Eu estou a vê-lo. Tenho-o
guardado na retina desde a infância – desde a infância que, como
coisa nenhuma, sabe guardar retratos pelos tempos fora,
envolvê-los em névoa de sonho e cercá-los de um nimbo de ternura
humana. Mas, de vê-lo a exprimi-lo, de tê-lo a comunicá-lo, vai
uma distância que a minha pobre pena não vence e que a minha
palavra não consegue percorrer antes da laringe me ficar
afónica.
A bruma da distância, é certa,
vincou-lhe mais as sombras, marcou-lhe mais os traços, deixou-o
mais descarnado de fundos diluentes, com as proeminências e os
ângulos mais pontiagudos. A visão da adolescência enriqueceu-lhe
a figura tisnada e rude de um bafo quente de humanidade e de uma
legenda brônzea de heroísmo. Mas foi tal o respeito que a sua
figura me transmitiu que, agora, até tenha medo de lhe tocar
para a trazer para aqui. |
O Arrais Ançã. Desenho de João
Carlos. |
Eu já tenho visto a sua máscara
sulcada de rugas de severidade; eu já a encontrei não sei aonde, mas
talvez nas tábuas de Nuno Gonçalves, de entre aqueles grupos de
portugueses, sérios, graves e firmes.
Conheci-o já na ruína. Mas, como um
castelo que tivesse desabado, os escombros ainda metiam respeito.
Passava horas e horas a espreitar a
réstia do sol que lhe desentorpecia as juntas dormitando amiúde, num
sono de ausência, sem deixar cair da firmeza da sua boca o cachimbo
que lhe corroborava a fisionomia. Na cabeça um barrete negro,
enterrado até aos supracílios, ensombrava-lhe ligeiramente o olhar.
Um cheiro intenso e acre a tabaco se evolava dele e as palavras
saíam-lhe pausadas, sentenciosas e graves... Sobre os ombros, um
gabão negro envolvia-o de austeridade quaresmal e monástica. Usava
uma linguagem sumária e rica de expressão que lhe saía entremeada
com baforadas de fumo forte com o cheira da pólvora. Contava coisas
do Mar... e era um livro de memórias a desfolhar-se nas palavras
entrecortadas e esquemáticas, dum discurso sincopado.
O velho Arrais vivia do passado como
quem vive dum sonho, e nutria dele as horas longas da sua velhice, a
passar, conta por canta, o rosário infinito dos tempos passados na
faina da pesca.
Tinha metalizado o brilho dos olhos
a perscrutar na lomba das vagas a traição dos naufrágios e a sondar,
no céu e nas estrelas, a fúria das tormentas.
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Tinha espessado as sobrancelhas a
olhar carrancudo para a hostilidade das ondas e a investir com o
silvo serpentino do vento. E o rosto povoara-se-lhe todo de uma
grafia complicada, que contava uma epopeia de luta com as negras
águas do mar.
A sua voz tinha asperezas arenosas,
arranjadas a dar ordens por cima do vozear da companha e do
estrépito da água a bater no costado do barco em crescente. E, ainda
quando o conheci, as suas palavras rasposas e ensurdecidas tinham o
tom do comando categórico.
Já lá vão anos em bardo sobre o dia
em que a Morte o venceu e o fez cair na cova do cemitério, mas o
relevo da sua máscara ainda se não achatou na minha retentiva
visual, que lhe conserva as cores solenes sem as deixar esmaecer; e
nem as suas falas graves, impregnadas de brisa salgada, se me
esvaíram do ouvido.
Passou pelas ruas negras e tortuosas
da Vida sem esboçar sorrisos nem amenizar o perfil severo, como se
todos os seus actos tivessem um conteúdo de seriedade espessa; e a
mesma ruga da testa presidia ao acto de deglutir um copo de
aguardente e ao de arrancar pelos cabelos uma vida ao cachão que ia
abrir uma sepultura.
A sua presença tinha não sei quê de
tutelar como uma velho carvalho centenário que dá sombra a quem dela
se aproxima, porque o náufrago agarrado pela sua mão era como se
estivesse preso a uma âncora.
Havia nele uma santidade específica
que não cabia em nichos – a não ser que o nicho fosse uma cratera
hiante – e que não tinha um vestígio que fosse de doçura
superficial. Era uma santidade rígida e maciça, que o levava a
arriscar a vida para salvar um irmão-homem com o ar natural com que
arrancaria um peixe maior do seio de um cardume e sem colocar à roda
do episódio nenhuma coroa de palavras que ultrapassassem o sentido
pragmático, ou qualquer gesto que emoldurasse a façanha de legenda.
Quis dar um retrato, e saiu-me um
esboceto de perfis esbatidos e de expressão disártrica; quis
investir com o cerne de um tronco, e saiu-me o miolo de sabugueiro;
e, em vez de uma figura forte e rica, saiu-me uma fotografia de
fotógrafo de província, anemiado, pelo tempo, num velho álbum de
recordações. |