|
|
|
|
|
|
Ara encontrada em 1912, junto da
muralha da parte de Leste do Castelo da Feira (gravura cedida
pelo «Arquivo do Distrito de Aveiro». |
|
Ara encontrada em
1917, no recheio do cubelo do Sudoeste do Castelo da Feira
(gravura cedida pelo «Arquivo do Distrito de Aveiro». |
|
Existem no castelo de S. Nicolau, de Vila da Feira, à esquerda das
portas principais da torre de menagem, duas aras votivas romanas, já
por diversas vezes estudadas, mas cuja importância excepcional, no
contexto da religião pré-romana peninsular, nos parece não ter sido
ainda suficientemente acentuada.
Normalmente consideradas como
ex-votos a duas divindades diferentes, elas são, quanto a nós,
dedicadas a um só númem e contribuem para esclarecer alguns pontos
até agora obscuros.
A PRIMEIRA ARA
Da primeira inscrição foi enviado um
decalque pelo Dr. Aguiar Cardoso, de Vila da Feira, a Leite de
Vasconcelos, que a publicou pela primeira vez (in «Religiões da
Lusitânia», vol. III, Lisboa, 1913, pp. 612-613).
As letras, em bom estado, permitem
fácil leitura:
Interpretação: DEO / TVERAEO /
VOLENTI / ARClVS / EPEICI (filius) B/RACARVS / S(acrum) F(ecit).
Tradução: «Ao benévolo deus
Tueraeus consagrou este monumento Arcio, filho de Epeico,
Brácaro de nação».
Todos os autores que se debruçaram,
posteriormente, sobre esta epígrafe, limitaram-se, na prática, a
repetir Leite de Vasconcelos.
A SEGUNDA ARA
A segunda inscrição, que também se
lê distintamente, foi igualmente interpretada por Leite de
Vasconcelos. Esta é, pelo menos, a indicação que nos dá Fernando de
Tavares e Távora, no livrinho O Castelo da Feira, Porto,
1917, pp. 43-44, onde vem a primeira referência a esta epígrafe:
«Neste ano de 1917, outra inscrição
apareceu, em pedra encontrada no recheio do cubelo do sudoeste (na
torre de menagem), que se anda a reconstruir.
/ 60 /
Mais outra vez consultado, o Sr.
Leite de Vasconcelos forneceu dela a seguinte leitura:
«Handevelugo Toiraeco L(ucios)
Latrius Blaesus v(otum) I(ibens) s(olvit»>. e a seguinte tradução:
«Lúcio Latrio Bleso cumpriu de
boamente o voto que fizera a(o deus) Bandevelugus Toiraecus».
*
* *
Verificamos, portanto, que uma
inscrição é dedicada Deo Tueraeo, ou seja, ao deus
Tueraeus, cujo nome aparece no caso dativo, como é usual em
inscrições deste tipo; a outra foi gravada em consequência duma
promessa feita Bande Velugo Toiraeco, ou seja, a uma
divindade de nome Banda Velugus Toiraecus (supomos ser
Banda o nominativo correspondente ao dativo «bárbaro» em –e).
Na primeira, há o substantivo
deus, indicação não rara na epigrafia votiva peninsular e
colocada, aqui, porventura, para desfazer qualquer dúvida acerca do
significado de Tueraeus, certamente uma expressão adjectival,
a que se junta volens, com o presumível sentido de
benévolo, atributo que quadra bem a uma divindade protectora.
Na segunda, tal indicação não surge:
cremos que pelo facto de o deus Banda, como também diremos
mais adiante, ser já muito conhecido; mas, em vez de uma expressão
adjectival, temas duas – Velugus e Toiraecus. Sobre
Velugus, vacábulo que aparece aqui pela primeira vez, nada se
sabe por enquanto; mas a palavra Toiraecus, cuja significação
também se ignora, pode, pela sua semelhança fonética com Tueraeus,
ser no fundo, o mesmo epíteto grafado diferentemente.
Será possível tal identificação? O
deus Tueraeus e Banda Velugus Toiraecus serão o mesmo
númen? Tueraeus e Toiraecus designarão, nesse caso,
alguma característica locaI do deus Banda?
É o que vamos ver.
OS EPÍTETOS FUERAEUS E TOIRAECUS
Ambas as lápides já vieram a lume,
por duas vezes, no «Arquivo do Distrito de Aveiro»:
– ARLINDO DE SOUSA, no artigo «Langóbriga»,
incluída no vol. VIII, de 1942, fasc. 31, pp. 214-215, transcreve
Leite de Vasconcelos:
– DULCE ALVES SOUTO, no artigo
Subsídios para uma Carta Arqueológica do Distrito de Aveiro no
Período de Romanização, incluído no voI. XXIV, de 1958,
refere-se (pág. 250) à primeira era e, na pág. 258, à segunda.
Mas é o mesmo Arlindo de Sousa, no
erudito apontamento intitulado Vila da Feira Lusitano-Romana,
que publicou no Boletim da Comissão de Etnografia e História (Junta
da Província do Douro Litoral), «Douro-Litoral», Porto, 2.ª série,
vol. VIII, 1947, pp. 52-59, que levanta uma hipótese, que se nos
afigura do maior alcance: Diz Arlindo de Sousa:
«E estará este povo (Turduli
Veteres) ligado por parentesco aos Turoduri, mencionados
por Ptolomeu, que Barros Sibela coloca no Freixo de Numão (Antiguedades,
p. 213), lugar da lápide consagrada aos
Lares Turolici, cuja
parte inicial Turo – parece estar ligada a Turo-dori
(...)? A primeira parte dos nomes Tueraeus e Toiraecus,
isto é, Tuer- e Toir- podem ser formas divergentes de
Turo-. É possível que Toiraecus seja um epíteto tópico
de Bandevelugus, e Tueraeus o epíteto tópico empregado
em vez do verdadeiro nome do deus» (p. 58).
Nenhum dos investigadores que,
depois de Sousa, falaram desta lápide atentou devidamente na sua
frase: «É possível que Toiraecus seja um epíteto tópico de
/ 61 /
Bandevelugus, e Tueraeus o epíteto tópico empregado em
vez do verdadeiro nome do deus».
Compete, evidentemente, à
Linguística justificar – ou repudiar – a asserção. A nós parece-nos,
contudo, muito razoável e queremos desde já acentuar que, no domínio
da epigrafia romana peninsular, o facto não é único:
1.º) Há nomes de divindades com
grafias diferentes. Por exemplo:
– Arantius, Arentius;
– Adaecina, Adaegina, Ataecina,
Ataegina;
– Turubricensis, Turubrigensis,
Turibrigensis (epíteto de Atégina);
– Endovellicus, Endovelicus,
Endovollicus, Endovolicus, Indovollicus, Enobolicus.
2.º) Também não é raro os deuses
serem nomeados apenas pelos seus epítetos. Vemo-lo, por exemplo,
numa lápide do Museu de Évora, em que a deusa Atégina é designada
sob a invocação dea sancta turibricensis, ‘santa deusa
turibricense’ (cfr. Leite de Vasconcelos, Religiões da Lusitânia,
vol. lI, p. 153). Vemo-lo igualmente, com toda a probabilidade, numa
inscrição de S. Tirso em que o deus Cosus é chamado
unicamente Neneoecus, seu epíteto (cfr., a este propósito,
Fermín Bousa Brey, A Deidade Galaica Cusuneneoeco, separata
de «O Concelho de S. Tirso – Boletim Cultural», vol. V, n.º 2,
Porto, 1957).
Tratar-se-á, efectivamente, da mesma
divindade?
Cremos bem que sim, pois sendo
Tueraeus e Toiraecus duas formas diversas do mesmo nome,
certamente designarão a mesma divindade.
E, se os argumentos anteriores não
bastam para o demonstrar, perguntamos: seria verosímil que duas
divindades diferentes, de nome tão parecido, fossem cultuadas no
mesmo lugar? Porque, dado que ambas as lápides foram encontradas no
castelo, logicamente se conclui que aí se veneraram as divindades a
que eram dedicadas, as quais aí teriam, quiçá, o seu templo, como,
de resto, o sugere Fernando Tavares e Távora (orc., p. 42).
A resposta a esta pergunta pode ser
dada, por exemplo, pelo insigne arqueólogo Félix Alves Pereira. Ao
estudar as variantes Arantius-Arentius, atrás referidas, põe
justamente o problema de saber se se trata ou não da mesma
divindade, e diz peremptoriamente: «Seria inverosímil que na mesma
região se tratasse de duas divindades diversas; deve afastar-se essa
hipótese» (in «Revista de Arqueologia», Lisboa, vol. I, 1932, p.
19).
O DEUS BANDA
Outro argumento milita ainda a favor
da identificação Toiraecus-Tueraeus.
Várias inscrições se descobriram na
Península, dedicadas a uma divindade cujo nome começa pelo elemento
Band-, com a terminação de dativo mais frequente em –e (Bande)
ou –i (Bandi), elemento que aparece normalmente separado das
palavras seguintes, como já tivemos ocasião de salientar em
«Divindades Indígenas sob o Domínio Romano em Portugal», vol. I, pp.
57-84 (tese de licenciatura, que apresentámos à Faculdade de Letras
de Lisboa, em 1969). Concluímos, nesse mesmo estudo, poder tratar-se
«duma única divindade com epítetos variáveis de lugar para lugar, e
formas linguísticas diferenciadas que podem corresponder a variantes
dialectais ou à diversidade de estádios evolutivos da linguagem»
(pág. 82), que provavelmente teria o significado de «senhor» (pp.
82-83).
Toirecus
e Tueraeus seriam, pois, o mesmo epíteto do deus Banda,
uma invocação própria da região de Vila da Feira, com duas grafias
diferentes, mas análogas. Talvez acontecesse, então, o que sucede
hoje com o culto à Virgem, venerada aqui sob a invocação de N.ª Sr.ª
da Rocha, ali N.ª Sr.ª das Mercês, acolá N.ª Sr.ª do Monte, sendo
sempre a mesma Virgem.
Dois exemplos confirmam este ponto.
Um, refere-se precisamente à mesma divindade, Banda, e foi
devidamente estudado pelo Sr. D. Fernando de Almeida, conceituado
arqueólogo e nosso estimado mestre (in «Revista da Faculdade de
Letras de Lisboa», III série, n.º 9, Lisboa, 1965, pp. 19-31):
Banda surge com o mesmo epíteto – Isbbraia – em duas
inscrições de Bemposta, Penamacor. O segundo exemplo relaciona-se
com Arentius, divindade acima citada: encontraram-se em Cória
(Espanha) duas aras onde o nome do deus traz também o mesmo epíteto,
Amrunaecus (cfr. a este respeito, a revista da Faculdade de
Filosofia e Letras da Universidade de Salamanca, «Zephyrus», vol.
XVII, 1966, pp. 121-130).
CONCLUSÃO
Cremos, pois, ser fácil deduzir quão
importantes são as duas aras de Vila da Feira, porquanto nos ajudam
a compreender melhor as características tutelares do deus «Banda» e,
dum modo geral, a complicada problemática que envolve este campo da
investigação histórica.
Como os epítetos, segundo se supõe,
devem estar relacionados com o povo (ou região), em que a divindade
era cultuada, o ulterior progresso dos estudos linguísticos ou o
aparecimento de mais dados epigráfico-arqueológicos certamente nos
trarão nova luz sobre a história antiga desta risonha vila, que se
orgulha de possuir um dos mais elegantes castelos de Portugal.
Cascais, Julho de 1970. |