Com efeito, formular juízos de valor
acerca de alguém que fez proeminência em qualquer departamento de
actividade intelectual sem, previamente, o situar, conduz, de um
modo geral a visões deformadas, quer por adelgaçamentos da
personalidade em estudo quer, ao contrário, por engorgitamento de
méritos, qualidades e defeitos que deturpam o retrato que se
pretende.
No caso de Alexandre da Conceição,
individualidade propensa a exageros temperamentais que lhe
comunicavam uma combatividade robusta, o problema avoluma-se de
dificuldades, dado que a sua actividade se situa numa época de
transição entre os últimos lampejos de romantismo e a erupção
vulcânica e deslumbrante da escola realista, ou, colocado o problema
em termos de balizas concretas, entre o prestígio absorvente de
Camilo Castelo Branco e a arrojo inovador de Eça de Queirós.
|
|
Não se tinham, ainda, esvaído os
últimos suspiros do «Noivado do Sepulcro» recitado ao piano nos
serões familiares e lavrava, concomitantemente, como fogo em estopa,
uma super valorização dos factos científicos que enterrava as raízes
no positivismo Canteano, de que Teófilo Braga se arvorava patriarca
no chão lusitano e que havia de aglutinar os jovens do tempo como um
íman congraçante.
De um lirismo deliquescente e tantas
vezes clorótico, resvalava-se para um culto, quase de seita, da
positividade da ciência que apunha à indagação de cariz metafísico
uma pesquisa afanosa e sistemática de factos.
Por outro lado a instituição
monárquica, com todo o peso secular da sua tradição, começava a ser
posta em causa por contestantes aguerridos que, ao mesmo tempo que
investiam com o trono, não deixavam de dirigir as suas invectivas
assanhadas contra o altar.
Anti-metafísica, anti-monárquica,
anticatólica, esta geração desembocava no positivismo, no
republicanismo e no livre-pensamento. O que anti-eram
conduziu pelo caminho do combate, ao que foram, mas não foi de pé
para a mão, que os laivos marcados da tradição desapareceram da obra
que deixaram atrás de si.
E, assim, a transitoriedade que
nascia da ebulição das refregas, poluiu, em grande medida, o que na
obra desta geração havia de permanente. O espírito polemizante que
irrigava o trabalho dos escritores não foi capaz de impedir que este
pendor para a disputa acalorada das ideias parasitasse e infectasse
o espírito reflexivo de modo a impedir que os argumentos e, por
vezes, os sofismas que eram a linguagem das contendas, soterrassem,
em grande medida, o que de essencial existia na mensagem que tinham
a transmitir.
É neste clima de estreloiçada que
surge na campina literária o jovem Alexandre da Conceição.
Nascido a 16 de Outubro de 1842, em
Ílhavo, trazia consigo um estigma que pode estar na base de algumas
das suas atitudes mais violentas e intempestivas.
Realmente, o poeta das «Alvoradas»
era filho natural do Dr. Bernardino Simões da Conceição, médico
partidista na vila, e de sua governanta Joana Marques de Carvalho,
que segue os caminhos de seu amo quando este se desloca para Pinhel
a cujo partido médico concorrera, só regressando a Ílhavo quando
este vem a constituir família legal casando com uma senhora daquela
localidade.
Que a bastardia o tenha tocado
interiormente, traumatizando-o na profundidade, é coisa que para ser
avaliada não precisa de grande penetração psicológica. Na verdade, a
leitura atenta da sua obra, quer em verso, quer em prosa, revela,
profusamente, a sua
/ 33 / preocupação
hipervalorizadora do esforço individual do homem com postergação,
concomitante, de todas as razões de sangue e de origem.
«Super-compensação de interioridade voluntariamente corrigida»,
segundo a terminologia da Psicologia individual de Alfredo Adler,
aparece testemunhada a miúdo, e nitidamente, na sua poesia
«Pergaminhos».
Certo é que sempre o seu pai,
exuberantemente, lhe deu o amparo de uma paternidade que o seguiu
amorosamente.
Frequenta a Escola Politécnica do
Porto, onde obtém o seu diploma de engenheiro, e naquela cidade foi
companheiro de sonhos e boémia de Guilherme Braga, Custódio Duarte,
Ernesto de Almeida, Dias de Oliveira e Pedro Lima na revista
literária «Grinalda». Colabora activamente no tricentenário de
Camões. Colabora, também, assiduamente, no «Século» de Magalhães
Lima e é companheiro de lutas cívicas de Latino Coelho, Elias
Garcia, Rodrigues de Freitas, José Falcão e Augusto Rocha. Estes
últimos – José Falcão e Augusto Rocha – viriam a apadrinhar o
registo de seu filho Alexandre no primeiro registo civil efectuado
na cidade de Coimbra.
O Dr. Emídio Garcia, filho do lente
do mesmo nome, em carta dirigida a Feio Terenas, refere-se-lhe
nestes termos:
«A plêiade de homens insignes que
acompanharam meu pai na fundação da «Associação Liberal de Coimbra»
e do «Centro Republicano», era composta por Bernardino Machado, José
Falcão, Augusto Rocha e Alexandre da Conceição, distintíssimo
engenheiro e Poeta de raro merecimento que as novas gerações mal
conhecem».
E Guilherme Braga definiu-o assim:
«Alexandre, o que vê na linha do
horizonte
A luz que há-de dourar a mais
humilde fronte
E que adora essa luz, como os índios
o Sol».
Em volume deixou, apenas, Alexandre
da Conceição o livro de poemas «Alvoradas» e um livro de prosa
«Notas» que em subtítulo especifica o seu conteúdo ao esclarecer que
se trata de «ensaios de crítica e literatura».
Em 1891, dois anos após a sua morte,
um grupo de amigos, tendo à frente o Prof. Teófilo Braga, recolheu
no seu espólio poético as poesias que publicaram sob o título de
«Outonais». Muita coisa, porém, ficou perdida na efemeridade de
publicações periódicas e,
possivelmente, do mais lúcido e mais
importante que a sua pena produziu. Como amostra da actividade
literária do poeta ilhavense, vou dar a indicação, que está longe de
ser exaustiva, de algumas publicações onde colaborou com mais ou
menos assiduidade. De momento e que nos lembre, cooperou com os seus
escritos na «Grinalda», na «Revista Literária» (1877), na «República
das Letras» (1875), no «Protesto» (1875), no «Pirilampo» (1879), na
«Evolução» (de que foi redactor) (1876), nas «Vespas e Mariposas»
(1874), na «Pérola» (1877), largamente no «Século», etc., etc.
Mas a sua actividade literária vem a
ser prejudicada pelo exercício absorvente da sua profissão de
engenheiro, que exerceu na Figueira da Foz e, sobretudo, em Viseu e
em que se mostrou um profissional distinto, como o demonstrou em
notável trabalho sobre Caminhos de Ferro que apresentou na Exposição
Industrial de Coimbra de 1884.
Mas foi, com certeza, a sua polémica
com Camilo o facto da sua vida literária que lhe deu mais relevo e
projecção no futuro.
No número 2 de o «Século», em 5 de
Janeiro de 1881, Alexandre da Conceição publicou, na secção
«Biografia», uma Crítica à «Corja» do Gigante de Ceide que dizia
assim:
«Apareceu «A Corja» do Sr. Camilo
Castelo Branco em continuação do «Eusébio Macário».
Ambos estes trabalhos literários têm
por intuito confessado lançar sobre a escola realista, de que é
representante em Portugal o Sr. Eça de Queirós, todo o ridículo e
todo o descrédito que as péssimas coisas e as péssimas acções
merecem às consciências.
É deplorável que o Senhor Camilo
Castelo Branco, cujo talento literário e cuja elevação artística são
de primeira ordem, se tenha neste assunto deixado obcecar pelas suas
pequenas vaidades de Seita, até ao ponto de ter do autor do «Primo
Basílio» somente esta estreita compreensão: de que é, apenas, um
romancista ridículo!»
E depois de variada consideração
acrescenta:
«A Corja é como romance uma
banalidade suja e como crítica do realismo um esgar grotesco e
lastimoso».
A propósito da primeira parte do
volume – «Poetas e Raças finas» – Alexandre da Conceição acrescenta:
«Até, porém, nesses estudos o Sr.
Camilo Castelo Branco revela o seu velho azedume rabugento e
opressivo contra os melhores talentos da moderna geração de
escritores portugueses e, particularmente, contra o Sr. Teófilo
Braga a quem nega toda a autoridade moral.»
E ajunta:
«Que o Sr. Teófilo Braga seja, por
vezes, em assuntos de crítica histórica, um pouco fantasioso e
/ 34 /
precipitado, que, como confessado positivista, esteja muitas vezes
em contradição com a filosofia que diz professar, etc., etc., é uma
coisa.»
Foi o rastilho! De S. Miguel de
Ceide não se fez esperar a resposta ensopada em sarcasmo:
«Dá-me vontade, depois desta sua
aversão ao sujo, ao despeitorado, à desonestidade, à Corja,
lembrar-lhe que se assine Alexandre da Conceição Imaculada.»
E a contenda prolongou-se num
«dize-tu», «direi eu» que, em crescendo, se vai avolumando em
paroxismos de insultos, em espasmos de despejamento até, quase
chegar, à linguagem obscena e à devassa da vida íntima.
Difícil era a alguém aguentar-se
contra o estadulho de marmeleiro nodoso manobrado pela mão crispada
de Camilo; impossível se tornava competir com o agudo sentido do
ridículo e com a chalaça rude, e peninsular de cepa, do Gigante de
Ceide.
Da casa de São Miguel choviam as
chufas mais cruéis sobre o poeta das «Alvoradas» que – é justo
reconhecê-lo – se aguentava na refrega com uma firmeza de cerne.
O romancista do «Esqueleto»
acariciava o seu antagonista «pedindo licença às bestas para lhe
chamar Conceições» enquanto o escritor ilhavense, afinando pelo
mesmo tom, proclamava:
«Acabou-se a palha com que a azémola
das «Ribaltas» tirou o ventre de misérias».
Caiu-se na epilepsia dos insultos e
da linguagem desbragada, e os espíritos superiores e de opinião
equânime não deixaram de deplorar esta lamentável contenda.
Teófilo Braga, por exemplo,
refere-se nestes termos à controvérsia:
«A luta provocou interesse, mas era
um espectáculo desolador ver espíritos com o poder de direcção
desvairarem quase, até à obscenidade. Ambos ficaram mal; e ambos
obedeciam à neurose de que foram vítimas. Camilo suicidou-se no
desespero da doença. Alexandre da Conceição sucumbiu também a um
esgotamento nervoso, uma forma de suicídio imposta pelo
temperamento».
E o próprio Camilo Castelo Branco,
em carta dirigida a Emídio Navarro, após a morte de Alexandre da
Conceição, escreve:
«Creio que já ninguém se lembra hoje
de Alexandre da Conceição falecido há 15 dias. Recordo-me eu, com
saudade, porque a sinto dolorosamente desse tempo em que ele e eu,
com grande gáudio das galerias, esgrimimos algumas frases
insensatas, talvez aleivosas, e de todo o ponto inúteis. Caímos
ambos quase a um tempo nas trevas eternas" mas ele mais feliz,
porque as não pode apalpar com os braços inertes cruzados sobre o
peito.
Permita-me V. S.ª que eu lhe ofereça
e ao seu jornal, esta bagatela que representa a reconciliação entre
dois mortos.»
Esta carta, escrita em 24 de Outubro
de 1889, remetia para publicar no jornal de Emídio Navarro, o soneto
que a seguir se transcreve:
ALEXANDRE DA
CONCEIÇÃO
(Ao Senhor Conselheiro Emídio
Navarro)
Bem me lembro que o vi na juventude,
Rosado pela aurora dessa idade.
Eram prismas de amor e de amizade
Os carmes do seu místico alaúde.
Sendo fatal que degenere e mude
A crença e o afecto e o bem da
mocidade
Sangraram-lhe o peito espinhos de
vaidade
Nos arranques da brisa azeda e rude.
Mais tarde o encontrei. Já era um
homem
Ralado por desgostos que o consomem
E põe na face um gesto acre e
sereno;
Se o seu bondoso riso era apagado
Restava-lhe este honroso predicado:
Pregando o Socialismo era sincero.
Camilo C. Branco
E o próprio Silva Pinto, que na
polémica tinha tomado aguerridamente partido ao lado do romancista
do «Amor de Perdição», presta sentida homenagem, na imprensa do
Porto, ao seu antagonista de outros tempos.
*
* *
Vida intensíssima de luta por
ideais, a sua obra poética está adstrita a uma permanente posição de
combate: de combate pela República e pelo Socialismo, e de combate
contra a Igreja que é expresso num anti-clericalismo cuja acidez
atinge, por vezes, paroxismos rábicos.
Numa pequena antologia que
publicamos no fim destas considerações, procuraremos testemunhar
este pendor do autor das «Outonais» que, profundamente poeta, não
soube, ou não foi capaz de se eximir, ao circunstancial que lhe
impregnou quase toda a produção com uma seiva polemizante.
/ 35 /
A sua actividade profissional de
engenheiro distintíssimo afastou, quase totalmente, Alexandre da
Conceição das lides literárias, porque, sendo pobre, a necessidade
de sustentar a família o obrigou a uma existência pragmática de que
algumas vezes se lamentava. Assim, numas quadras dedicadas à actriz
Beatriz Rente, e deplorando de não poder assistir ao seu benefício
escreve:
|
Beatriz, estou enguiçado
– vê lá tu o meu suplício –
inda este ano não me é dado
ir ver o teu benefício.
Há uma estrada na Beira
que me exige nesse dia
uns versas de alvenaria,
um soneto com soleira.
Uma segunda, esquisito!...
Vê lá tu se isto é possível,
pede-me estrofes de nível
e carmes... de teodolito.
Uma terceira... – Que tola,
imagina tu que estrada –
quer rimas de bandeirola
e amor de pedra britada. |
De modo que enquanto a corte
te faz do aplauso tributos,
canto eu musas de suporte
e imortalizo aquedutos.
Enquanto Lisboa inteira
te aplaude a paga e o talento
eu apanho pela Beira
poemas de chuva e vento.
Pela tua estrada há flores
Pela minha há... cantoneiros;
Tu tens mil admiradores
Eu tenha alguns empreiteiros.
São diversos os ideais
que nos levam à vitória:
tu pela estrada da Glória,
Eu por estradas... reais. |
Da mesma forma, em Novembro de 1884,
num soneto escrito no álbum de José Coelho da Motta Prego
lamenta-se:
«Tem-se-me a pouco e pouco ido
apagando
A inspiração juvenil da poesia,
Como se apaga a clara luz do dia,
À medida que o sol nos vai deixando.
Hoje é noite cerrada e às vezes,
quando
procuro pela sombra a fantasia,
encontro-a sempre inerte, morta e
fria
branca Ofélia que as águas vão
levando.
Pálido, fulminado, triste, absorto,
fico, então, como um pai junto de um
berço
ao encontrar ali um filho morto.
Fechou-se-me o poema do Universo
nem ouço aquela voz, o meu conforto
que antigamente me falava em verso.
Tendo começado a sua actividade literária incorporado na fileira do
Romantismo como em 1865 provou com a publicação do seu primeiro
livro a que deu o título de «Alvoradas», Alexandre da Conceição virá
a assentar praça nas lutas do realismo, de que viria a ser um
defensor ofegante e um crítico entusiasta, ao mesmo tempo que, em
matéria filosófica, opta pelo positivismo, arvorando Augusto Conte
no pontífice do saber científico de que era devoto incondicional.
Datam desta conversão as suas
diatribes iracundas contra o fenómeno religioso, designadamente
contra o catolicismo, e particularmente contra o clero, que ele
considerava como o exército guardião das cisternas do obscurantismo.
Antidogmático militante, é após esta mutação que surgem os seus
poemas de combate mais exacerbado com a «Réplica a um Católico», «A
um Padre», «Resposta a um Católico», «Cristo», «Os Jesuítas», etc.,
onde vibra um clarim de guerra e onde é fácil anotar algumas
semelhanças com a acidez e a verrina de Junqueira na «Velhice do
Padre Eterno», publicado pela primeira vez em 1885, embora só em
1887 tenha aparecido refundida e acrescentada de modo a ficar como
hoje a conhecemos.
Em 11 de Outubro de 1889, Alexandre
da Conceição, exausto talvez de uma luta que não consentiu uma
lacuna de ócio, fechou definitivamente os olhos na cidade de Viseu,
onde desempenhava distintamente as funções de Director de Obras
Públicas do Distrito. Provisoriamente inumado no jazigo do Conde de
Prime, veio posteriormente a ser trasladado para campa rasa no
cemitério daquela cidade, onde a ternura de suas filhas ergueu um
mausoléu que assinala a nesga de chão que guarda os seus restos
mortais.
Sumaríssima nota sobre a vida do
escritor ilhavense, não se pretende neste escrito ir além de uma
simples notícia que lembre um artista, hoje quase totalmente
esquecido e que, sejam quais forem as limitações de que se cerque o
seu contributo, deixou uma obra onde há muito que aproveitar e onde
empunhou o facho do progresso e da mocidade com um «élan», ainda
agora, credor de homenagens.
/ 36 /
Frederico de
Moura
A JOSÉ ESTÊVÃO
Levava após de si – Orfeu da
liberdade –
No encanto da palavra o espírito e a
vontade.
Como um vento que leva as folhas dum
olmeiro.
Neste homem tudo foi viril e
verdadeiro:
Onde existisse um erro, um
despotismo, um crime,
Lá estava aquela voz vibrante,
audaz, sublime,
A combate-lo em face a e erguer pelo
direito
– Missionário da luz – um culto em
cada peito.
A sua grande força, a sua inspiração
Vinha-lhe toda a flux do imenso
coração,
Do forte coração altivo e generoso.
Que nunca conheceu rancor vitorioso.
Tudo nele era grande: a palavra, o
talento.
A voz, o entusiasmo, a forma, o
pensamento.
O culto do dever, o amor da
liberdade.
A índole leal e a simplicidade
Do seu coração de ouro, ao qual toda
a vitória
Aumentava a bondade – esta suprema
glória.
Político de ideia, abominava a
intriga
– Cabala que transforma a política
em briga
De egoísmos brutais. Carácter franco
e aberto
Combatia de pé e a peito descoberto
Despreocupadamente. E assim em
quanto os fracos,
Os hábeis, os subtis, os nulos e os
velhacos
Subiam em tropel a escada do poder,
Ele ficava sempre em baixo a
combater,
Tranquilo, colossal, forte, sereno,
austero,
Como guerreiro antigo, ou como herói
de Homero.
... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ...
Depois veio a justiça inflexível da
história
E, envolvendo na luz da sua imensa
glória
O simples combatente, o forte
lutador,
Ergueu-lhe um pedestal todo feito de
amor,
E amarrou ao escárnio – o panthéon
dos fracos –
Os hábeis, os subtis, os nulos e os
velhacos.
Figueira – Abril de 1881.
NUM TÚMULO
Envolve-se a existência em dois
mistérios,
Berço e campa – dois óvulos diversos
Dos berços faz-se o pó dos
cemitérios,
Das campas sai o pólen dos berços.
Misterioso círculo da vida
Que esmaga em cada giro uma alma, um
ente,
Que rasga em cada volta uma ferida,
Que deixa em cada sulco uma semente.
1876
PERGAMINHOS
Não me esmagam mulher os teus
sorrisos;
Eu tenho mais orgulho do que pensas
E rio-me também;
É debalde que tentas humilhar-me,
Porque eu ouso pensar – vê tu que
insania! –
Que também sou alguém.
Alguém que veio ao mundo sem
família,
Um produto do acaso, um pária, um
mísero,
Um enjeitado enfim,
Um ser sem protecção das leis
canoniais,
Filho sem pai no assunto do
baptismo,
Mas um ser, inda assim.
Levantou-me da estrada do infortúnio
Um homem que entendeu que um filho
espúrio
Tem jus à protecção,
Um homem que entendeu que é vil e
infame
Atirar para o Iodo dos hospícios
Uma alma em embrião.
/ 37 /
É que eu vi as premissas da vitória,
O aplauso espontâneo dos estranhos
Incitar-me a seguir,
É que eu via diante de meus passos
Rasgar-se ampla, infinita, luminosa
A estrada do porvir.
Se alguma cousa sou a mim o devo,
Ao meu trabalho honrado, ao meu
estudo,
Ao amor de meus pais,
À força de vontade, à inteligência,
À sociedade pouco, às leis bem
menos...
E a ti não devo mais.
E és tu que vens falar-me em
pergaminhos?
E és tu que vens falar-me nas
riquezas
Que o destino te deu?
Eu não troco os meus louros de
poeta,
As conquistas do estudo e o meu
futuro
Por tudo quanto é teu.
Não me compares pois à horda ignara
Que te adora os sorrisos pelo
ouro...
Eu tenho coração,
Tenho por pergaminhos o trabalho,
Por tesouro a minha inteligência
E a honra por brasão.
Nós, os homens que andamos
procurando
À luz do coração por este mundo
Os caminhos do bem,
Como trazemos alto o pensamento,
E a fronte erguida ao céu, temos
orgulhos,
Bem vês, como ninguém.
Alexandre da Conceição
*
* *
O TOMÉ RONCA
I
O Tomé Ronca era um robusto pescador
ilhavense, alto, musculoso, tranquilo e solidamente construído como
um lutador romano. Tinha apenas vinte e oito anos e era já arrais
duma companha. Conquistara este lugar proeminente entre duzentos
companheiros de trabalho, por actos dum heroísmo brutal e
imperturbável.
Tomé Ronca tinha a força muscular de
um atleta e a coragem impassível dum duelista. Nunca deixava de ir
ao mar por mais ruim que ele estivesse, senão quando a sua companha
se recusava terminantemente a segui-lo.
Tinha um silogismo acerca de
naufrágios; não acreditava neles, pela razão óbvia de que, sendo o
barco de tábuas e não indo as tábuas ao fundo, é claro que não ia ao
fundo o barco.
No inverno os pescadores de Ílhavo
vão trabalhar para o Tejo, e, antes da abertura do caminho-de-ferro
do norte, faziam a viagem a pé, em bandos, seguindo todo o litoral.
Por ocasião de uma dessas viagens, o Tomé Ronca ao passar em Buarcos
viu um barco desarvorado e sem governo a 400 ou 500 metros da costa,
em riscos de se despedaçar contra os rochedos que o cabo Mondego
manda para o mar como raízes duma árvore enorme, e sem que ninguém
se atrevesse a acudir àqueles desgraçados, que faziam sinais de
desespero e soltavam gritos aflitivos. Na praia ia uma confusão e um
alarido indescritíveis. Os homens praguejavam desordenadamente e as
mulheres corriam desatinadas pela praia soltando gritos ululantes,
que o vento e o forte sussurro das vagas confundiam e dispersavam no
ar dando-lhes vibrações elegíacas e confrangentes.
Tomé Ronca aproximou-se do grupo
mais numeroso dos homens com os olhos iluminados, e sentindo os
arrepios sagrados do seu heróico entusiasmo de homem do mar, clamou
como um trovão para o grupo:
Eh! Almas do diabo! Então não há aí
um raio do diabo que acuda àquela gente?
– Quem é que lhe há-de acudir, com o
mar que faz? – Perguntaram os do grupo assomados e em tom de
desespero.
– Quem Ihe há-de acudir?...
Acudo-lhe eu, já que vocês, seus almas do diabo, nem para fiar na
roca servem.
E às últimas palavras Tomé Ronca
pegava na ponta duma corda, recomendava que Iha fossem largando, e
lançava-se ao mar com ela atravessada nos dentes.
Houve então dez minutos duma
ansiedade indescritível e opressiva.
Na praia todo o alarido cessou como
por encanto, e aqueles centenares de olhos estavam fixos num ponto,
que as vagas ora encobriam ora balouçavam no dorso encrespado, mas
que se aproximava constantemente do barco perdido! As mulheres
sentiam as crispações do entusiasmo religioso que as envolve na
missa em dia de festa, quando os sons do órgão reboam como um coro
de anjos pelas naves do templo, e aos homens parecia-lhes que o
vento, que lhes revolvia os cabelos, lhes enchia o peito duma vida
desconhecida e vigorosa.
A ansiedade começava a ser aflitiva
quando finalmente o Tomé Ronca, a alguns metros apenas do barco,
atirou certeiro com a ponta da corda aos náufragos e continuou a
nadar para eles. Na praia houve uma explosão triunfal de alegria e
de entusiasmo. Às raparigas solteiras acudiu-lhes indistinta e
/ 38 /
confusamente à imaginação a ideia de se o Tomé Ronca seria casado, e
os homens sentiram uns vagos ciúmes daquela intrepidez heróica.
O Tomé Ronca agarrou-se enfim ao
barco, içou-se para dentro e daí a instante fez sinal aos de terra
para que puxassem.
Passados alguns minutos, o barco
estava varado na costa e salvos todo os tripulantes. O Tomé Ronca
foi levado em triunfo até à primeira taberna, e aí, depois de mudar
de roupa, bebeu sossegadamente um vintém de aguardente e sobre um
bocado de broa meia canada de vinho.
Ficou como um rei, e daí a duas
horas seguia viagem para Lisboa tão indiferente e humilde como
qualquer dos seus descalços companheiros.
Quando chegou a Lisboa começava
então a germinar no cérebro do sr. José Silvestre Ribeiro a
grandiosa ideia, hoje realizada, da sociedade protectora dos
animais, nos quais se não incluem os homens e particularmente os
pescadores valentes.
Doutra vez o Tomé Ronca, já arrais,
embirrou em querer ir ao mar, apesar da companha oferecer
resistência a isso por ver o mar muito picado. O Tomé Ronca
conseguiu convence-los despejando sobre eles toda a casta de
injúrias grossas, chamando-lhes mulherengos e exibindo em tom de
mofa o seu argumento predilecto: que o barco era de tábuas e que as
tábuas não iam ao fundo. Lançou-se o barco ao mar, com mil diabos,
entre um praguejar e um berreiro infernal.
Sabe-se que os barcos da costa de
Ílhavo não têm leme nem aparelho para vela. A direcção é dada ao
barco pelas cordas da própria rede que ele leva dentro. Na ida para
o mar a ponta de uma das cordas fica bem amarrada em terra, e o
arrais, que vai em pé à popa do barco, desenrola a corda à medida
que este vai avançando, dando voltas com ela na bica da ré, quando a
quer aguentar contra o impulso das vagas ou para as esperar à
distância conveniente, Percorrida a distância medida por esta
primeira corda, é a rede lançada ao mar, e, na volta para terra, é a
segunda corda da rede, que serve, do mesmo modo que a primeira, de
governo, tendo por ponto de apoio a própria rede, que fica ao largo
e que só é começada a puxar depois que o barco está encalhado em
terra. O trabalho do arrais, o mais melindroso e o de maior
responsabilidade, consiste em dar a tempo as voltas com a corda na
bica da ré, sustentando o barco ou deixando-o avançar pelo impulso
dos remos, segundo as exigências da vaga.
Naquele dia o Tomé Ronca
descuidou-se um segundo, não reparou bem numa onda, e, julgando-a
menos puxada, deu apenas uma volta na bica. A onda, porém, foi
temerosa, ergueu o barco a uma altura enorme, cavou-lhe à proa um
abismo, para o qual o barco começou a resvalar, fazendo correr a
laçada singela da bica.
O perigo era eminentíssimo, porque a
alguns metros de distância erguia-se já outra vaga enorme, que
rebentaria como um dilúvio sobre o barco submergindo-o! O Tomé Ronca
compreendeu num Iampejo o perigo da situação, agarrou a corda com
toda a potência dos seus músculos de bronze, por já não ter tempo de
dar segunda laçada, e sustentou o barco no declive! A corda ainda
resvalou alguns centímetros, mas a onda quebrou um pouco à frente da
proa, passando fumegante de espuma por baixo do barco, que a galgou
como uma gaivota, embalando-se-lhe no dorso arrepiado e colérico.
Estava passado o perigo e o barco continuou a avançar para o mar sem
outro transtorno.
Transposta a pancada do mar o
arrais pediu a um dos da companha que fosse para a ré, e então
viu-se o que sucedera: a corda, ao resvalar, quando o arrais com
mais força a segurava, tinha-lhe levado a pele das mãos; ele sentira
a dor cruciante da corda a morder-lhe as carnes em sangue, mas não
contraíra um músculo da face, nem deixara afrouxar a corda um
segundo, aliás estavam todos perdidos.
Nos estaleiros de Aveiro e de Ílhavo
constroem-se uns barcos de fundo chato, muito apreciados dos
pescadores do Tejo e que vão para ali por mar, carregados de sal ou
de madeira, tripulados apenas por dois homens, que levam por único
instrumento náutico um relógio de sol de trinta réis. Chamam a estes
barcos enviadas.
Um dia o Tomé Ronca, com o auxílio
de algumas moedas que pediu emprestadas, comprou uma enviada,
carregou-a de sal, arranjou um companheiro de viagem (o João
Chincha) e deliberou levar o barco ao Tejo.
A enviada saiu uma madrugada
da Malhada de Ílhavo e dirigiu-se para a barra a fim de esperar ali
a maré e vento favorável. Eram oito horas da manhã quando o Ronca e
o Chincha chegaram ao forte da barra de Aveiro. A maré estava quase
em preia-mar, mas um vento fresco de oeste, ponteiro à barra,
impedia a saída da enviada, que só pode navegar para Lisboa
com um bom vento norte. O Ronca ficou desesperado com o contratempo,
mas deliberou esperar pelo vento, visto que não tinha outro remédio.
O João Chincha notou porém que lhe tinha esquecido a almotolia com o
azeite, tempero indispensável a um pescador, e propôs ao arrais para
ir a Ílhavo buscá-la numa carreira. O Tomé Ronca concordou e o
Chincha partiu para Ílhavo a buscar o azeite.
Passada meia hora e quando a maré já
começava a descer, o vento rodou para o norte, o Tomé Ronca meditou
dois segundos no caso, rogou duas pragas pela
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demora do Chincha, que ainda não tinha tempo sequer de ter chegado a
Ílhavo, esperou impaciente mais três ou quatro minutos, e depois,
tranquila e resolutamente, pôs todas as coisas em ordem: amurou a
vela, prendeu-lhe a ponta da escota, içou-a no mastro, colocou-se ao
leme e saiu barra fora, sozinho, a caminho de Lisboa, onde aportava
daí a dois dias!
Quando o Chincha, às 10 horas,
voltou à barra e soube que o arrais tinha saído sozinho com a
enviada, limitou-se a dizer, depois de dois segundos de pasmo:
– O raio do home quer dar cabo da
enviada! Como diabo há-de aquele malvado governar-se sem azeite?
E voltou para Ílhavo, apreensivo,
meditando nas dificuldades em que o arrais se havia de ver... sem a
almotolia!
Estes e outros actos de heroísmo
tranquilo e despretensioso formavam em volta do Tomé Ronca uma
atmosfera de inviolabilidade que o tornavam absolutamente respeitado
e obedecido entre todos os pescadores da Costa Nova e
particularmente entre os homens da sua companha. Por mais acesa e
descomposta que estivesse a altercação, ou mais travada a desordem,
em chegando o Tomé Ronca todos se acomodavam, porque o Tomé pegava
num homem pelo peito, agarrando-lhe só com uma das mãos a camisola,
e atirava com ele pelo ar a dez passos de distância, deixando-o
estatelado e sem acordo na areia.
Numa noite entrou ele numa taberna
em Ílhavo para beber meio quartilho. Na taberna estavam uns oito ou
nove pescadores da companha do Galo, que andava em rivalidade com a
companha Nova, de que o Ronca era arrais. O Tomé Ronca conheceu o
perigo da situação, mas avançou tranquilamente para o mostrador da
taberna pedindo meio quartilho. Entre os circunstantes
estabeleceu-se um silêncio ameaçador, cortado apenas por alguns
monossílabos duvidosos e agressivos. A taberneira percebeu também o
perigo, empalideceu e ficou sem coragem para ir tirar o vinho.
– Então você fica-se aí pasmada, tia
Maria? Dê-me cá meio quartilho, com um raio de diabos, praguejou o
Ronca, senão tiro-o eu da barriga a estes bêbados que você aqui tem.
A esta provocação os assistentes
ergueram-se ameaçadores, e um deles foi fechar a porta da taberna,
para ali esfaquearem o arrais. Este deu um salto de gamo para a
porta, agarrou no homem que a fechara, atirou com ele como uma pela
por cima do mostrador contra as pipas, tirou a chave da porta,
meteu-a no bolso, sacou dali uma navalha, que deu três estalos secos
e metálicos ao abrir-se e disse a sorrir-se como uma hiena para o
grupo:
– Agora é que se vai ver quem são os
homens. Vocês, seus malandros, saem daqui quando me tirarem a chave
do bolso, ou saio eu sozinha depois de os deixar aí estendidos nesse
chão, cosidos a facadas. Vamos a isto!
E à luz enfumada e oscilante da
candeia, a navalha cintilava-lhe na mão direita, fria, hirta e
ameaçadora como a língua duma serpente.
Os da taberna pediram misericórdia,
assegurando ao arrais que ninguém lhe queria fazer mal.
– Então para que fecharam a porta?
Ora fiquem sabendo que não são vocês
que brincam comigo, e que a primeira vez que tornem a perder-me o
respeito, eu migo-os a facadas, como quem miga salada.
E saiu pela porta fora tão tranquilo
e direito como tinha entrada.
II
Esta natureza heróica e brutal tinha
porém um domador: era a mulher, uma daquelas formosas mulheres de
Ílhavo, levemente morena, de cabelos pretos, olhos escuros e doces,
dengosa e meiga, e tendo na voz, aveludada e clara, aquelas
entoações rítmicas, peculiares a quase todas as belas populações da
nossa costa marítima.
O arrais sentia pela mulher um
destes amores, que o povo chama cegueiras, e que são com efeito a
fascinação de todos os sentidos.
A mulher, com o superior instinto de
todas as mulheres, tinha a consciência deste amor do marido, e
sentindo-se como envolvida na atmosfera protectora de uma paixão
ampla e profunda, possuía a alegria comunicativa e luminosa que nos
dá a plenitude da vida.
Nos poucos dias que o mar ou o
trabalho da companha lhe permitiam ficar em casa, o Tomé Ronca é que
acendia o lume, que lhe rachava a lenha, que não consentia à mulher
o mínimo serviço. Era ele que lhe ia buscar a água à fonte e que lhe
cozinhava a caldeirada. A mulher limitava-se a varrer a casa e a
ralhar com fingida indignação ao marido por ele se intrometer nestas
coisas, que não eram da sua conta.
– Ora sempre és bem confiado,
dizia a mulher ao arrais, tentando inutilmente tirar-lhe a caldeira
das mãos. Quem vir isto há-de dizer que eu sou uma mariola,
que até precisa que o homem me faça o comer. Vai-te daqui! Ora o
enguiço!
– Chama aí a vizinhança a ver se tu
e toda ela são capazes de me tirar a caldeira desta mão. Vai fiar na
roca, que para pouco mais tens força. Olha a
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aranha! Arreda-te daqui, senão meto-te dentro da caldeira e
cozinho-te para o jantar como quem cozinha um carapau.
Havia porém uma pequena nuvem no céu
azul desta tranquila felicidade doméstica, nuvem que as
circunstâncias converteram em cerração e mais tarde em temporal
desfeito. O arrais, ao contrário do que se dá na maioria dos homens
do mar, tinha pelas coisas de religião uma indiferença olímpica e
por vezes agressiva. Não ia à missa nem se confessava; e quando por
acaso a mulher o increpava por estas faltas, taxava os padres de
malandros e a missa de geringonça. Radicaram-no neste voltairianismo
inconsciente as patifarias de um padre que conhecera, ao tempo em
que requestava a mulher com quem casara, e à qual esse padre ousara
fazer no confessionário perguntas indecentes e propostas infames,
que a noiva lhe contara por alto enrubecida de vergonha e de
indignação.
O Tomé tinha querido logo dali ir
esfaquear o padre; e foram precisos todos os rogos e todas as
lágrimas da noiva para o padre ficar com as costelas direitas
naquele dia.
Conservara, porém, um tal asco ao
padre que o não podia ver sem empalidecer, e um dia que o encontrara
numa das ruas de Ílhavo em ocasião em que a rua estava pouco
concorrida, aproximara-se dele e dissera-lhe a tremer de raiva
recalcada:
– Eh! Seu padre António! Você sabe o
que perguntou no confissionário a minha mulher, quando ela era ainda
minha noiva. Para seu bem e meu peço-lhe que se livre de se
encontrar comigo em sítio de jeito, porque eu abro-o com uma
navalha, como quem abre uma cavala. Lembre-se disto, porque eu não
quero pagar por bom um maroto como você é.
O padre já não ouvira as ultimas
frases deste discurso pouco académico, porque, mal tinham explodido
as primeiras palavras, o padre percebera imediatamente que o melhor
era ir andando.
Não tinha inclinação para o martírio
este santo.
Em Arada, povoação a 5 quilómetros
ao norte de Ílhavo, apareceram um dia três missionários a resgatar
as almas da perdição mundana à força de berros, de inépcias, de
confissões, de rosários, de livros, de missões e de correias de
Santo Agostinho, outros tantos artigos de comércio rendoso, de que o
fisco ainda não tomou conta.
A fama das virtudes dos missionários
e dos benefícios espirituais das suas confissões correu por todas
aquelas povoações com a rapidez dum terror sagrado. A imaginação
popular, a inesgotável geradora do maravilhoso, criou em volta de
cada missionário uma lenda mística, cheia de doçuras celestiais e de
promessas de salvação eterna. Aqueles santinhos alimentavam-se a pão
e água e dormiam vestidos sobre a terra fria, tendo por cabeceira
uma pedra dura.
Um livre pensador de Arada
averiguou o caso e soube que os missionários dormiam, como cerdos
repletos, em excelentes colchões de folhelho de milho na casa onde
estavam hospedados, e que os seus jejuns se limitavam simplesmente e
precisamente à abstinência da água e do pão duro. O mais comiam
tudo, desde o naco luzidio de toucinho indigesto até ao mais
alourado peito de peru e à mais saborosa perna de vitela mamona.
Beber é que só bebiam vinho... Coitados, uns santos! Pelo menos era
o que o povo, esta eterna besta mansa, acreditava.
A mulher do arrais, a instâncias dum
rancho de vizinhas, foi às missões de Arada num dia em que o Tomé
tinha ido para a Costa Nova. E impressionada com a retórica
apoplética e com a gesticulação abundante e desordenada de um dos
missionários, pediu-lhe uma confissão geral, que, atenta a peregrina
formosura da requerente, lhe foi logo concedida.
A mulher do arrais, entre outros
pecados de menor tomo, confessou que o marido não ia à missa nem se
confessava, e, fulminada de terror sagrado, ouviu o missionário
negar-lhe a absolvição por viver em pecado mortal com um ímpio sem
religião nem temor de Deus. À força de lágrimas e de rogos,
conseguiu porém que o padre lhe deitasse a absolvição com a promessa
formal e solene de, ou converter o marido à santa religião,
obrigando-o a ir à missa e a confessar-se, ou a separar-se dele para
sempre.
Assegura-se aos ingénuos que estes
factos, afora as circunstâncias do local, são perfeitamente
autênticos.
Há por aí uns sujeitos que, cônscios
das próprias necessidades, arvoram a religião em freio, e que hão de
talvez acoimar-me de fantasioso e jacobino, dando como falsa e
caluniosa a exigência do missionário. Neste ponto declaro que sou
simplesmente e estritamente verdadeiro.
Mas vamos ao conto.
O leitor dispensa-me da descrição
das cenas ora ridículas ora trágicas, mas sempre deploráveis, que se
deram daí em diante entre o Tomé Ronca e a mulher. O arrais teve ao
princípio desconfianças de que a mulher estava doida, e começou a
tratá-la com a paciência carinhosa com que se trata um doente
caprichoso e querido; mas quando a viu aparecer-lhe um dia com os
cabelos rapados e averiguou que tinha feito confissão geral aos
missionários, atinou logo com a causa da sua desgraça.
Pensou sombriamente no transtorno da
sua vida de família, na perturbação irremediável do seu futuro, na
perda daquele amor da mulher que ele estremecia
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como um louco, no constante martírio que o aguardava dali em diante,
e depois de cavar alguns dias, como um taciturno coveiro, nestas
ideias, tomou uma resolução selvagem e brutal.
Um dia de madrugada disse à mulher
que ia para o mar, vestiu-se sossegadamente, considerou a mulher um
instante com o coração repleto de lágrimas represas, deu-lhe um
beijo rápido, que ela repeliu com um gesto de pejo e de terror, e
saiu pela porta fora, mas em lugar de ir para a Costa Nova, tomou
pelo caminho de Aveiro. Depois, já próximo de Aveiro, dirigiu-se
para Arada, esperou à saída da igreja o missionário que lhe
confessara a mulher, e cujo nome previamente averiguara, e ali,
diante de todo aquele mulherio que beijava ao santo a fímbria da
batina, numa explosão de raiva selvagem e de alucinação sanguinária,
deitou-se ao missionário e deu-lhe dezoito facadas no peito, na
cara, nos braços, no ventre, por toda a parte onde o encontrou no
furor da sua fascinação homicida, e até que alguns homens, que
acudiram ao berreiro descomposto e felino das beatas, o puderam
desarmar e manietar.
Daí a um ano, o Tomé Ronca saía das
cadeias da relação do Porto numa leva de presos para a África,
degredado por toda a vida.
A mulher, essa, meia idiota e meio
alucinada, pede hoje esmola pelas portas, e quando lhe dão dinheiro
gasta-o em aguardente, e, depois de embriagada, insulta os
transeuntes e passa as noites a berrar pelas ruas obscenidades
repugnantes.
O rapazio apedreja-a e leva-a a um
extraordinário ponto de irritação chamando-lhe em berros e em
guinchos – Sarabéca.
Março – 1879. |