Revista de
costumes aveirenses, parte original e parte adaptada, dos
professores José Tavares e Álvaro Sampaio, representada por alunos
do Liceu de Aveiro em 23 e 24 de Maio de 1930. Música, parte
original e parte adaptada, do professor de Canto Coral – P.e
António Estêvão.
PRÓLOGO
(Logo após a sinfonia, aparece
um estudante, em frente do pano de boca, faz a vénia aos
espectadores e declama)
Senhoras, Senhores!
De novo ides assistir a uma récita
de estudantes do Liceu da nossa terra. Depois do «Pangloss em
Aveiro», representado há seis anos, tereis a paciência de ver e
ouvir o «Crepúsculo de Pangloss», continuação e comentário daquela
revista.
Esta peça, escrita por professores
e interpretada por estudantes, não tem – nem podia ter – palavras
ásperas ou crítica verrinosa que vos fira. Como a outra, como a de
1924, só contém ligeiras e amigas referências a pessoas, benévolos
piparotes a factos da actualidade, em Suma: riso bonacheirão para
pessoas e coisas de Aveiro. Tranquilizai-vos, pois, Senhoras e
Senhores: componde-vos em vossos lugares e prestai-nos atenção.
Dispensáveis, sem dúvida estas
palavras preambulares; nós não ficaríamos, porém, satisfeitos sem
vos dizer, antes de iniciar a nossa pobre representação, que
agora, como os estudantes de há seis anos, também contamos com a
vossa generosa benevolência. O trabalho é árduo e minguadas as
nossas forças de actores improvisados. Contamos com o vosso
auxílio.
Que vos daremos em troca de
aplausos? A expressão sincera do nosso entranhado carinho, do
nosso amor sem limites por esta linda terra de Aveiro, cujo
progresso vivamente desejamos.
Atenção, meus Senhores! Nós
estudantes de hoje e homens de amanhã, vos enviamos, como os
autores da peça, – muito saudar! (Faz vénia e retira-se. Sobe
imediatamente o pano).
ACTO I
Espaçosa sala de hotel, armada
em sala de recepções. Ao lado direito, cadeira de espaldar.
Janelas ao fundo. Portas laterais. – Mobiliário onde convier.
Flores. Ao fundo, na parede, em letras bem visíveis, o dístico – «Aveiro,
Terra de Encantos». – Entre as janelas do fundo, algumas malas
empilhadas.
ZÉ – (Acaba de arrumar as
malas, aborrecido e tristonho. Nota-se que alguma coisa o
preocupa. De repente, dispõe-se a sair, mas logo pára, como tomado
por súbita resolução. Fica pensativo no meio da sala. Entra Tainha.)
TAINHA – Estão prontas as malas?
ZÉ – (Triste) – Agora mesmo
acabei o trabalho, Sr. Tainha.
TAINHA – Que tens? Estás Triste?
São saudades?
ZÉ – Quem as não há-de ter, meu
Senhor? Habituei-me à convivência com o Dr. Pangloss, e a sua
partida enche-me a alma dum desgosto tão profundo, sinto o coração
tão pequenino e mísero, que – talvez seja pieguice, mas é verdade!
– o meu desejo seria ir à ponte dos Arcos e atirar-me à água, de
cabeça para baixo. Pobre amigo!
TAINHA – Tens razão, Zé! Também é
com grande tristeza que vejo retirar-se de Aveiro o nosso hóspede.
Mas ele tem razão, não só para nos abandonar, como também para nos
desprezar.
ZÉ – Ninguém o compreendeu!
Ninguém quis perceber a sua filosofia redentora! Veio pregar o
optimismo, levantando-o como lábaro, e – raça de ingratos que nós
somos! – tudo tapou os ouvidos! (Pausa) Pobre amigo!
TAINHA – Sim! Nós não somos dignos
dele. Às suas ideias, cheias de generosidade, contrapusemos os
dissídios, as questiúnculas, os personalismos, inimigos figadais
do mais rudimentar progresso. O seu lema é concórdia
/ 38 / e paz, e nós
preferimos a divisão e a desarmonia!
ZÉ – Infeliz e desditoso amigo!
TAINHA – Desditoso, sim! (Pequena
pausa) Em má hora aqui entrou o pobre Pangloss! Recordemos.
Chegou a Aveiro em 1924, e logo teve a infelicidade de se
apaixonar pela Política. Casa com ela, dedica-se de alma e
coração; e, passados dois anos, vem o 28 de Maio, com os seus
princípios, meios e fins, e mata-lhe a mulher. Golpe tremendo a
cujos estragos só a sua admirável constituição poderia resistir. E
assim, dentro do lapso de seis anos, sem esposa, nem filosofia:
veio solteiro e vai viúvo; veio optimista e vai desiludido! (Fica
triste e pensativo).
ZÉ – (Como que tendo uma
luminosa ideia) – A que horas é o comboio?
TAINHA – (Puxando do relógio)
– Às sete e doze. Faltam apenas vinte minutos. O automóvel do
Salgado deve estar aí a chegar.
ZÉ – (Entusiasmado) – Tive
uma ideia!
TAINHA – Qual?
ZÉ – Vou fazer com que o Dr.
Pangloss perca o comboio!
TAINHA – Como?
ZÉ – Muito simplesmente: alongando
um bocadito a sessão de despedida. O resto é cá comigo! (Esfrega
as mãos e passeia satisfeito).
TAINHA – Bem, bem! Faz o que
entenderes. (Sai)
*
ZÉ – (Indo à porta) –
Zefinha! Ó Zefinha!
JOSEFA – Que quer?
ZÉ – (Dançando diante de
Josefa, muito satisfeito) – Vou pregar uma partida ao Dr.
Pangloss.
JOSEFA – (Agastada) – Você
pensa que não tenho mais que fazer?
ZÉ – (Bonacheirão) – Não se
zangue. Bem sei que anda muito atarefada; mas agora tenha
paciência, preciso de si!
JOSEFA – Não percebo essa música.
Tenho mais que fazer – Adeus! Adeus! (Vai a sair)
ZÉ – Venha cá. Você saiu-me uma
criada muito arisca! (Noutro tom) Nós também precisamos de
descansar. Ora vai ouvir. (Canta)
Descansa a bota de tacão,
e no chão!
Descansa o caixeiro ao balcão,
o maganão!
Também descansa o estudante,
– que tonante! –
em cima dos livros de estudo,
que canudo!
O mesmo faz ali no Brito
muito tipo!
E o mesmo em casa do Moreira
– que melgueira! –
Descansa à banca o empregado
– pobre Estado –
Té o padeiro quis descanso
– que entalanço!
Descansa o próprio marnoto
– que maroto! –
e descansa o Zé ‘stafado
– que criado!
Descansa o próprio marnoto
– pobre e roto –
e este vosso criado.
JOSEFA – Muito bem! Então o que é
que quer de mim?
ZÉ – Já vê a Zefinha que também
tenho direito à vida. (Senta-se)
JOSEFA – Ó homem, diga lá o que
quer! Vá, avie-se!
ZÉ – Venha cá. Não se zangue, que
não vale a pena. Sente-se aqui. (Indica uma cadeira. Noutro tom)
É preciso que o Dr. Pangloss perca o comboio.
JOSEFA (Levantando-se de
repelão) – Quero lá saber do Dr. Pangloss! Quer-se ir embora,
que vá. Não faz falta nenhuma.
ZÉ (Levantando-se) – Não
seja má. Tenha dó do velhote, coitado! Não vê que o homem anda
triste e se quer ir embora porque Aveiro não progride, não sai da
cepa torta?
JOSEFA – Aveiro não progrediu?!
Ora o velho! Então não se mudaram os nomes às ruas? Não há aqui no
teatro uma peixinola, quero dizer – grafonola? Você não vê
dois postes de telegrafia sem fios ali no Largo de José Estêvão? E
não é tudo molhorre? Que mais quer o velho?
ZÉ – Já vejo que a Zefinha não
percebe nada disto. Só pensa nos guarda-republicanos ou nos
polícias.
JOSEFA – E você tem alguma coisa
coa minha vida? (Tainha entra)
*
TAINHA – Então que discussão é
essa? Ninguém responde?!
JOSEFA – Saiba o patrão que o Zé
pediu-me que cantasse uns versos que eu sei, e...
TAINHA – E então? Pois vai cantar!
JOSEFA – O patrão manda... (Canta)
/ 39 /
Sou a Josefa, pura e singela,
flor a mais bela
cá deste prado!
Namoro à noite, mas ai que delícia,
quer um polícia,
quer um soldado!
Sempre a fardinha foi meu encanto;
mas, no entanto,
por distracção,
se me aparece algum janotinha,
também doidinha
lhe dou atenção.
Tic-tic-tac, tic-tic-tão
cá dentro me faz o meu coração.
TODOS – Tic-tic-tac,
tic-tic-tão,
cá dentro me faz o meu coração.
Das criadas eu sou a rainha
e amiguinha
cá do patrão!
Altos mistérios, altos favores:
em casos de amores,
não digo que não!
Sou mui prudente nesta façanha;
tudo com manha
sei conseguir;
mas se a fardinha logo aparece,
tudo me esquece
para logo sentir
tic-tic-tac, tic-tic-tão,
cá dentro me faz o meu coração.
TODOS – Tic-tic-tac,
tic-tic-tão,
cá dentro me faz o meu coração.
TAINHA
– Não lhe conhecia essa prenda!
JOSEFA (Envergonhada). O
patrão pediu...
TAINHA – Bem, bem! Vou chamar o Dr.
Pangloss, mas previno-os de que não quero aqui discussões. (Sai)
*
ZÉ – Está zangada comigo?
JOSEFA – Nada. Hoje em dia, as
criadas são todas assim: umas telhudas! E a propósito de
telhudas! Você não imagina o sonho que tive a noite passada! Ai!
Muito me ri, quando acordei!
ZÉ – Conte lá! Diga!
JOSEFA – Sonhei que se tinham mudado
e misturado umas com as outras muitas ruas e casas de Aveiro. A casa
do Dr. Peixinho ficava rés-vés com a do Dr. Jaime; a do Dr. Soares
estava ligada com o quartel da Cavalaria e com a casa do Asilo; o
consultório do Pompeu Cardoso estava ali no Brito; a casa do Padre
Vieira ficava na loja da Conceiçãozinha da Costeira; o jardim tinha
mudado para a Avenida Central...
ZÉ – Avenida Central?
JOSEFA – Não conhece você outra
coisa! Aquela Avenida em que, durante o dia, ora se leva terra para
cima, ora se traz terra para baixo.
ZÉ – Ah! Já sei! Adiante!
JOSEFA – O Liceu tinha passado para
os Arcos! Os Bancos estavam... Espere... Deixe ver se me lembro. Ah!
Já sei. O Regional estava no Areal de S. Jacinto; o Ultra,
mesmo pegado ao Colégio de N. Senhora de Fátima; o de Portugal, no
Clube de Mário Duarte; você não imagina o que eu ri, quando acordei!
ZÉ – Imagino! A gente, às vezes,
sonha coisas, como se estivesse acordado, a vê-las. (Entra Tainha)
*
TAINHA – Então ainda não veio o Dr.
Pangloss?!
ZÉ – Não, Senhor.
TAINHA – Estão aí fora os Concelhos,
que se querem despedir, e não sei como descalçar esta bota!
JOSEFA – Se o patrão der licença,
mando-os entrar, e eles que esperem...
TAlNHA – Está bem. Manda entrar essa
gente.
(Josefa sai, introduz os
Concelhos e retira-se)
*
CONCELHOS (Cantando)
–
Ouvi por um instante
nosso canto sem igual,
estrela fulgurante,
estrela sem rival.
Despedir-nos aqui vimos
do grande redentor.
A tristeza que sentimos
é, por certo, a maior.
Perdes, Aveiro, a mascote
da f’licidade e grandeza;
Perdes, enfim, tua sorte,
teu valor, tua riqueza.
O seu saber sem igual,
sua sã filosofia
são fértil manancial
de bem-estar e alegria.
/ 40 /
TAINHA (Cantando)
–
Minhas Senhoras, meus Senhores,
contente estou aqui de vos ver;
prazer maior não posso ter,
penhorado a tais favores.
Dizei, dizei vossos lamentos,
Vossas mágoas e tormentos,
que Pangloss vai, vai, sim,
esta noite até Berlim.
(Dirigindo-se a Zé) – Vai
dizer ao Sr. Dr. Pangloss que os Concelhos do Distrito se querem
despedir de Sua Excelência.
ZÉ – Dá-me licença Sr. Tainha? (Para
os Concelhos) Meus Senhores! Chegado que seja o sapientíssimo
Pangloss, podem aprestar-lhe as suas reclamações, mas peço-lhes que
sejam concisos – nada de discursos de légua e meia! Sua Ex.ª detesta
a verborreia nacional.
TAINHA (Que tem ido à porta)
– Ei-Io!
*
PANGLOSS – (Vestido de luto,
chapéu colonial, binóculo a tiracolo e uma bengala) – Pangloss
não querer demorar-se! Pangloss não querer perder comboio! (Todos
se inclinam, reverentes).
TAINHA – Está tudo pronto, meu
Senhor! Mas estão aqui os meus Concelhos, que querem despedir-se de
V. Ex.ª!
PANGLOSS – Não poder ser!
ZÉ – É indispensável, Sr. Doutor!
Vieram de propósito para isso! (Troca olhares com Tainha e
pisca-lhe o olho)
TAINHA – Queira sentar-se, Dr.
Pangloss! (Pangloss senta-se, constrangido) A mais do que há
seis anos, apresento-lhe dois concelhos quase recém-nascidos: a
Murtosa, pátria de valentes homens do mar e ali do Dr. Chico Soares,
e S. João da Madeira, terra de chapéus, cujo bairrismo o tem feito
progredir e engrandecer. O Concelho de Macieira de Cambra, coitado,
morreu. Em troca, temos o Vale de Cambra, que anda ameaçado de
garrotilho.
S. JOÃO DA MADEIRA (Para Pangloss)
– Senhor! O Sr. Tainha-Aveiro, a nossa cabeça, acaba de dizer que em
mim, nascido na vigência da ditadura, existe o ardente desejo de
vida nova e progressiva. Nada mais certo. Por isso, em nome dos meus
conterrâneos, e a
fim de que V. Ex.ª tenha ocasião de
verificar do meu progresso, tenho a honra de lhe oferecer este
chapeuzinho, duma das minhas fábricas. (Dois operários trazem um
grande chapéu e colocam-nos sobre a mesa)
PANGLOSS – Muito obrigada!
S. JOÃO DA MADEIRA (Para os
Concelhos) – Viva o Dr. Pangloss!
TODOS – Viva!
TAINHA (Cantando)
–
Sem esta filosofia,
não há terra que remoce.
Digam todos, neste dia,
viva, viva Pangloss!
TODOS – Sem esta filosofia, etc.
PANGLOSS – Em prova minha
satisfaction, ir cantar cancion que cantar no ano que chegar esta
terra, em 1924. Pangloss sentir-se very contente por alguns
concelhos terem seguido boa filosófia, yes!
(Canta)
Very good of Lisbonne,
very good of Aveira;
tem baratos ovos-moles
in England borrachera.
Oh, my dear love!
Nô são patarates!
Só in Gafanha
há bons batates.
Nô mais nô speack,
nô mais be quite,
muito aranzel
mas enfim... all right!
Very good of Lisbonne,
very good of Aveira,
tem barates mexilhões,
in England borrachera.
Mas mi aqui canta
e faz aranzel:
Aveira ser bone!
Yes! Very well!
Mas mi aqui canta
e faz aranzel:
Aveira ser bone!
Yes! Very well!
TODOS –
Mas ele aqui canta
e faz aranzel:
Aveira ser bone!
Yes! Very well!
ZÉ (Para Tainha) – Isto vai
bem! (Para Pangloss) – Diante desta alegria e desta fé, Sr.
Dr., quem poderá ficar indiferente?
PANGLOSS – Yes! Very contenta!
Contenta, mas... mim estar viúva, muito viúva... Póvere Politique!
/ 41 /
ZÉ – Deixe lá, Sr. Doutor! A D.
Política morreu, mas pode ser que outra, mais alevantada, mais
nobre, mais idealista, lhe suceda!
TAINHA (Para os Concelhos) –
Sentem-se, meus Senhores! O Sr. Dr. Pangloss, alheado, há cerca de
um ano, da vida do Distrito, deseja ouvi-los!
PANGLOSS (Consultando o relógio)
– Mas... ser breves!
ZÉ (piscando o olho para Tainha)
– É um instante.
OLIVEIRA DE AZEMÉIS (Levantando-se)
– As coisas lá pela minha área não correm bem! Quis salvar-me com a
La Salette; e, afinal, a La Salette só me tem dado amargos de boca!
(Senta-se)
ÍLHAVO (Levantando-se) – A
questão do Farol está de pé! É uma pouca vergonha o que os Srs.
Aveirenses nos querem fazer. O farol de Aveiro é de Ílhavo! (Senta-se)
PANGLOSS – Mim não quer saber
questões sem importância. Yes!
MURTOSA (Levantando-se) – Tem
V. Ex.ª muita razão. Só podem ter a palavra os Concelhos que
seguiram a filosofia de V. Ex.ª
S. JOÃO DA MADEIRA – Apoiado! (Os
outros concelhos impacientam-se).
ESTARREJA – Pois sim! Estás servida!
Querias o Arquivo....
MURTOSA – S. João da Madeira e eu
fomos os únicos que progredimos. Tem V. Ex.ª nestes dois Concelhos
uma casa às ordens.
PANGLOSS – Muito obrigada! (Relógio)
Ser horas... (Ergue-se)
ZÉ – Mais um pouco, Excelência! (Pangloss
senta-se). (Zé para Tainha) Isto vai bem!
*
JOSEFA (À porta) – Senhor
Tainha! Estão lá fora o Mercado, as Obras, a Viação, o Saneamento,
que desejam falar ao Sr. Dr. Pangloss.
TAINHA – Mando-os entrar! (Josefa
sai. Pouco depois, entram os nomeados)
*
OBRAS (Cantando)
–
O Presidente cá da terra
mil obras traz por toda aparte;
mas tudo hrada e tudo berra:
– Não há dinheiro que o farte!
MERCADO (Cantando)
–
Não há mercado: foi-se à vida;
isto é da lei, lei dos contrastes,
pois já não pode na Avenida
vender a Junta os tomates!
«Ora aqui está como isto caminha
nesta desgraçada terrinha».
Todos por um dizem assim,
deixa andar; corra o marfim!
CORO –
Ora aqui está como isto caminha
nesta desgraçada terrinha».
Todos por um dizem assim,
deixa andar; corra o marfim!
VIAÇÃO (Cantando) –
Quando a terra está em pó
e os ventos movem moinhos,
isso então é sol e dó
o que lá vai pelos caminhos.
SANEAMENTO –
Se o Verão atinge o cume
e a maré vaza na ria,
temos então um perfume
que se espalha noite e dia.
CORO –
Ora aqui está como isto caminha
nesta desgraçada terrinha».
Todos por um dizem assim,
deixa andar; corra o marfim!
(Ouve-se uma buzina de automóvel)
PANGLOSS – Yes! Mim conhecer toda
estas coisas e por isso querer partir imediatamente pra comboia. (Ergue-se)
ZÉ – Suspenda, Sr. Doutor! O comboio
foi-se com o vento fresco! Tenha paciência. Não abandone todos estes
desgraçadinhos. Estão com uma cara de confrangidos!...
TAINHA – Peço-lhe, meu amigo!
ZÉ – Vá, Sr. Doutor! Venha ao menos,
comigo, despedir-se da cidade. Há um ano que V. Ex.ª não a visita.
Pode lá ser! Proponho-lhe um passeio ao Largo dos Pacatos e ao
Jardim dos Prazeres. Se depois dessas visitas não ficar satisfeito,
consentiremos então, embora com pesar, que V. Ex.ª bata as asas e
volte à sua pátria. Entendido?
PANGLOSS – Yes! Tudo o que sucede no
mundo é pelo melhor. All right! Embora Pangloss esteja muito fárreto
destas coisas, Pangloss consente em dar passeia com Zé.
ZÉ – Viva Pangloss!
TODOS – Viva! (Apagam-se as
luzes, Saem todos, com excepção de Tainha e Pangloss, que andam às
apalpadelas)
*
PANGLOSS – D. Eletrique continua a
fazer suas graces!
/ 42 /
TAINHA – É a Eléctrica Lindosa. Um
dos melhoramentos devidos a V.Ex.ª. (Entram Eléctrica e Lâmpadas
e cantam)
*
Nossa luz
aqui penetra,
luz de truz,
pois é eléctrico.
Se ela se apaga
um momento,
logo se alaga
o ‘scurecimento.
Como é linda!
É do Lindoso;
melhor ainda
pró nosso bolso!
D. ELÉCTRICA –
Nem somente o Sol e mais a Lua,
com seus claros, vivos raios de
ouro,
e a sua luz violenta e crua
iluminam o mundo co meu tesouro.
Bruxuleando firme, rebrilhando,
quando a chama intensa nos produz,
sente-se a alma quente volitando
em torno, em redor da nossa luz.
As estrelas sidéreas, luminosas
sentem-se mal, de nos ver cintilar,
e cerram apagando, invejosas,
o fulgor que elas têm em seu olhar.
CORO –
As mariposas douradas
em redor de nós volitam;
e, de luz embriagadas,
dentro de mim se precipitam.
As mariposas douradas
em redor de nós volitam;
e, de luz embriagadas,
dentro de mim se precipitam.
PANGLOSS – D. Electrique estar
satisfeito?
D. ELÉCTRICA – Muito satisfeita, Sr.
Doutor! Mas mais do que eu, os meus consumidores e os meus
accionistas!
PANGLOSS – Porquê? Porquê, Senhora?
D. ELÉCTRICA – Os consumidores...
porque sim. (Faz o gesto de pagar); os accionistas... (Esfregando
um no outro o dedo indicador e o polegar) porque não! Mas estes
não se resignam. Não tardam aí! Andam sempre atrás de mim. Eles aí
estão!
PANGLOSS – Oh, que grande Diaba!
Aveiro ser terra muito divertida. (Vai a sair)
TAINHA – Sossegue, Sr. Doutor! V.
Ex.ª é estrangeiro, e o estrangeiro, em minha casa, ainda é, graças
a Deus, inviolável. Nada receie! (Entram Accionistas, e Polícias,
cada um com uma acção na mão, e o Zé com um lampião)
ACCIONISTAS –
Se acaso aqui vimos,
quais outros D. Quixotes,
creiam bem que aqui sentimos
o coração aos piparotes.
Não é medo nem medinho,
nem susto ou aflição;
é o nosso dinheirinho
que se foi pró alçapão.
Ah, ah, ah, ah!
Ah, ah, ah!
Ah, ah, ah!
Viva a pândega,
Olá, olá!
Viva a pândega
e a folia
o prazer
e a alegria!
Ah, ah, ah!
Ah, ah, ah!
Viva a pândega
e a folia!
Olé, olá!
Vimos todos, accionistas,
a correr, sem matinada,
p’ra prender os camaristas
que fizeram a embrulhada.
As acções da D. Eléctrica
são bonitas, ficam bem;
já não valem um etc.,
já não valem um vintém!
Ah, ah, ah, ah!
Ah, ah, ah!
Ah, ah, ah!
Viva a pândega,
Olá, olá!
(Pangloss, Zé e Tainha saem.)
Cai o pano
Fim do 1º acto
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