Corria o ano de 1944 e estávamos
em plena guerra mundial –
a Segunda Grande Guerra.
O nosso País mantinha-se neutral
mas, apesar disso, e sob múltiplos aspectos, teve de suportar as
terríveis consequências do conflito. Dum modo especial, no que se
referia ao abastecimento de géneros alimentícios e carburantes,
além de muitos outros produtos, Portugal viu-se forçado a sofrer
grandes privações e os preços exorbitantes do mercado negro. E a
situação manteve-se sempre grave, tanto nos grandes centros como
nas próprias aldeias, onde faltava o pão, alimento essencial ao
trabalhador do campo.
Então, os Grémios da Lavoura e as
próprias Câmaras foram chamadas a colaborar na regularização dos
abastecimentos, sendo criadas, junto destas, comissões especiais
encarregadas de proverem à distribuição de géneros às populações
rurais. O milho e os outros cereais panificáveis escasseavam
também, mercê dum açambarcamento desenfreado, que por toda a parte
se fazia.
Foi considerando esta dramática
situação e as funestas consequências dela derivadas, que o Grémio
da Lavoura de Arouca resolveu adoptar uma medida altamente
simpática, destinada, por um lado, a atenuar a crise, e, pelo
outro, a promover uma benéfica acção de fomento, que se impunha
realizar.
Tornava-se imperioso estimular a
produção de todos os cereais, sobretudo do milho, que é o de maior
consumo na região e, para tanto, o Organismo resolveu realizar
diversos concursos, entre os lavradores seus associados, tendo em mira, todos
eles, conseguir um aumento substancial das produções.
Adoptada tal medida, que logo teve
o apoio e auxílio financeiro da Câmara e doutras entidades, foi
elaborado um plano de acção e estabelecido o respectivo programa,
do qual constavam o número e a natureza dos concursos a realizar,
montante dos prémios a distribuir, que eram numerosos e de valor
elevado, como convinha, sobretudo para a cultura
do milho, pois era esta que mais se pretendia estimular.
Os concursos da MELHOR SEARA – de
milho, cevada e trigo – da MELHOR FRUTA, da MELHOR ADEGA e do
MELHOR LINHO, foram o fundamento justificativo da criação da FEIRA
DAS COLHEITAS, pois assim passou a designar-se o certame, no qual
foi integrado também o CONCURSO DA RAÇA BOVINA AROUQUESA, já
criada no concelho.
AROUCA – Mosteiro de Santa Mafalda
Estes concursos, sobretudo o da
Melhor Seara, despertaram um interesse enorme entre os lavradores
e salutar emulação, que logo se previu viria a conduzir ao
almejado fim – o aumento das produções. Eles, os lavradores,
passaram a visitar os campos inscritos, comentavam os resultados
das classificações, faziam propósitos para o ano seguinte, assim
se vislumbrando um aperfeiçoamento da técnica e mais cuidado nas
adubações, de tal modo notáveis que, com o andar dos anos, a
lavoura da região, mercê destas e doutras medidas, se elevou a um
alto grau de progresso. E tão notável ele foi que, sendo o
concelho deficitário na produção de milho – a Câmara mantinha
permanentemente aberto um celeiro de milho de fora, ou seja do
Ultramar, – alguns anos mais tarde passou a exportar centenas de carros daquele cereal,
os quais chegaram a passar dos mil.
Todos os prémios atribuídos aos
lavradores, contemplados nos diversos concursos, foram-lhes
entregues, como hoje ainda são, numa sessão solene realizada no
último dia da festa, para a qual eram convidadas diversas
entidades oficiais e a que nunca faltou o Delegado da
Direcção-Geral dos Serviços Agrícolas, que conferiu ao Grémio da
Lavoura um expressivo voto de louvor, pelo êxito do certame e
iniciativa por ele tomada.
Ao mesmo tempo que isto se fez e
faz ainda agora, o Organismo promoveu também uma Exposição
Agrícola e do Artesanato, que despertou invulgar interesse,
/ 69 / na qual colaboraram os lavradores
e, sobretudo, as donas de casa, da melhor boa vontade. Apesar de
limitada a um campo restrito, neste primeiro ano, a Exposição foi
muito visitada e serviu de ponto de partida para outras mais
grandiosas, realizadas em anos subsequentes, às quais se viriam
associar diversos organismos do Estado, como a Junta Nacional das
Frutas, Junta da Colonização Interna, Direcção-Geral dos Serviços
Florestais e Aquícolas, Junta Nacional dos Resinosos,
Direcção-Geral dos Serviços Agrícolas e outros.
Por outro lado, concomitantemente
com este programa, que se pode considerar de fomento, o Grémio da
Lavoura pensou realizar um outro, que se destinaria a fazer
ressurgir as antigas tradições populares, assentes no puro
regionalismo, quase desaparecidas ou em desuso, desde há longos anos. As
típicas e tão alegres manifestações festivas, que caracterizavam
tantas das mais sugestivas actividades da aldeia, como as
desfoIhadas, as ceifas, os linhares, as espadeladas e semelhantes,
estavam esquecidas. Já se não cantavam nem dançavam ao som da
viola, as lindas modas do cancioneiro popular, que tanta graça e
beleza imprimiram ao meio rural, mais pobre com essa ausência.
Quer isto dizer que se impunha
fazer ressurgir o verdadeiro folclore, tão rico e tão variado de
cambiantes regionais, e este desiderato alcançou-o também a Feira
das Colheitas.
Santa Eulália, Chave, Rôssas,
Moldes e Canelas foram as freguesias que organizaram os primeiros
grupos, cujo inspiração eles auferiram das pessoas idosas da sua
terra, conhecedoras dos antigos usos e costumes locais. Ao aparecerem pela
primeira vez, num estrado levantado na Vila, esses grupos de
rapazes e raparigas, enquadrados pelos mais velhos, nem de longe
se podiam comparar aos grandes ranchos que vieram mais tarde, dada
a improvisação que os assinalava; mas o certo é que a iniciativa
foi celebrada como um acontecimento de extraordinário relevo e a
exibição aclamada com estrépido e admiração, até porque era
novidade nessa altura.
Os organismos da Feira das
Colheitas prestaram ao folclore esse enorme serviço – um altíssimo
serviço – fazendo ressurgir das cinzas do passado os costumes, as
danças, os cantares e o próprio trajo, há muito em desuso. E os
futuros ranchos, todos eles, aqui vieram receber o seu baptismo na
prática do folclore.
Uma excepção apenas existiu e essa
deu-a um pequeno núcleo de gente serrana,
vivendo isolada no alto da Freita, lugar do Merujal, onde nunca
deixou de se praticar o mais puro e genuíno folclore. Dirigidos
pelo velho Joaquim Campos, contador de nomeada, agora cego e
doente, sempre requestado para todas as funções de aldeias de
mais fama no seu tempo, ali, no ponto mais alto da Serra da Freita,
nunca deixou de se cantar e dançar a primor as lindas modas da
região. Os outros ensaiaram-nas e aprenderam; estes beberam-nas com
o leite materno.
Quando, pela primeira vez, o
Rancho do Meruja – este, sim, que foi sempre um verdadeiro
ranchos e apresentou na Feira das Colheitas, os homens rudes com o
seu fato de burel, coçado de o trazerem a uso, e as mulheres
vestidas de saia de serguilha, a
/ 70 / cheirar ao avelhum dos seus
rebanhos, mas dançando e cantando a preceito, a surpresa foi enorme
e os aplausos irromperam vibrantes, parecendo não mais ter fim.
O Senhor da Pedra, o Malhão, o Verdegar, o Vira da Serra, e tantas outras modas que fizeram a
delícia dos nossos avós e ainda apreciamos, sempre tiveram no Rancho
do Merujal um intérprete fiel e expressivo, como é raro
encontrar-se. Desta maneira, ele foi exemplo e mestre de tantos que
com este afamado grupo aprenderam a praticar o folclore.
*
* *
Estava delineado o programa da Feira
das Colheitas, que se realizou a primeira vez, pela forma
sumariamente descrita, quanto ao essencial do seu programa, no
último domingo do mês de Setembro, dia principal, de 1944.
Em anos futuros cuidou-se apenas de
melhorar e ampliar esse programa, dando nova forma às Exposições,
que foram muito enriquecidas em qualidade e variedade de produtos,
ajustando as normas dos concursos a novas realidades, imprimindo à
festa da rua mais brilho e colorido, sem nunca esquecer que a mesma
se há-de basear no regionalismo e ter no folclore o seu cartaz mais
gritante. Foi este, sem dúvida. que deu à festa prestígio novo, nome
e renome ao largo e ao longe.
A Feira das Colheitas é a festa das
multidões, mostrando-se a Vila impotente para a
todos albergar. Sem dúvida que as belezas paisagísticas da região e
a própria arte contida em seus monumentos, entre os quais se
agiganta o velho Convento, também são um chamariz para muitos. que
aproveitam o ensejo para uma visita à terra. E a Excelsa
Rainha Santa Mafalda. em cujo amor tantos procuram alento e coragem
para os transes da existência, os convida a virem prostrar-se perante
o seu altar, saciando uma fé que vem das profundezas dos séculos.
Com tais e tantos predicados a
valorizá-la, a Feira agigantou-se por forma impressionante e num
curto espaço de tempo, não havendo lugar apropriado, como já se
disse, para conter o número incontável de forasteiros que a ela
acorrem nem, sobretudo, para se fazer a arrumação da quantidade
interminável de carros que enchem todas as ruas, largos e
quilómetros de estrada.
AROUCA – Calvário
Nos últimos anos foram introduzidos
na festa números de carácter religioso, que a princípio não tinha,
entre os quais a bênção dos campos e do gado, assim como um vistoso
Cortejo de Açafates, no qual tomam parte centenas de raparigas
conduzindo açafates enfeitados, com oferendas para o Hospital que
constitui, além do seu fim beneficente, uma esplendorosa
demonstração do trajo regional. E tem lugar, na mesma altura, um
grandioso e bem provido mercado e feira anual de gado, que muito
valorizam o certame, durante os três dias da sua duração.
No ano em curso, por motivos
ponderosos, a que não são estranhos os de ordem financeira,
efectuou-se a reunião das duas festas numa só, ditas do Concelho e
das Colheitas, que as entidades responsáveis, Câmara Municipal e
Grémio da Lavoura, resolveram realizar de comum acordo.
Sob a designação de Festas do
Concelho e das Colheitas, realizou-se a festa única, englobando o
programa das anteriores, sem quebra de prestígio nem do nome de
qualquer delas. |