aveiro conheceu um período de certo progresso material, atestado ainda hoje por edifícios desse tempo. Ergueu-se a singular fábrica pós-renascentista da igreja da Misericórdia, construiu-se o Convento do Carmo, fundou-se o de Santo António e apareceram diversas casas que subsistem por aqui e por ali, sobretudo na velha Rua Direita e na Vila Nova. Ao longo do século seguinte, levantaram-se os Conventos das Carmelitas de S. João Evangelista e das Franciscanas da Madre de Deus em Sá e o Recolhimento das Terceiras Capuchas de S. Bernardino. No primeiro quartel de setecentos edificou-se outrossim a capela do Senhor das Barrocas, tão venerado da gente do mar, e o século culminou com a feitura da Casa da Câmara.

Mas as vicissitudes de Aveiro têm estado sobremaneira ligadas às condições da nossa barra; por isso, até podemos acompanhar o índice populacional da povoação pelas flutuações na localização da referida barra. Assim, por 1200, formada a nova linha de costa pelo depósito de areias, a barra achava-se na Torreira; nos fins do século XV encontrava-se quase obstruída perto de São Jacinto, e uma peste, causada pela estagnação das águas, dizimava Aveiro, que se via reduzida a cerca de 3000 habitantes; à volta de 1580 a barra estava fixada na Costa Nova do Prado e os habitantes da vila ascenderam a uma cifra jamais atingida até então. Era tal o progresso que, em 1572, a população alcançava o número de 11 365, contudo apenas as pessoas de comunhão, de sorte que o Bispo de Coimbra, D. Frei João Soares, recentemente chegado do Concílio de Trento, achou excessiva aquela população para a única freguesia de S. Miguel e, por provisão de 10 de Julho desse ano, criou mais três paróquias: Espírito Santo, Apresentação e Vera-Cruz.

Posteriormente, nos meados do século XVII, a barra encontrava-se na Vagueira e, em 1756, caminhava ainda mais para o sul, para perto do limite do concelho de Mira, e Aveiro voltava a decrescer para cerca de 10000 habitantes, e até para cerca de 7000, em 1774. Havemos também de nos referir à fixação definitiva da barra em 1808; desde então a cidade não cessaria de subir no ritmo demográfico.

 

Na restauração da liberdade nacional

Foi em 1640 que se deu o levantamento nacional contra a dominação espanhola. A 1 de Dezembro, um grupo de fidalgos, concretizando e aglutinando a vontade de um povo, ergueu o brado da revolta e, expulsando o domínio estrangeiro, proclamou D. João IV como nosso Rei.

Para as campanhas da chamada Guerra da Restauração, que se prolongou por muitos anos, foram alistados militares por todo o País, cujas idades iam de vinte a quarenta anos.

Também os homens de Aveiro, englobados no movimento geral de libertação, ajudaram a consolidar a independência nacional, após o golpe revolucionário. Formaram-se diversas companhias e esquadras com seus capitães – a de São Miguel, a do Espírito Santo, a da Vera-Cruz... – que agruparam heróis desconhecidos, é certo, mas soldados beneméritos de uma Pátria que se queria livre, a viver a sua sorte e a sua liberdade.

É bem significativo para nós o alvará de 12 de Abril de 1641, em que D. João IV confirmou todos os privilégios de que Aveiro gozava por concessões anteriores, manifestando aos aveirenses a maior gratidão, tanto pela sua constante fidelidade aos Reis de Portugal, como por «ajudarem a sustentar a independência da Pátria com suas pessoas e fazendas». (15)

Seria etnocentrismo estreito, de vistas apertadas, se os aveirenses não estivessem abertos aos superiores interesses nacionais. Quando a Pátria está em jogo, há que defendê-la e trabalhar por ela, ultrapassando as barreiras do burgo. Talvez mesmo acontecesse que, lutando pela liberdade, os aveirenses estivessem a abrir horizontes à sociedade portuguesa... Os sinais dos tempos manifestam-se de muitos modos.

 

Um agente da Revolução Cultural

O século XVIII – conhecido por «século das luzes» – foi um tempo de mutação profunda e ampla em muitos sectores da sociedade europeia; e sucedeu até que, antes de acontecer a transformação revolucionária na ordem dos factos, já se verificara uma outra transformação no campo das ideias. Em França, por exemplo, a Revolução de 1789 foi precedida pelo filosofismo da / 24 / Enciclopédia e dos seus corifeus. Tais ideias haviam sido importadas da protestante, liberal e livre-pensadora Inglaterra, provocando a dúvida e a negação do sistema católico-absolutista da velha Europa; tinha concorrido para isso um mal-estar generalizado, proveniente das sangrentas lutas religiosas, das perseguições, do fausto escandaloso das Cortes e da Nobreza, do testemunho negativo do Clero, das estéreis polémicas de filósofos e de teólogos.

Em Portugal, os próprios governantes abriam brecha na armadura forjada para preservar a nossa sociedade de influências duvidosas. Em 1708, um primeiro decreto punha termo ao monopólio jesuítico do ensino secundário; depois, outras se seguiriam. Pelos meados do século, havia portugueses que estudavam e se notabilizavam no estrangeiro e simultaneamente transmitiam para Portugal o novo espírito do positivismo científico, lá fora em pleno triunfo e entre nós timidamente semeado; viriam depois o Padre Oratoriano Luís António Verney e o Marquês de Pombal. Na teoria daqueles portugueses, conta-se o Padre João Jacinto de Magalhães, nascido em Aveiro a 4 de Novembro de 1722.

Para este homem, cheio de grandes sonhos, Aveiro, a iniciar um declínio acelerado para a sua mais grave crise, era terra demasiado pequena; em 1743, entrava na Congregação dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, em Coimbra, tendo professado com o nome de Frei João de Nossa Senhora do Desterro. Passados breves anos, consciente do modo imaturo com que ele e outros faziam os votos religiosos, obteve o breve de secularização; vestiu a batina vulgar, um pouco mais larga, até que, ainda não satisfeito, mudaria de terra e viria a desfazer-se da sotaina de clérigo. Julgava assim concretizar a sua libertação interior.

De facto, João Jacinto de Magalhães, ansioso de viver em ambiente de ideias mais livres, ausentava-se de Portugal entre 1756 e 1758, vindo a fixar-se em Londres (1764), onde encontraria um meio culto mais conforme às suas inclinações; deixava o País, mas não só o engrandeceria com o seu nome prestigiado como também nunca lhe negaria o seu contributo. Correspondeu-se com sábios europeus, como Euler, Lavoisier, Volta e Watt, pertenceu a influentes organizações científicas do tempo, escreveu diversos livros de ciências experimentais, dedicou-se à construção e aperfeiçoamento de aparelhos de precisão, alguns dos quais lhe compraram os governos de Portugal e de Espanha. Por semelhante razão, este aveirense, falecido na Inglaterra em 1790, foi um dos homens que mais contribuíram para o progresso da Física na última metade do século XVllI.

Sobrinho-trineto do circum-navegador Fernão de Magalhães, João Jacinto não foi um homem propriamente do povo, mas trabalhou incansavelmente nas suas experiências e escritos. Rumando por outros caminhos que não os das águas largas do Oceano, andava-lhe nas veias o sangue de mareantes e de desvendadores de novas rotas; se não tem o autêntico cerne do homem de Aveiro, ele é, todavia, um dos expoentes do espírito das nossas gentes. Como frisou um dos seus biógrafos a propósito da feitura do livro Mineralogy – um «trabalho beneditino» – o ilustre homem de ciência elaborou-o sem pensar em auxílio material ou em remuneração. Mesmo nisto, o Padre João Jacinto de Magalhães se mostrou um homem liberal.

 

Cidade

Detenhamo-nos agora num facto importante para Aveiro, a encher uma nova página ilustrada da história da liberdade na nossa terra.

Decorria o ano de 1758. A 13 de Dezembro, ao tornar-se público o respectivo processo, comunicava-se oficialmente ao País ter sido El-Rei D. José I vítima de um atentado na noite de 3 para 4 de Setembro; entre os implicados no crime, encontrava-se gravemente responsabilizado D. José de Mascarenhas, Duque de Aveiro e Marquês de Gouveia, além de Grão-Mestre da Casa Real. Em face desta versão, urdida em segredo durante meses, a população aveirense verberou indignada o «horroroso e sacrílego insulto» e revoltou-se contra o donatário da vila. A 6 de Janeiro de 1759, na igreja matriz de S. Miguel, reuniram-se o Senado Municipal, a Nobreza, o Clero, o Elemento Militar e o Povo e, nas mãos do prior, Frei Paulo Pedro Ferreira, depuseram um protesto solene contra aquele atentado, declarando que não queriam que esta povoação continuasse sob a tutela de donatários mas que desejavam que ela ficasse imediatamente sob o governo de D. José I, a quem prestaram juramento de fidelidade. Na sequência dos factos, D. José de Mascarenhas seria condenado à morte, a 12 de Janeiro; a duríssima sentença executar-se-ia no dia seguinte, em Belém, no meio de horríveis sofrimentos e com requintes de ferocidade.

O Monarca mostrou-se sensível e agradecido perante a atitude de repulsa dos habitantes de Aveiro e procurou, desde logo, valorizar a vila, coadjuvado pelo Marquês de Pombal. Assim, a 11 de Abril daquele ano, D. José I assinava o alvará pelo qual a vila de Aveiro, notável por mercê filipina, era elevada à dignificante categoria de cidade: – «Hei por bem e me apraz que a dita vila de Aveiro do dia da publicação deste em diante fique erecta em cidade» – lê-se no documento.

A 1 de Junho, a Câmara Municipal, por sua vez, resolveu agradecer oficialmente a El-Rei a graça / 25 / concedida, encarregando o aveirense João de Sousa Ribeiro da Silveira, cavaleiro da Ordem de Cristo e capitão-mor de Ílhavo, de beijar a mão de Sua Majestade, como sinal da mais viva gratidão, e de lhe pedir dispensa de pagamento dos direitos. Desempenhando-se dessa honrosa missão, o ilustre fidalgo trouxe a carta régia que entretanto o Monarca tinha assinado a 25 de Julho, pela qual se fazia público de que Aveiro – elevada a cidade – definitivamente teria «todos os privilégios e liberdades de que devem gozar e gozam as outras cidades deste reino, concorrendo com elas em todos os actos públicos e usando os cidadãos da mesma cidade de todas as distinções e proeminências de que usam os de todas as outras cidades». (16)

O capitão-mor, chegado a Aveiro, leu e entregou o documento nos Paços do Concelho, a 29 de Setembro, festa de S. Miguel, presentes a Vereação, o Clero, a Nobreza e o Povo. Seguidamente, na igreja matriz, houve missa solene, sermão pelo orador Frei Bernardo de S. José Magalhães, da Ordem dos Pregadores; à tarde, cantou-se um te-deum, levantaram-se preces pelo Rei e uma procissão em honra de S. Miguel percorreu as ruas da nova cidade, bem ornamentadas; e as manifestações de alegria prolongaram-se pelos dois dias seguintes, com festejos populares, iluminações, encamisadas e touradas. Aveiro era a décima sétima cidade de Portugal, por ordem cronológica.

Como o acontecimento fora de transcendência para a povoação, o vigário da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, Padre Frei Manuel Marques de Figueiredo, quis registá-lo no livre corrente dos assentos dos Baptismos, referindo o facto e as mostras de regozijo.

A 19 de Setembro de 1790, D. José I assinava mais uma provisão pela qual delimitava a jurisdição da comarca ou correição de Aveiro, que se estenderia às vilas de Esgueira, Ílhavo, Aradas, Soza, Vagos, Frossos, Pinheiro, Angeja, Estarreja, Fermedo, Bemposta, Trofa, Serém, Vouga, Aguieira, Préstimo, Assequins, Recardães, Segadães, Casal de Álvaro, Brunhido, Avelãs de Cima, SangaIhos, Ferreiros, São Lourenço do Bairro, Couto de Esteves, Paredes, Ois do Bairro e Oliveira do Bairro; mais declarava El-Rei que «o provedor, que até agora se intitulava de Esgueira, ficará de hoje em diante sendo provedor da cidade de Aveiro». (17)

O Governo demonstrou ainda efectivo interesse pelo progresso de Aveiro, mesmo pensando na instalação de indústrias de vidro e de seda, embora o índice populacional da cidade, nessa segunda metade de século XVIII, continuasse a declinar.

 

Autonomia religiosa

Em remotos tempos da Cristandade, havia em cada Catedral, à imitação da Santa Sé, um arcediago – o primeiro dos diáconos – que nos pontificais ministrava ao Bispo e que o auxiliava no governo temporal da Diocese. Assim devia também suceder na Catedral de Coimbra, a cuja jurisdição pertencia Aveiro. Temos mesmo alguns documentos que nos falam da existência deste cargo, sobretudo a partir da reconquista da cidade aos mouros em 1064 por D. Fernando Magno, Rei de Leão. Dada a extensão da Diocese, o Prelado tinha necessidade de escolher pessoas que o coadjuvassem; assim, em 1116 havia em Coimbra três arcediagos e em 1131 quatro, aos quais pertencia visitar as igrejas em nome do Bispo e de ajudá-lo no governo. Então, o grande território conimbricense havia sido dividido em três zonas, além da cidade: na parte oriental existia o chamado Arcediagado de Seia, pela vila que lhe servia de cabeça; a região ocidental estava naturalmente dividida pelo rio Mondego, de leste a oeste, em duas partes, das quais a setentrional se chamava Arcediagado do Vouga, com sede em Esgueira e depois na vila de Aveiro, e a meridional Arcediagado de Penela, com sede na vila do mesmo nome. Os arcediagos intitulavam-se pelos respectivos Arcediagados: Cidade, Seia, Vouga e Penela.

Quanto ao Arcediagado do Vouga, ele alargava-se por cento e quarenta e cinco freguesias e dilatava-se por vasta região; confinava a norte com a Diocese do Porto no rio Antuã, a oriente com a Diocese de Viseu e com o Arcediagado de Seia, a sul com o rio Mondego e com o termo da cidade de Coimbra, e a ocidente com o Atlântico.

Os arcediagos tinham ainda outros deveres a cumprir na Sé: residência coral em certas épocas do ano, na medida em que isso fosse compatível com os trabalhos da visitação e do governo, e serviço litúrgico nos actos pontificais.

Todavia, as antigas jurisdições dos arcediagos foram diminuindo, no decurso do tempo, até se extinguirem. Eram participações da jurisdição ordinária do Bispo diocesano; pouco a pouco, por conveniência da Igreja, foram reassumidas pelo dito Ordinário. Se o interesse eclesiástico havia produzido a descentralização, o mesmo interesse veio aconselhar depois a nova centralização; passaram os bispos de Coimbra a fazer por si, ou por seus delegados ad hoc, a visita às freguesias e aos conventos, conservando-se ainda, para esse efeito, a divisão regional da Diocese em arcediagados. Para cada zona era escolhido e nomeado um visitador, sem referência ao arcediago, para quem era estranha a visitação. As cúrias arquidiaconais desapareceram e todas as causas passaram a ser julgadas / 26 / pelos juízes da Cúria Episcopal, em primeira instância; apenas permaneceram as funções litúrgicas nos actos da Sé.

Voltando a fixar a nossa atenção no Arcediagado do Vouga, no dealbar do século XVIII ele encontrava-se naquela situação e o respectivo titular somente tinha o privilégio litúrgico de servir o Bispo na Catedral, como diácono da Missa. Mas quanto às prebendas, o arcediago do Vouga, ao contrário dos colegas, continuaria a recebê-las até à supressão de 1834, mesmo após a criação da Diocese de Aveiro.

Efectivamente, dentro do plano de engrandecimento de Aveiro, torna-se fácil enquadrar o propósito de D. José I e do Marquês de Pombal em estabelecer aqui uma sede episcopal, tanto mais que a urbe era também um centro de piedade à volta do túmulo e das cinzas da Princesa Santa Joana. A 28 de Setembro de 1773, o Monarca dirigia ao Papa Clemente XIV uma carta em que rogava a Sua Santidade a partilha da disforme extensão do Bispado de Coimbra», separando-se «a comarca de Esgueira para nela constituir uma nova Diocese, a que sirva de cabeça a cidade de Aveiro, constituindo a mesma comarca o território da nova Diocese». (18)

Não podemos deixar de referir uma outra circunstância que porventura terá também influído no ânimo do Marquês para o levar a tomar a resolução que nos ocupa. Vítima do despotismo pombalino, o valoroso e heróico Bispo de Coimbra, D. Miguel da Anunciação, encontrava-se desde há anos encarcerado, em condições desumanas, no forte de Pedrouços; tinha por prisão um cubículo quadrado de nove palmos, que recebia a luz do tecto por uma minúscula fresta. Foi precisamente nesta altura que D. José I e Carvalho e Melo resolveram solicitar a divisão da Diocese Conimbricense. Nem será descabido duvidar se se pretendia a erecção do Bispado de Aveiro apenas para mais serviço a Deus e bem das almas, acrescidas embora do intuito de engrandecer a nova cidade, ou ainda para amesquinhar um Prelado destemido. Entra aqui o plano da Providência, conduzindo a história dos homens, mesmo servindo-se de intenções menos puras, para fazer brotar as suas obras admiráveis.


Aveiro no início do século XIX. Cercada de muralhas para defesa da sua liberdade. (Versão 2000 px)

Após o respectivo processo, a Sumo Pontífice, pela breve Militantis Ecclesiae gubernacula, de 12 de Abril de 1774, erigiu canonicamente a Diocese de Aveiro, nos termos e segundo os limites em que lhe fora solicitado por El-Rei. Ficava-lhe a pertencer toda a comarca, correição ou provedoria de Esgueira que, no século XVIII, agrupava setenta e uma freguesias e um curato praticamente autónomo, com mais de 20 000 fogos / 27 / e com cerca de 75000 almas. Aveiro «edificada numa planície», que «se compõe de cerca de duas mil casas e é habitada por sete mil fiéis» (19), ficou, pois, a ser também cidade episcopal, com a liberdade própria de um governo eclesiástico, cujo responsável era um Bispo particular.

Para executar as Letras Apostólicas, foi escolhido pelo Papa o Cardeal Inocêncio Conti, Pró-Núncio em Portugal, com o poder de subdelegar. De facto, presidiu à cerimónia o Arcebispo Titular de Lacedemónia e Vigário-Geral do Patriarcado de Lisboa, D. António Bonifácio Coelho, amigo e servidor de Carvalho e Melo; o acto realizou-se a 24 de Março de 1775, na igreja da Misericórdia que, em consequência de prévia portaria real de 10 do mesmo mês, se viu elevada a catedral.

Perdurou até 1882 a primeira Diocese de Aveiro; neste ano efectivou-se uma nova delimitação dos Bispados portugueses, sendo extinto o de Aveiro que, em 1938 – como veremos – seria reconstituído com nova configuração territorial.

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