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N.º 17

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1974 

Crepúsculo de Pangloss

Pelos Drs. José Pereira Tavares e Álvaro Sampaio

Revista de costumes aveirenses, parte original e parte adaptada, dos professores José Tavares e Álvaro Sampaio, representada por alunos do Liceu de Aveiro em 23 e 24 de Maio de 1930. Música, parte original e parte adaptada, do professor de Canto Coral – P.e António Estêvão.

 

PRÓLOGO

(Logo após a sinfonia, aparece um estudante, em frente do pano de boca, faz a vénia aos espectadores e declama)

 

Senhoras, Senhores!

De novo ides assistir a uma récita de estudantes do Liceu da nossa terra. Depois do «Pangloss em Aveiro», representado há seis anos, tereis a paciência de ver e ouvir o «Crepúsculo de Pangloss», continuação e comentário daquela revista.

Esta peça, escrita por professores e interpretada por estudantes, não tem – nem podia ter – palavras ásperas ou crítica verrinosa que vos fira. Como a outra, como a de 1924, só contém ligeiras e amigas referências a pessoas, benévolos piparotes a factos da actualidade, em Suma: riso bonacheirão para pessoas e coisas de Aveiro. Tranquilizai-vos, pois, Senhoras e Senhores: componde-vos em vossos lugares e prestai-nos atenção.

Dispensáveis, sem dúvida estas palavras preambulares; nós não ficaríamos, porém, satisfeitos sem vos dizer, antes de iniciar a nossa pobre representação, que agora, como os estudantes de há seis anos, também contamos com a vossa generosa benevolência. O trabalho é árduo e minguadas as nossas forças de actores improvisados. Contamos com o vosso auxílio.

Que vos daremos em troca de aplausos? A expressão sincera do nosso entranhado carinho, do nosso amor sem limites por esta linda terra de Aveiro, cujo progresso vivamente desejamos.

Atenção, meus Senhores! Nós estudantes de hoje e homens de amanhã, vos enviamos, como os autores da peça, – muito saudar! (Faz vénia e retira-se. Sobe imediatamente o pano).

ACTO I

Espaçosa sala de hotel, armada em sala de recepções. Ao lado direito, cadeira de espaldar. Janelas ao fundo. Portas laterais. – Mobiliário onde convier. Flores. Ao fundo, na parede, em letras bem visíveis, o dístico – «Aveiro, Terra de Encantos». – Entre as janelas do fundo, algumas malas empilhadas.

ZÉ – (Acaba de arrumar as malas, aborrecido e tristonho. Nota-se que alguma coisa o preocupa. De repente, dispõe-se a sair, mas logo pára, como tomado por súbita resolução. Fica pensativo no meio da sala. Entra Tainha.)

TAINHA – Estão prontas as malas?

ZÉ – (Triste) – Agora mesmo acabei o trabalho, Sr. Tainha.

TAINHA – Que tens? Estás Triste? São saudades?

ZÉ – Quem as não há-de ter, meu Senhor? Habituei-me à convivência com o Dr. Pangloss, e a sua partida enche-me a alma dum desgosto tão profundo, sinto o coração tão pequenino e mísero, que – talvez seja pieguice, mas é verdade! – o meu desejo seria ir à ponte dos Arcos e atirar-me à água, de cabeça para baixo. Pobre amigo!

TAINHA – Tens razão, Zé! Também é com grande tristeza que vejo retirar-se de Aveiro o nosso hóspede. Mas ele tem razão, não só para nos abandonar, como também para nos desprezar.

ZÉ – Ninguém o compreendeu! Ninguém quis perceber a sua filosofia redentora! Veio pregar o optimismo, levantando-o como lábaro, e – raça de ingratos que nós somos! – tudo tapou os ouvidos! (Pausa) Pobre amigo!

TAINHA – Sim! Nós não somos dignos dele. Às suas ideias, cheias de generosidade, contrapusemos os dissídios, as questiúnculas, os personalismos, inimigos figadais do mais rudimentar progresso. O seu lema é concórdia / 38 / e paz, e nós preferimos a divisão e a desarmonia!

ZÉ – Infeliz e desditoso amigo!

TAINHA – Desditoso, sim! (Pequena pausa) Em má hora aqui entrou o pobre Pangloss! Recordemos. Chegou a Aveiro em 1924, e logo teve a infelicidade de se apaixonar pela Política. Casa com ela, dedica-se de alma e coração; e, passados dois anos, vem o 28 de Maio, com os seus princípios, meios e fins, e mata-lhe a mulher. Golpe tremendo a cujos estragos só a sua admirável constituição poderia resistir. E assim, dentro do lapso de seis anos, sem esposa, nem filosofia: veio solteiro e vai viúvo; veio optimista e vai desiludido! (Fica triste e pensativo).

ZÉ – (Como que tendo uma luminosa ideia) – A que horas é o comboio?

TAINHA – (Puxando do relógio) – Às sete e doze. Faltam apenas vinte minutos. O automóvel do Salgado deve estar aí a chegar.

ZÉ – (Entusiasmado) – Tive uma ideia!

TAINHA – Qual?

ZÉ – Vou fazer com que o Dr. Pangloss perca o comboio!

TAINHA – Como?

ZÉ – Muito simplesmente: alongando um bocadito a sessão de despedida. O resto é cá comigo! (Esfrega as mãos e passeia satisfeito).

TAINHA – Bem, bem! Faz o que entenderes. (Sai)

*

ZÉ – (Indo à porta) – Zefinha! Ó Zefinha!

JOSEFA – Que quer?

ZÉ – (Dançando diante de Josefa, muito satisfeito) – Vou pregar uma partida ao Dr. Pangloss.

JOSEFA – (Agastada) – Você pensa que não tenho mais que fazer?

ZÉ – (Bonacheirão) – Não se zangue. Bem sei que anda muito atarefada; mas agora tenha paciência, preciso de si!

JOSEFA – Não percebo essa música. Tenho mais que fazer – Adeus! Adeus! (Vai a sair)

ZÉ – Venha cá. Você saiu-me uma criada muito arisca! (Noutro tom) Nós também precisamos de descansar. Ora vai ouvir. (Canta)

Descansa a bota de tacão,

            e no chão!

Descansa o caixeiro ao balcão,

            o maganão!

Também descansa o estudante,

            – que tonante! –

em cima dos livros de estudo,

            que canudo!

O mesmo faz ali no Brito

            muito tipo!

E o mesmo em casa do Moreira

            – que melgueira! –

Descansa à banca o empregado

            – pobre Estado –

Té o padeiro quis descanso

            – que entalanço!

Descansa o próprio marnoto

            – que maroto! –

e descansa o Zé ‘stafado

            – que criado!

Descansa o próprio marnoto

            – pobre e roto –

e este vosso criado.

 

JOSEFA – Muito bem! Então o que é que quer de mim?

ZÉ – Já vê a Zefinha que também tenho direito à vida. (Senta-se)

JOSEFA – Ó homem, diga lá o que quer! Vá, avie-se!

ZÉ – Venha cá. Não se zangue, que não vale a pena. Sente-se aqui. (Indica uma cadeira. Noutro tom) É preciso que o Dr. Pangloss perca o comboio.

JOSEFA (Levantando-se de repelão) – Quero lá saber do Dr. Pangloss! Quer-se ir embora, que vá. Não faz falta nenhuma.

ZÉ (Levantando-se) – Não seja má. Tenha dó do velhote, coitado! Não vê que o homem anda triste e se quer ir embora porque Aveiro não progride, não sai da cepa torta?

JOSEFA – Aveiro não progrediu?! Ora o velho! Então não se mudaram os nomes às ruas? Não há aqui no teatro uma peixinola, quero dizer – grafonola? Você não vê dois postes de telegrafia sem fios ali no Largo de José Estêvão? E não é tudo molhorre? Que mais quer o velho?

ZÉ – Já vejo que a Zefinha não percebe nada disto. Só pensa nos guarda-republicanos ou nos polícias.

JOSEFA – E você tem alguma coisa coa minha vida? (Tainha entra)

*

TAINHA – Então que discussão é essa? Ninguém responde?!

JOSEFA – Saiba o patrão que o Zé pediu-me que cantasse uns versos que eu sei, e...

TAINHA – E então? Pois vai cantar!

JOSEFA – O patrão manda... (Canta)

/ 39 /

Sou a Josefa, pura e singela,

         flor a mais bela

         cá deste prado!

Namoro à noite, mas ai que delícia,

         quer um polícia,

         quer um soldado!

 

Sempre a fardinha foi meu encanto;

         mas, no entanto,

         por distracção,

se me aparece algum janotinha,

         também doidinha

         lhe dou atenção.

 

Tic-tic-tac, tic-tic-tão

cá dentro me faz o meu coração.

 

TODOS – Tic-tic-tac, tic-tic-tão,

                   cá dentro me faz o meu coração.

 

Das criadas eu sou a rainha

         e amiguinha

         cá do patrão!

Altos mistérios, altos favores:

         em casos de amores,

         não digo que não!

Sou mui prudente nesta façanha;

         tudo com manha

         sei conseguir;

mas se a fardinha logo aparece,

         tudo me esquece

         para logo sentir

 

tic-tic-tac, tic-tic-tão,

cá dentro me faz o meu coração.

 

TODOS – Tic-tic-tac, tic-tic-tão,

                   cá dentro me faz o meu coração.

 TAINHA – Não lhe conhecia essa prenda!

JOSEFA (Envergonhada). O patrão pediu...

TAINHA – Bem, bem! Vou chamar o Dr. Pangloss, mas previno-os de que não quero aqui discussões. (Sai)

*

ZÉ – Está zangada comigo?

JOSEFA – Nada. Hoje em dia, as criadas são todas assim: umas telhudas! E a propósito de telhudas! Você não imagina o sonho que tive a noite passada! Ai! Muito me ri, quando acordei!

ZÉ – Conte lá! Diga!

JOSEFA – Sonhei que se tinham mudado e misturado umas com as outras muitas ruas e casas de Aveiro. A casa do Dr. Peixinho ficava rés-vés com a do Dr. Jaime; a do Dr. Soares estava ligada com o quartel da Cavalaria e com a casa do Asilo; o consultório do Pompeu Cardoso estava ali no Brito; a casa do Padre Vieira ficava na loja da Conceiçãozinha da Costeira; o jardim tinha mudado para a Avenida Central...

ZÉ – Avenida Central?

JOSEFA – Não conhece você outra coisa! Aquela Avenida em que, durante o dia, ora se leva terra para cima, ora se traz terra para baixo.

ZÉ – Ah! Já sei! Adiante!

JOSEFA – O Liceu tinha passado para os Arcos! Os Bancos estavam... Espere... Deixe ver se me lembro. Ah! Já sei. O Regional estava no Areal de S. Jacinto; o Ultra, mesmo pegado ao Colégio de N. Senhora de Fátima; o de Portugal, no Clube de Mário Duarte; você não imagina o que eu ri, quando acordei!

ZÉ – Imagino! A gente, às vezes, sonha coisas, como se estivesse acordado, a vê-las. (Entra Tainha)

*

TAINHA – Então ainda não veio o Dr. Pangloss?!

ZÉ – Não, Senhor.

TAINHA – Estão aí fora os Concelhos, que se querem despedir, e não sei como descalçar esta bota!

JOSEFA – Se o patrão der licença, mando-os entrar, e eles que esperem...

TAlNHA – Está bem. Manda entrar essa gente.

(Josefa sai, introduz os Concelhos e retira-se)

*

CONCELHOS (Cantando)

Ouvi por um instante

nosso canto sem igual,

estrela fulgurante,

estrela sem rival.

Despedir-nos aqui vimos

do grande redentor.

A tristeza que sentimos

é, por certo, a maior.

Perdes, Aveiro, a mascote

 da f’licidade e grandeza;

Perdes, enfim, tua sorte,

teu valor, tua riqueza.

O seu saber sem igual,

sua sã filosofia

são fértil manancial

de bem-estar e alegria.

/ 40 /

TAINHA (Cantando)

Minhas Senhoras, meus Senhores,

contente estou aqui de vos ver;

prazer maior não posso ter,

penhorado a tais favores.

Dizei, dizei vossos lamentos,

Vossas mágoas e tormentos,

que Pangloss vai, vai, sim,

esta noite até Berlim.

(Dirigindo-se a Zé) – Vai dizer ao Sr. Dr. Pangloss que os Concelhos do Distrito se querem despedir de Sua Excelência.

ZÉ – Dá-me licença Sr. Tainha? (Para os Concelhos) Meus Senhores! Chegado que seja o sapientíssimo Pangloss, podem aprestar-lhe as suas reclamações, mas peço-lhes que sejam concisos – nada de discursos de légua e meia! Sua Ex.ª detesta a verborreia nacional.

TAINHA (Que tem ido à porta) – Ei-Io!

*

PANGLOSS – (Vestido de luto, chapéu colonial, binóculo a tiracolo e uma bengala) – Pangloss não querer demorar-se! Pangloss não querer perder comboio! (Todos se inclinam, reverentes).

TAINHA – Está tudo pronto, meu Senhor! Mas estão aqui os meus Concelhos, que querem despedir-se de V. Ex.ª!

PANGLOSS – Não poder ser!

ZÉ – É indispensável, Sr. Doutor! Vieram de propósito para isso! (Troca olhares com Tainha e pisca-lhe o olho)

TAINHA – Queira sentar-se, Dr. Pangloss! (Pangloss senta-se, constrangido) A mais do que há seis anos, apresento-lhe dois concelhos quase recém-nascidos: a Murtosa, pátria de valentes homens do mar e ali do Dr. Chico Soares, e S. João da Madeira, terra de chapéus, cujo bairrismo o tem feito progredir e engrandecer. O Concelho de Macieira de Cambra, coitado, morreu. Em troca, temos o Vale de Cambra, que anda ameaçado de garrotilho.

S. JOÃO DA MADEIRA (Para Pangloss) – Senhor! O Sr. Tainha-Aveiro, a nossa cabeça, acaba de dizer que em mim, nascido na vigência da ditadura, existe o ardente desejo de vida nova e progressiva. Nada mais certo. Por isso, em nome dos meus conterrâneos, e a

fim de que V. Ex.ª tenha ocasião de verificar do meu progresso, tenho a honra de lhe oferecer este chapeuzinho, duma das minhas fábricas. (Dois operários trazem um grande chapéu e colocam-nos sobre a mesa)

PANGLOSS – Muito obrigada!

S. JOÃO DA MADEIRA (Para os Concelhos) – Viva o Dr. Pangloss!

TODOS – Viva!

TAINHA (Cantando)

Sem esta filosofia,

não há terra que remoce.

Digam todos, neste dia,

viva, viva Pangloss!

TODOS – Sem esta filosofia, etc.

PANGLOSS – Em prova minha satisfaction, ir cantar cancion que cantar no ano que chegar esta terra, em 1924. Pangloss sentir-se very contente por alguns concelhos terem seguido boa filosófia, yes! (Canta

Very good of Lisbonne,

very good of Aveira;

tem baratos ovos-moles

in England borrachera.

 

Oh, my dear love!

Nô são patarates!

Só in Gafanha

há bons batates.

 

Nô mais nô speack,

nô mais be quite,

muito aranzel

mas enfim... all right!

 

Very good of Lisbonne,

very good of Aveira,

tem barates mexilhões,

in England borrachera.

 

Mas mi aqui canta

e faz aranzel:

Aveira ser bone!

Yes! Very well!

 

Mas mi aqui canta

e faz aranzel:

Aveira ser bone!

Yes! Very well!

 

TODOS –

Mas ele aqui canta

e faz aranzel:

Aveira ser bone!

Yes! Very well!

 

ZÉ (Para Tainha) – Isto vai bem! (Para Pangloss) – Diante desta alegria e desta fé, Sr. Dr., quem poderá ficar indiferente?

PANGLOSS – Yes! Very contenta! Contenta, mas... mim estar viúva, muito viúva... Póvere Politique! / 41 /

ZÉ – Deixe lá, Sr. Doutor! A D. Política morreu, mas pode ser que outra, mais alevantada, mais nobre, mais idealista, lhe suceda!

TAINHA (Para os Concelhos) – Sentem-se, meus Senhores! O Sr. Dr. Pangloss, alheado, há cerca de um ano, da vida do Distrito, deseja ouvi-los!

PANGLOSS (Consultando o relógio) – Mas... ser breves!

ZÉ (piscando o olho para Tainha) – É um instante.

OLIVEIRA DE AZEMÉIS (Levantando-se) – As coisas lá pela minha área não correm bem! Quis salvar-me com a La Salette; e, afinal, a La Salette só me tem dado amargos de boca! (Senta-se)

ÍLHAVO (Levantando-se) – A questão do Farol está de pé! É uma pouca vergonha o que os Srs. Aveirenses nos querem fazer. O farol de Aveiro é de Ílhavo! (Senta-se)

PANGLOSS – Mim não quer saber questões sem importância. Yes!

MURTOSA (Levantando-se) – Tem V. Ex.ª muita razão. Só podem ter a palavra os Concelhos que seguiram a filosofia de V. Ex.ª

S. JOÃO DA MADEIRA – Apoiado! (Os outros concelhos impacientam-se).

ESTARREJA – Pois sim! Estás servida! Querias o Arquivo....

MURTOSA – S. João da Madeira e eu fomos os únicos que progredimos. Tem V. Ex.ª nestes dois Concelhos uma casa às ordens.

PANGLOSS – Muito obrigada! (Relógio) Ser horas... (Ergue-se)

ZÉ – Mais um pouco, Excelência! (Pangloss senta-se). (Zé para Tainha) Isto vai bem!

*

JOSEFA (À porta) – Senhor Tainha! Estão lá fora o Mercado, as Obras, a Viação, o Saneamento, que desejam falar ao Sr. Dr. Pangloss.

TAINHA – Mando-os entrar! (Josefa sai. Pouco depois, entram os nomeados)

*

OBRAS (Cantando)

O Presidente cá da terra

mil obras traz por toda aparte;

mas tudo hrada e tudo berra:

– Não há dinheiro que o farte!

 

MERCADO (Cantando)

Não há mercado: foi-se à vida;

isto é da lei, lei dos contrastes,

pois já não pode na Avenida

vender a Junta os tomates!

 

«Ora aqui está como isto caminha

nesta desgraçada terrinha».

Todos por um dizem assim,

deixa andar; corra o marfim!

 

CORO –

Ora aqui está como isto caminha

nesta desgraçada terrinha».

Todos por um dizem assim,

deixa andar; corra o marfim!

 

VIAÇÃO (Cantando) –

Quando a terra está em pó

e os ventos movem moinhos,

isso então é sol e dó

o que lá vai pelos caminhos.

 

SANEAMENTO –

Se o Verão atinge o cume

e a maré vaza na ria,

temos então um perfume

que se espalha noite e dia.

 

CORO –

Ora aqui está como isto caminha

nesta desgraçada terrinha».

Todos por um dizem assim,

deixa andar; corra o marfim!

(Ouve-se uma buzina de automóvel)

 

PANGLOSS – Yes! Mim conhecer toda estas coisas e por isso querer partir imediatamente pra comboia. (Ergue-se)

ZÉ – Suspenda, Sr. Doutor! O comboio foi-se com o vento fresco! Tenha paciência. Não abandone todos estes desgraçadinhos. Estão com uma cara de confrangidos!...

TAINHA – Peço-lhe, meu amigo!

ZÉ – Vá, Sr. Doutor! Venha ao menos, comigo, despedir-se da cidade. Há um ano que V. Ex.ª não a visita. Pode lá ser! Proponho-lhe um passeio ao Largo dos Pacatos e ao Jardim dos Prazeres. Se depois dessas visitas não ficar satisfeito, consentiremos então, embora com pesar, que V. Ex.ª bata as asas e volte à sua pátria. Entendido?

PANGLOSS – Yes! Tudo o que sucede no mundo é pelo melhor. All right! Embora Pangloss esteja muito fárreto destas coisas, Pangloss consente em dar passeia com Zé.

ZÉ – Viva Pangloss!

TODOS – Viva! (Apagam-se as luzes, Saem todos, com excepção de Tainha e Pangloss, que andam às apalpadelas)

*

PANGLOSS – D. Eletrique continua a fazer suas graces! / 42 /

TAINHA – É a Eléctrica Lindosa. Um dos melhoramentos devidos a V.Ex.ª. (Entram Eléctrica e Lâmpadas e cantam)

*

Nossa luz

aqui penetra,

luz de truz,

pois é eléctrico.

 

Se ela se apaga

um momento,

logo se alaga

o ‘scurecimento.

 

Como é linda!

É do Lindoso;

melhor ainda

pró nosso bolso!

 

D. ELÉCTRICA –

Nem somente o Sol e mais a Lua,

com seus claros, vivos raios de ouro,

e a sua luz violenta e crua

iluminam o mundo co meu tesouro.

 

Bruxuleando firme, rebrilhando,

quando a chama intensa nos produz,

sente-se a alma quente volitando

em torno, em redor da nossa luz.

 

As estrelas sidéreas, luminosas

sentem-se mal, de nos ver cintilar,

e cerram apagando, invejosas,

o fulgor que elas têm em seu olhar.

 

CORO –

As mariposas douradas

em redor de nós volitam;

e, de luz embriagadas,

dentro de mim se precipitam.

 

As mariposas douradas

em redor de nós volitam;

e, de luz embriagadas,

dentro de mim se precipitam.

 

PANGLOSS – D. Electrique estar satisfeito?

D. ELÉCTRICA – Muito satisfeita, Sr. Doutor! Mas mais do que eu, os meus consumidores e os meus accionistas!

PANGLOSS – Porquê? Porquê, Senhora?

D. ELÉCTRICA – Os consumidores... porque sim. (Faz o gesto de pagar); os accionistas... (Esfregando um no outro o dedo indicador e o polegar) porque não! Mas estes não se resignam. Não tardam aí! Andam sempre atrás de mim. Eles aí estão!

PANGLOSS – Oh, que grande Diaba! Aveiro ser terra muito divertida. (Vai a sair)

TAINHA – Sossegue, Sr. Doutor! V. Ex.ª é estrangeiro, e o estrangeiro, em minha casa, ainda é, graças a Deus, inviolável. Nada receie! (Entram Accionistas, e Polícias, cada um com uma acção na mão, e o Zé com um lampião)

ACCIONISTAS –

Se acaso aqui vimos,

quais outros D. Quixotes,

creiam bem que aqui sentimos

o coração aos piparotes.

 

Não é medo nem medinho,

nem susto ou aflição;

é o nosso dinheirinho

que se foi pró alçapão.

 

Ah, ah, ah, ah!

       Ah, ah, ah!

       Ah, ah, ah!

Viva a pândega,

       Olá, olá!

 

Viva a pândega

       e a folia

       o prazer

       e a alegria!

 

Ah, ah, ah!

       Ah, ah, ah!

Viva a pândega

       e a folia!

       Olé, olá!

 

Vimos todos, accionistas,

a correr, sem matinada,

p’ra prender os camaristas

que fizeram a embrulhada.

 

As acções da D. Eléctrica

são bonitas, ficam bem;

já não valem um etc.,

já não valem um vintém!

 

Ah, ah, ah, ah!

       Ah, ah, ah!

       Ah, ah, ah!

Viva a pândega,

       Olá, olá!

 (Pangloss, Zé e Tainha saem.)

Cai o pano

Fim do 1º acto

>>>

páginas 37 a 53

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