Barca Adília,
navio português, mil cento e vinte toneladas, números redondos,
dispondo de quatro embarcações miúdas, sem motor auxiliar, dezassete
homens de equipagem, carregado de aduela.
Ano do Senhor de 1909: Derrota
que, com favor de Deus, pretendo fazer este porto de Nova-Orleans
para Lisboa, etc....
No diário de bordo, em certa página,
menciona-se uma avaria de particular gravidade. A redacção da
ocorrência é acompanhada de um singular e rápido desabafo, como de
quem já vai rilhado de contratempos: «ainda faltava mais esta!»
Aparte as anotações incidentais, as
páginas náuticas, daí por diante, não se lhe referem mais nem dão
sinal de qualquer alarme. O diário segue como de costume.
Mas a viagem foi muita dura e
excepcionalmente longa: sessenta e sete dias.
De volta a casa, um dos praticantes,
novato, contou o que não se escreveu, nem verdade seja, é de regra
escrever-se. Quem quer não escolhe aquela vida. Mas foi fácil
concluir que a travessia esteve feia.
Cá em terra não faltavam motivos de
séria apreensão nas famílias. Em toda a vila a demora das notícias
causava já um negrume que se adensava nas ruas. Crescia nos grupos
um cochichar que se ouvia alto. A povoação, toda a gente, andava
inquieta.
Quarenta e cinco, mesmo cinquenta
dias, havia casos. Mas mais de dois meses para um navio daquela
arqueação e nesta época de ciclones...
Sabia-se ao certo a data da saída 31
de Agosto. Estava-se na primeira semana de Novembro, e nada.
A inquietação trespassava os
olhares, as famílias dos tripulantes mal saíam à rua, nomeavam-se as
pessoas, relembravam-se os seus postos na equipagem: «casado com
aquela», «pai de fulano», «tantas meninas!...», «disseram-me», «se
calhar», «vinha ontem no jornal», «os patrões telegrafaram», «é de
estarrecer!...», «coitadinhos», «nem é bom falar...». «O Senhor se
lembre deles!!!!...».
Aos quinze dias de viagem o vento
refresca muito, mar de vagalhões, todo o pano largo; quarenta e oito
horas depois, com mar cavado e vento tempestuoso, o capitão manda
pôr de capa, e capa rigorosa, pela noite e toda o dia seguinte que o
tempo cresceu; só pela outra madrugada se largaram o traquete,
bujarrona e mezena. Às dezoito horas do quarto dia de tormenta vento
muito rijo, horizontes escuros, correndo à popa só com as gáveas –
dá-se conta da singular avaria: leme rachado no veio e muito lasso
em baixo!!!
Situação séria num veleiro já
cansado, demandando 19,15 pés à popa e 18 1/4 à proa, debaixo de mau
tempo, no meio do mar, a 23-28,5 Lat. N. e 38-47,5 Long. W.
Com vendaval em cheio, impossível
era um concerto capaz. Improvisa-se contudo, arriscadamente, uma
precária segurança que permite alguma manobra, bem que lenta e muito
difícil.
Perto da noite, ordem para orçar e
largar mais pano: traquete, bujarronas, gáveas altas e joanete.
A viagem da barca estava seriamente
comprometida, o navio bastante inferiorizado nas suas capacidades de
governo, os aproveitamentos morosos, acrescidos os riscos... e
tantas, tantas milhas ainda para correr...
E agora? E então?
Avaliadas as possibilidades de
manobra, ponderadas as distâncias e indicados os prováveis vendavais
nesta época do ano, ouvido o senhor piloto, então, o capitão do
navio convoca para a câmara, naquela noite, a sua tripulação. Já
todos sabem do que se
/ 30 / trata e nenhum ignora o perigo:
o leme não merece confiança, está espiado, e se se aperta muito com
ele racha mais e perde-se de vez...
Pergunta-se: retroceder ou seguir?
Arribar é menos sujeito e está-se mais perto; continuar será mais
duro e há muito mar para correr. Arribar é voltar para a América,
seguir é buscar Lisboa e a nossa casa. Retroceder é um desgosto e
uma grave despesa para o armador; se, com Deus, chegarmos a
Portugal, será a alegria e a compensação para todos. Mas a viagem
vai ser longa, muito mais árdua e insegura, trabalhos dobrados... e,
de certeza, com a demora e sem notícias, aflições para as nossas
famílias. Comunicações rápidas, à distância, nenhumas; só aquelas
que as bandeiras, na adriça consentem.
Molhados dos vagalhões e humedecidos
das garroas, derreados das ininterruptas horas de constante
vigilância e urgente esforço, silenciosos porque inquietos, de pé e
descobertos, sueste e botas altas, os marinheiros escutam. O tempo
não amainou de vez: vento de sudoeste, rumo noroeste três quartas de
este, sarria escura...
Com o balanço, o candeeiro da
câmara, apesar de suspenso à cardam e a meio, oscila largo e as
sombras dos homens atropelam-se nas portas dos camarotes.
Sobre a mesa da câmara, a carta do
largo Atlântico pontuada de números, riscada de rumos; o boné do
capitão em cima da caixa do sextante; régua e lápis sobre a tábua de
logaritmos; o binóculo junto ao diário; o código de sinais aberto em
certa página e as bandeiras do mariato, escolhidas já, ali à mão.
Estão todos. Todos menos o
praticante que se aleijou no peito, empastado por uma vaga de
encontro à escotilha; menos o cozinheiro que não sai lá do seu
buraco, atrás do gunicho; e ficaram no tombadilho os dois que estão
de quarto, agarrados à roda do governo, rentes à gaiúta.
Um balanço mais largo e brusco, uma
puxadela mais dura na mastreação, uma surriada forte pela escada
abaixo e logo o piloto, sôfrego, dá um salto lá acima. Não foi nada:
o mar varreu o convés, mas está tudo peado; os homens seguram-se; a
sonda é que acusa umas tantas polegadas de água a mais nas cavernas;
a vaga levou metade da borda-falsa de estibordo, a meia nau. Não foi
nada.
O mocito da câmara, novato, lá
atrás, espreita, tímido, à porta dum camarote, meio dentro meio
fora.
O capitão, quarenta e dois anos bem
endurecidos, (correra a escala toda: moço, praticante, piloto,
capitão aos vinte e cinco), debruçado sobre a carta, revê marcações.
Contra o costume não fez a barba há quatro ou cinco dias. Mas está
sereno. Se tranquilo ou não é lá com ele. Uma olhadela ao barómetro
que teima em não subir e outra ao cronómetro; um apontamento no
mapa. Tudo muito natural, muito como é.
– Então, rapazes, vocês que dizem?
Um pequeno silêncio e logo daquela
meia lua de marinheiros preocupados, sem que ninguém lhe
encomendasse o recado, mas sentindo-se que a sua palavra, continha,
com assentimento, a palavra todos, surde e alteia-se, breve e
incisiva a voz do contramestre.
(O contramestre, sessenta anos,
vincados na face.
O homem da prática, o da marinharia,
das longas e largas singraduras e dos portos de todo o mundo; o
homem do convés e dos mastaréus e dos panos e das amarras, do paiol,
dos pertences e do porão, do bom e do mau tempo, misturado à
intimidade da popa e chefiando o rancho lá na proa, conselheiro dos
oficiais e executor seguro das suas ordens, sempre o primeiro e o
mais exposto nas safa-rascadas; silencioso porque experimentado,
criança como os adultos conscientes, respeitador como um sábio,
sincero e de coração limpo, simples e confiante como a própria
disciplina, não raro rabugento como a própria vida, rude no modo de
dizer e aberto na expressão do olhar; mão firme para o remo numa
embarcação, mão rija para segurar a retenida ou dar uma volta na
escota, mão tente para alar a marreta, pear o molinete ou emanilhar
a corrente, mão adestrada para uns pontos numa vela rota e mão
trémula, canhestra, ao rascunhar o nome num papel de notário; o
homem que não tem na memória quantas vezes passou aquele mar... pai
de outros que andam embarcados e avô de muitos que já falam em ir...
Marinheiro desde sempre. Conhecera o
seu capitão ainda menino, de calções, nas ruelas da vila. Anos
depois, embarcara com ele, jovem praticante saído da aura, no
patacho «Alvor», da praça de Setúbal. Naufragaram juntos nas costas
da Irlanda. Já piloto, encontraram-se no lugre «Flor da Rocha», o
que desarvorou à entrada de Leixões. Quando lhe deram o governo
desta barca, há cinco anos, o capitão mandou-o chamar, andava então
de mestre num iate da costa.
Eram vizinhos lá na terra. As
casitas, herdadas dos pais, parede com parede, davam para o mesmo
larguito soalheiro ao fundo do beco. A avó de um e a mãe de outro
eram parentes chegadas, segundas primas...).
Olhando o seu chefe, o contramestre,
sem mais conversas, disse esta curta e alta, heróica e definitiva
fala: «O senhor capitão tem família como a gente; o que vocemecê
fizer está bem feito!»
E pronto, senhores, ali se lavrou,
naquela fala, espontânea e decisiva como a própria sinceridade, a
mais funda escritura de confiança total e de responsabilidade sem
vírgulas: Decida; o que escolher é tanto para si como para nós, para
a sua e nossas mulheres,
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para os seus e nossos filhos, escolha que nós todos estamos nas suas
mãos; diga e ordene, e pronto, mãos à obra. Seja o que Deus quiser.
Voz alguma, algum dia, disse melhor
a um chefe? Voz alguma, no perigo, aliou melhor à obediência sem
reticências a responsabilidade sem diminuitivos?
«Diga».
E o capitão, sem tirar os olhos do
mapa, depois de um curto silêncio, consciencializando o momento, sem
alterações na voz, nem gestos bicudos, ergueu-se, erguendo em si
mesmo o navio inteiro:
«Nesse caso ala para diante». E
pegou no boné! «Podem ir para cima».
Sem uma palavra a mais desfez-se a
sessão. Cada um a seu posto.
O mocito da câmara, estabanado,
pulou pelas escadas acima, e largou a correr para a cozinha; de
caminho, junto ao mastro grande, escorregou numa lona, bateu com a
cabeça num bote e esmurrou o nariz.
O mar varria o convés.
A 27 de Setembro lê-se nas
ocorrências de bordo:
«Navegamos como acima mostra o
diário, com vento fresco até às 6 horas e depois muito fresco que às
14 horas metemos de capa marta só com as gáveas baixas e velas do
estae da proa; mar agitado do N. W. Atmosfera e horizontes com
fortes trovoadas e chuva e vento. Às 18 horas abonançou mais, que
largamos o traquete para assim ver se o navio aproava melhor ao mar
e às 21 horas largamos o belacho e gáveas altas. Avistamos uma barca
pelo nosso estibordo, puxando para o norte. Sem mais».
Páginas, páginas: vinte e nove dias,
quarenta e cinco dias (vento sudoeste fresco, horizontes claros,
trovoada fria, fogos de San Telmo nos galopes dos mastros e nos laes
das vergas), cinquenta e nove dias (vento noroeste, partiram-se os
dois bandais do joanete da proa), sessenta e seis horas (vento
bonançoso, mar chão, rumo sudoeste) – e «às sete horas avistou-se
pela proa o clarão do farol da Rocha, que às 24 horas se via
perfeitamente; de manhã vimos terra».
Nessa madrugada, mão amiga e
inquieta, redige, na capital, um telegrama: Adília à vista.
E quando, horas depois, o lacónico
texto é Iido e soluçado numa modesta saleta de uma casa térrea da
vila ansiosa, ali se repete, com outro tom, a cena da câmara: são
então as companheiras, são as filhas, são as mães que rodeiam a
esposa do chefe, de quem esperavam, dia por dia, encafuadas em sua
dor, ou a voz do viver ou a notícia do luto para todo o sempre. Mas
agora a fala é a fala de todas à uma, agora é o alvoroço, são os
incontidos choros de alegria, são as correrias: «A que horas é o
comboio ?»; «corre, meu filho, vai dizer à tua avó»; «levo o meu
menino, levo, pois então? Chegamos a Lisboa às seis da manhã,
vocemecê não vem? Tenho a roupinha toda pronta!» «O meu sogro até
vai ficar tolinho, já não esperava nada! Minha Nossa Senhora».
E começaram a chegar os parentes
açodados e as amigas mais próximas. Chegavam e largavam, que era
quase meio-dia: «que tenho o comerzinho ao lume»; «nem tive tempo de
mudar de blusa»; «olha, logo à tarde venho cá com mais vagar»; até o
senhor Capitão Pereira, coitadinho, que mal pode andar e mora lá tão
longe, para Cimo de Vila, até esse veio logo com uma lágrima ao
canto do olho.
O negrume das ruas esvaiu-se. Já se
falava alto por todos os cantos. Na rua Direita, por Espinheiro, na
Fontoura, era uma corriola... Na praça, os homens do ofício faziam
conjecturas técnicas. O sino da matriz tinha outro sonido. Mas,
nesse domingo, à missa do dia, ninguém prestou atenção ao avisos do
senhor prior. O Senhor Jesus dos Navegantes, em seu altar, esse sim,
pela tarde fora, acolheu as mais quentes lágrimas do mundo...
O telegrama do capitão, entregue à
última hora, antes do correio fechar, dizia somente: «Chegámos bem».
E era quanto bastava.
Anos passados, encontrei,
casualmente, o contramestre. Preso do reumático, sentado à soleira
da sua porta de fora, alegrava-se numa réstia de sol; entretinha-se
a cortar uma casqueira, talhando um barco para os netos que
patinhavam numa poça de chuva.
Saudei-o e não me tive que não lhe
perguntasse: «fora realmente assim?»
Franziu um pouco a testa. Sentiu-se
que foi ao fundo da vida pescar o pequeno incidente. Tinha havido
tantos e muito mais sérios! «Que sim, mas que tinha lá isso? Olhe,
tem tido noticias do seu pai ?»
E mais nada.
Ao homem que cumpre, que cumpre com
simplicidade, que é a forma mais alta de cumprir, não lhe dá para
rememorar façanhas. Nem elas existem. Façanhas contam-nas os outros.
E os homens do mar, experimentados,
não são para descritivos. O dever, a faina, é-lhes consubstancial. A
eles a vida, aos cronistas as crónicas. Histórias.
Duas páginas passadas, o diário
náutico recomeça, naturalmente: Derrota que, com favor de Deus,
pretendo fazer deste porto de Lisboa, etc.
E pronto! |