No arborizado e amplo largo
fronteiro à Fábrica de Porcelana da Vista-Alegre de tão grandes
tradições artísticas, ergue-se, à esquerda de quem olha o
principal edifício daquela instituição fabril, a notável e
interessante Capela de Nossa Senhora da Penha de França, monumento
nacional, que data dos fins do século XVII.
Para além de um interesse
puramente artístico – de que, aliás, se não suspeita ao encarar a
fachada – o templozinho que não ostenta grandes promessas na
fisionomia, tem a sua história curiosa a que não falta, sequer, um
sublinhado doirado e lendário que lhe emoldura a origem de
legendas e lhe corrobora as vicissitudes da fábrica com alguns
episódios onde se topa, até, com o seu quê de pitoresca e de cunho
sentimental que, aliás, se podem ler nas entrelinhas de algumas
obras de arte guardadas para lá das suas paredes.
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Capela da Senhora de Penha de
França, na Vista-Alegre. |
As copas robustas e densas de
clorofila das velhas árvores que a enfeitam projectando-Ihe na
patina do calcário moreno da frontaria, uma ou outra mancha de
sombra azulada, corroboram a anciania da pedra de uma intimidade
recolhida.
Disse, aí para trás, que quem vê a
fachada não tem indícios para adivinhar os motivos de beleza que
encobre dado que, subtraída a imagem da Padroeira, de largos
panejamentos abarrocadas, que num amplo nicho sobranceiro à
padieira do portal domina o conjunto e onde há quem queira (mal
quanto a mim) encontrar a dedada identificadora do talento de
Laprade que, lá dentro, deixou a sua marca erudita e hábil no
magnífico Túmulo do Bispo, pouca mais se encontra que mereça um
apontamento referencial.
Como e porquê, surgiu aqui este
pequeno escrínio de beleza num sítio que, ao tempo da sua
construção, deveria ser pouco menos do que um terreiro desolado
embora debruçado sobre o espelho cristalino de um braço da Ria que
lhe passa à ilharga?
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Porque se terá erguido, na solidão
do local, uma capela em que primores de escopro e subtilezas de
pincel enobreceram a pedra, o estuque e os azulejos preciosos que
lhe revestem as paredes interiores num silhar que sobe por eles
acima?
Há sempre – quer se queira, quer
se não queira – uma pontinha de mistério escondido na argamassa
das juntas que seguram as pedras que crescem, a prumo, sob o
impulso de uma vontade original que estimula a
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imaginação dos arquitectos, os músculos dos pedreiros, o cinzel
dos lavrantes e o pincel dos pintores, mormente, como no caso
presente, quando se levanta do chão árido a florescência de um
templo para que a gente tem hoje dificuldades em vislumbrar fiéis.
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Tecto da sacristia- Ver
nota |
O núcleo populacional da
Vista-Alegre – tudo o leva a crer – aninha-se, posteriormente,
como os pintos à roda da galinha mãe, à volta das actividades
fabris instaladas pela iniciativa, larga e arrojada, de José
Ferreira Pinto Basto que, para além dos vidros, meios cristais e
porcelanas que começou a fabricar e a enobrecer artisticamente,
ainda encontrou disponibilidades para dar a sua colherada de
argamassa e o seu gigo de pedras para rematar as torres sineiras
da Capela.
Talvez que, a não terem existido
certos amores secretos do Bispo D. Manuel de Moura Manuel e o
fruto desses amores surgido, nunca as temporadas do prelado na sua
quinta da Ermida se prolongassem o suficiente para lhe acicatar o
interesse para a construção da Capela que hoje nos ocupa e que
serve de delícia a turistas de visão selectiva.
Quem sabe se o velho Bispo de
Miranda, Reitor da Universidade de Coimbra, quereria dormir o seu
último sono neste exílio silvestre se não fosse a intenção de o
dormir perto dos restos mortais de sua filha Teodora que escondera
ciosamente, em vida, na sua Quinta da Ermida? De resto tudo leva a
crer que não seria por modéstia que determinou a sua tumulação no
meio deste silencioso exílio, se atentarmos no longo e prolixo
epitáfio que Ihe assinala a jazida e na pompa tumular que lhe
esmaga as ossadas e que ultrapassam, de longe, em sumptuosidade, o
cursvs honorum das lápides funerárias da epigrafia latina e
a exuberância de certos mausoléus dos príncipes do Renascimento.
Como quem pretende historiar tem
que cheirar o bafio dos papéis velhos e vencer as alergias para o
pó dos arquivos, socorro-me das informações paroquiais do Distrito
de Aveiro de 1721, publicadas pela pertinácia beneditina de Rocha
Madail, para catar alguns elementos que me dêem encosto a estas
considerações. Assim, e na parte referente à freguesia de Ílhavo
lá encontro que há mais «nesta freyg.a a Magnifica Capella de N.
S.ª de Penha da franssa Cita na quinta da Vista alegre obra com o
desvello do IIl.mo M.el de Moura M.el
Bispo q. foi de Miranda obra m.to Magestoza e digna de
memória e assim me pareçeo dar della notiçia Com toda a
indeviduação»; para acrescentar, logo adiante, que «He esta
fábrica de primoroza architetura p.ª q. ConCorreram os mais
peritos e Insignes artistas q. pode descobrir a g.de
delig.ª que Seu fundador fes aSin neste Reyno Como fora delle».
Foi pois a Capela mandada
construir por D. Manuel de Moura Manuel, Reitor da Universidade de
Coimbra e Bispo de Miranda, falecido em 1699.
Tecto da capela de Nossa Senhora da
Penha de França, na Vista-Alegre.
E porquê, então, aqui, na
Vista-Alegre?
O aludido prelado passava grandes
temporadas na sua, já referida, Quinta da Ermida a pouco mais de
dois quilómetros deste local.
Ali, na paz campesina de uma
pequena aldeia escondeu dos olhos ávidos dos seus contemporâneos,
como um tesouro, a sua filha Teodora que confiava aos cuidados
discretos de um fâmulo quando os seus deveres o obrigavam a
abandonar o seu exílio voluntário. E é precisamente no regresso de
uma das suas viagens a Miranda que a morte o surpreende
trazendo-o, então definitivamente, para o repouso na sua Capela da
Nossa Senhora da Penha de França que – quem sabe? – seria
destinada a panteão do Antistete e de sua filha se não, também, da
mãe de sua filha.
Como se disse, é no interior da
Capela que residem os motivos de maior interesse do templozinho da
Vista-Alegre, consubstanciados nas pinturas a fresco dos tetos da
nave e da sacristia (onde também existem pinturas nas paredes),
nos azulejos que revestem as paredes
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Capela até meio da sua altura e, sobretudo, no chamado "Túmulo do
Bispo».
A pintura do tecto da nave
representa a "Árvore de Jessé» e mantém-se, ainda, em muito bom
estado de conservação subtraída a parte que cobre o coro e onde a
humidade fez estragos bem patentes que se estendem às pinturas
parietais. Trata-se, como é evidente, de uma representação,
tradicional desde o século XII, da árvore genealógica de Jesus
Cristo a partir do patriarca Jessé que é representado deitado, com
o busto ligeiramente erguido e apoiado sobre o cotovelo direito;
do seu ventre eleva-se um tronco que se divide e subdivide em
ramos que sustentam os antepassados de Cristo, terminando numa
corola que serve de trono à Virgem que é representada com o menino
ao colo. Do mesmo pincel são, concerteza, as pinturas murais da
sacristia, quer as do tecto de berço em que o centro é ocupado
pelo brasão do Bispo no meio de uma profusão de grotescos
que fazem lembrar, com muita nitidez, as pinturas a fresco da Sala
de Exame privado da Universidade de Coimbra, o que inculca a ideia
de o autor ser o mesmo, ideia, aliás, corroborada pela
circunstância do reitorado daquele estabelecimento de ensino por
parte de D. Manuel de Moura Manuel; quer nas paredes deste
departamento onde também são de referir as pinturas que as decoram
à direita de quem entra, e por de cima da caixa dos frontais, uma
representação um tanto enigmática onde avulta uma figura de mulher
com seu quê de pagão, servindo um simbolismo que não está bem
explicado. Em frente, e sobre o arcaz dos paramentos, duas outras
pinturas murais, uma representando uma «Anunciação» e a outra uma
«Sagrada Família».
Notáveis, também, os painéis de
azulejos do século XVIII representando cenas bíblicas e
constituindo um alto silhar que atinge a meia altura das paredes.
De registar, ainda, alguns belos mármores de Itália e a talha
dourada de excelente qualidade.
Mas, e sobretudo, é notabilíssimo
o túmulo do Bispo, esculpido em pedra de Portunhos e expressivo do
cinzel erudito de um excelente escultor.
Recordando, à primeira vista, quer
pela pompa, quer pela lavra especiosa, os mausoléus do
Renascimento, a obra passou, por muito tempo, como sendo de origem
italiana, até que, Virgílio Correia com base em provas documentais
e já depois de 1940, identificou, sem sombra de contestação, a sua
origem francesa.
Hoje não existem dúvidas de que a
obra é de CIaude de Laprade que, aliás, trabalhou, também, e
abundantemente, nos reformados Paços da Universidade de Coimbra.
Como aparece o Artista francês a
trabalhar na Capela da Vista-Alegre? Há a tradição de que, durante
uma das suas permanências na sua Quinta da Ermida, o Bispo, D.
Manuel de Moura Manuel, foi procurado por Laprade, em grandes
dificuldades económicas por falta de trabalho, oferecendo-lhe os
cinzéis para lhe
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/ esculpir o túmulo. Sucedeu, porém, que o escultor tendo
encontrado o prelado de mau humor recebeu uma resposta desabrida:
– «Faça o diabo e deixe-me em
paz...»
Tecto da sacristia da capela de Nossa
Senhora da Penha de França, na Vista-Alegre.
Laprade, longe de desanimar com a
resposta que pretendia ser afastativa, tomou a palavra à letra e
esculpiu, na verdade, uma estatueta do «Mefistófeles», que,
passados dias, foi mostrar a D. Manuel de Moura Manuel. E com
tanta felicidade o fez que a prova que apresentou diluiu todas as
dúvidas que a sua penúria de vagabundo tinham acordado no
solitário Bispo. E teria, assim, conseguido a encomenda do
Mausoléu que hoje podemos admirar.
Mera tradição anedótica que correu
e corre até, por escrito, não é verosímil que a origem do túmulo
se encontre num exame que tivesse por tema a interpretação do
diabo e, antes, é de crer que o conhecimento do escultor tenha
vindo ao Prelado através dos contactos que com ele teria na
Universidade onde era Reitor e onde o Artista trabalhou em obras
de restauro, enriquecimento e valorização. É lícito supor que a
presença de Laprade na Vista-Alegre tenha sido originada nesta
circunstância, até, porque, também as pinturas a fresco,
testemunham, com suficientes razões de semelhança, a presença dos
pincéis que trabalharam nos paços das Escolas.
Parece-me pois legítimo
estabelecer um nexo relacional entre o Reitorado de D. Manuel de
Moura Manuel, as obras da Universidade, e a presença dos mesmos
Artistas num e noutro local, sejam quais forem as precauções que
se queiram tomar contra o perigo abissal das conjecturas.
E, de qualquer modo, e resumindo,
o que interessa é poder sem quaisquer hesitações legítimas,
afirmar a autoria de Laprade para o magnificente Mausoléu que é –
sem sombra de dúvidas – o núcleo verdadeiramente aglutinante dos
que ultrapassam a soleira do portal da Capela de Nossa Senhora da
Penha de França.
O Túmulo situa-se numa espécie de
nicho aberto na parede, junto da Capelão-Mor e do lado da Epístola
e, embora de composição muito procurada e literária, é, como obra
de escultura um excelente exemplar dos fins do século XVII. Como
já se disse não pode deixar de lembrar, ao primeiro golpe de
vista, o especioso da escultura tumular renascentista, quer pela
sumptuosidade tão do gosto dos príncipes do «Quatrocento», quer
pela técnica perfeitíssima, embora rebuscada.
Representa o Prelado em vestes de
cerimonial, de mitra na cabeça, ligeiramente apoiado sobre o
antebraço direito, de olhos abertos como que a contemplar a figura
do Tempo que avulta no fundo, de expressão dura, boca entreaberta
e longas barbas, empunhando a Gadanha da Morte. O damasco da
casula, as rendas da Alva, o sagrado anel, tudo se encontra
rigorosamente apontado e tratado e difícil se torna descer a
pormenores descritivos sem alongar demasiadamente estas notas.
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No arco que remata o nicho tumular
e como que a colocar perante os olhos do Bispo moribundo a
precariedade da vida humana, anotam-se seis figuras representando
caveiras com os crânios cobertos por uma mitra episcopal, um
chapéu cardinalício, uma tiara papal, um capacete de guerreiro,
uma coroa de rei e uma coroa de imperador. E a rematar a
composição, uma figura da Morte encimada pelo «Memento Homo...»
que adverte os que são dados a esquecer-se de que as grandezas do
Mundo cessam naquela hora em que a pedra do túmulo os inuma na
terra-mãe...
No caso presente é-se chocado pela
antinomia patente entre tal profusão de motivos a demonstrar a
fugacidade da vida humana e a pompa tumular tão inversa da
dialéctica que o cinzel do escultor deixou escrita no calcário
disponível.
Em frente desta sumptuosa
composição pode ler-se uma extensa e laudatória lápide
perfeitamente de acordo com o faustoso do Túmulo e tão distante do
discreto «famulus Dei» que assinalava as tumulações das
Catacumbas.
Sobre a porta da sacristia vê-se,
ainda, um outro sarcófago constituído por uma arqueta tumular onde
se pode ver uma figura de mulher de amplos paramentos, segurando
um medalhão com uma figura de criança. Não se sabe ao certo de
quem são os restos mortais ali guardados, mas supõe-se que se
trata da jazida da já referida Teodora, filha de D. Manuel de
Moura Manuel e que teria constituído o motivo das suas largas
temporadas na Quinta do Paço da Ermida, onde a escondia como um
tesouro entregue ao cuidados de um fâmulo.
Merecia a Capela da Vista-Alegre
que sobre ela se escrevesse um estudo monográfico que o
condicionalismo em que se elaborou esta nota descritiva não pode
comportar e que implicaria atenção minuciosa e trabalho de
investigação a que o autor não pode lançar mão, não apenas por
falta de tempo, mas também, e principalmente, por falta de fôlego.
Em todo o caso, e para além das insuficiências lealmente
confessadas, noutra altura voltarei ao assunto mais repousadamente
se encontrar disponibilidades de tempo para o fazer.
Por agora limitei-me a abordar
tangencialmente um tema que me solicita, com a finalidade, apenas,
de chamar a atenção para um templozinho, onde há motivos de
interesse para amadores e estudiosos e que, lamentavelmente, ainda
não encontrou quem, profundamente, se lançasse sobre ele.
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Túmulo do Bispo |
Se com esta simples abordagem
servir de estimulante a quem disponha de ferramentas e de gosto
para realizar obra de mérito, dar-me-ei por satisfeito e
compensado passando, gostosamente, de autor sumário a leitor
interessado.
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NOTA - A legenda está
incorrecta, uma vez que se trata do tecto do corpo principal da
capela. - (HJCO)