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«Quando eu soltar o meu voo desta
terra de incertezas e de ansiedades para a outra lá de cima, onde
já não há crepúsculos, nem noites, nem poentes, nem flores murchas,
nem folhas mortas, estou certo de que levarei para o Céu, bem
pregadas ao coração, eternamente frescas e perfumadas, dominando as
outras, duas grandes saudades:
A saudade do meu pobre lar, a mais
antiga, a mais penetrante talvez. Não porque fossem de oiro ou de
prata ou de ricas porcelanas as telhas que o cobriam; que foram
antes do mais tosco barro que nos fornos de Eixo se fabricava. Mas
elas cantam ainda hoje, revestidas dos musgos das gerações, a
alegria do pequenino predestinado, quando saltava, debaixo do doce
abrigo, para os braços e para os beijos de sua mãe, quando se iam
gravando na alma, ainda página imaculada da vida humana, as fortes e
austeras virtudes do pai. Não as trocaria eu, essas quatro
desmoronadas paredes, para todos mortas só para mim tão vivas, por
nenhum desses palácios de mármore que se espelham orgulhosamente nas
águas de cristal de Veneza!
A saudade da minha terra, do ninho
pátrio onde nasci, das árvores amigas que abrigaram os meus
primeiros sonhos, duma estranha e única composição de sol, de ar e
de luz, que não encontro senão em Aveiro, dos murmúrios misteriosos
do Vouga que nos embalam à noite quando estamos para adormecer, como
se fossem aos nossos ouvidos a canção duma mãe. E, quando eu penso
que um insondável destino me preparou para ser um dia, no ocaso da
vida, o pai espiritual dos meus próprios irmãos de sangue, o pastor
mais velho da nossa grei, ainda mais a paixão da terra de Aveiro se
acendeu em mim, ainda mais levarei nos olhos, como um doce viático,
como um suave descanso no túmulo, as saudades do que tanto amei.
Deixem-me então dormir, todo envolvido no meu calmo sonho.
D.
JOÃO EVANGELISTA DE LIMA VIDAL
De LIMA VIDAL NO SEU TEMPO – 3.º Vol.) |