A coisa tinha de
partir de Arouca e partiu mesmo: – levar ao último Colóquio Portuense de Arqueologia
um ensaio em vez de uma comunicação, como cumpria, sobre o tema
folclórico que se definia no seu próprio título – Castrejas as
Danças Folclóricas Portuguesas?
A proposição que se esconde na
pergunta é de arrojo, já que ninguém poderia ter visto, para as
estudar, as danças dos nossos aborígenes castrejos, tão distantes
no tempo. Deles se sabia apenas o que a Arqueologia havia
informado acerca da sua cultura, e foi sobre os dados desta que
nos detivemos a imaginar a coreografia que se havia de desenvolver
no seu seio para poder estabelecer as possíveis relações com as
actuais danças da nossa gente rural.
Assim podemos averiguar que no
decurso da sua lenta evolução veio o tempo do nosso aborígene
abandonar a pastorícia errante para se instalar em abrigos
familiares fixos que desenvolvendo-se haviam de dar lugar às
povoações castrejas. Deu assim o homem, animal gregário, o grande
passo para a sociedade, para a agremiação.
Sabemos como fundou a primitiva
povoação – um conjunto de pequenas casas
redondas – e o que a mesma lhe daria em troca: refúgio, agasalho,
fraternidade, economia agro-pastoril de feição comunitária, ética
em normas de relação e comportamento, defesa e segurança. Nasceu
para este efeito a muralha, obra colectiva de comparticipação
comunitária.
Ali passou a viver o nosso
aborígene que tratou de levantar mais uma, se não mesmo duas
outras muralhas para maior segurança.
Dentro destas, no seio do próprio
agregado, nascera, medrara e agitava-se, como é óbvio, uma
juventude ávida de folgança, já que o recreio em gente nova é de
imposição orgânica tão premente como o comer e o dormir.
Conseguida a tranquilidade, haviam
de surgir os momentos de ócio, logo aproveitados por aquela juventude, que atingira a idade núbil
(a idade do namoro do nosso tempo), para os seus devaneios, para
os seus procurados encontros e consequente realização dos
divertimentos, de que a dança lúdica é o primeiro e o mais
apropriado aos dois sexos juntos.
Surge, então, a dança social de
conjunto, rapazes e raparigas aos pares, por efeito do inaparente
impulso sexual.
AROUCA - Vista parcial
Mas a dança não é tumulto nem
distúrbio. É uma actividade recreativa ordenada e
coordenada em que os participantes intervêm no gozo dum brinco
comum. A dança terá de ser como o foi a muralha, uma obra de com
participação comunitária.
Mas a dança não pode realizar-se
sem suporte rítmico e musical. O ritmo pode obter-se pelo bater
das palmas das mãos ou dum pau noutro pau e a música, por não
haver ainda, possivelmente, o instrumento sonoro que a produzisse,
teria de ser fornecida pela voz humana, pela cantoria. Daí o
cantador (que necessariamente havia de ser socorrido pela
articulação da palavra, se não já dum verso, e aqui estaria,
possivelmente, a origem da própria poesia) – figura já tradicional
que nunca mais deixaria de estar ligada à dança popular mesmo
depois de obtido o primeiro instrumento musical (flauta rústica
duma cana silvestre que ainda vemos em mãos dos pastores, ou, como
indica o Arqueologista, do osso duma tíbia).
Estamos, assim, em presença duma
coreografia social estruturada e definida pela associação dum
conjunto de pares – rapazes e raparigas – em coordenada
movimentação de sentido comunitário, na obediência um cantador
fincado no suporte musical em que assenta e se desenvolve toda a
dança.
Outros factores
ocorrem a ampliar e enriquecer tal coreografia mas já não importa
referir aqui.
Se esta dança é, com efeito, a
coreografia criada e fixada pelos nossos aborígenes castrejos,
como cremos, podemos verificar que ela subsiste, permanece, nos
/ 65 / seus longínquos descendentes, os
actuais rurais que a guardam e renovam com inusitado vigor e
frescura.
Naqueles rurais se contam os de
Arouca, e por aqui devíamos ficar. Mas interessa saber que foram
muitos mais os herdeiros de tão singular e significativa herança,
que a observação nos permite identificar, delineando mesmo a área
da sua distribuição. Fixa-se esta (eis aqui uma novidade que há-de
produzir protestos e controvérsia), numa zona que a partir do rio
Vouga médio se estende para noroeste e confunde com o perímetro da
chamada «videira d'enforcado», produtora do vinho verde, com
particular incidência e caracterização entre o médio Vouga e o rio
Ave, como qualquer observador pode
verificar.
Convém, antes de mais, fazer uma
prevenção para destruir um equívoco que está
a tomar vulto em matéria de folclore coreográfico e musical. Nem
tudo o que o povo opta ou pratica, e só porque é povo, tem de ser
folclórico ou mesmo popular. O nosso povo dança polcas, valsas,
quadrilhas e todas estas coreografias vieram de salões mundanos
europeus; dança modinhas de roda e estas vieram das reuniões
familiares urbanas quando no princípio do século estavam em moda
os chamados Jogos de Prendas; dança modas de pares agarrados, faz
rodopios como piões, levanta as saias em seus rodeios e mostra as
pernas; adapta o Fado a coreografias de arranjo. Ora isto não é
folclore, como não são folclóricas aquelas modinhas cantadas de
origem teatral.
Folclore está na vivência de
tradições oriundas de povos anónimos e incultos, como esses
aborígenes que temos estado a apreciar. O
folclore não se inventa, nem se substitui. Para ser válido tem de
ser autêntico e de raiz ou origem regional.
Como íamos dizendo, as danças
folclóricas de origem castreja foram acantonar na zona do
perímetro da «videira d'enforcado» por ali existir um tipo humano
que descende exactamente daquele outro que viveu nos inúmeros
castros do Noroeste da Península, zona apropriada ao viver mais
fácil dos povos primitivos pela presença da humidade natural
(abundância de pastos e de frutos), pela facilidade da defesa
comum, pela proximidade do mar, pela existência de minérios
(particularmente o ouro).
Mais tarde, já nos tempos
históricos, haviam de erguer-se nessa zona as pequenas e
graníticas igrejas românicas. Ali se fundira uma Nação que não
resultara positivamente do mero acaso.
É ali que mora o folclore!
*
*
*
Se por Arouca muito se dançava as
tais danças castrejas, ali particularmente distinguidas pelo seu
conteúdo comunitário – os pares a desfazerem a sua unidade básica
trespassando-se ou mudando de lugar na distribuição do brinco
comum – muito mais se cantava.
Para as danças tornava-se
necessário um ajuntamento de pessoas dos dois sexos que para o
efeito se procuravam; para cantar bastava apenas o encontro
pausado, que não precário ou passageiro, dumas tantas raparigas,
nunca menos de duas, para termos já um
/ 66 / canto
escontriado a duas vozes e,
se forem três, a possibilidade dum coral a três vozes paralelas ou
sobrepostas – juntar as cabeças e a dádiva brotava espontaneamente,
a fundir-se no silêncio envolvente.
A mulher arouquense só cantará em
uníssono junto do berço e, fora de casa, na horta, à eira e no
lavadoiro, e já o não faz em trânsito desacompanhada. Com outras
ao pé, é que
funciona.
É esta modalidade folclórica arouquense
que importa agora conhecer.
O canto arouquense só tomou
aspecto folclórico depois que o etno-musicólogo Prof. Virgílio
Pereira o descobriu e dele se ocupou para proclamar:
«O cancioneiro de
Arouca é o mais rico e significativo do país.
Vocês, arouquenses, não sabeis a
riqueza folclórica que tendes nos cantos populares da vossa gente
rural, espécies raras dos velhos «fabordões» e «gymeis».
«Arouca é um centro difusor, como
verifiquei por Resende e Cinfães, dessas vossas maravilhosas
espécies musicais».
Foi uma surpreendente novidade
para quem, como nós, não estava ainda informado a tal respeito.
Folclore, então, era uma bela palavra de sentido mal definido e
quando começou de entender-se era para designar danças populares,
como de resto vem sendo vulgarmente interpretado, como aqui mesmo
se já viu.
Facto é que Arouca dispõe dum
acervo musical particularmente rico e significativo, como resulta
da apreciação do mais categorizado etno-musicólogo que o
prospectou e registou no livro «CANCIONEIRO DE AROUCA», que a
extinta Junta de Província do Douro Litoral havia de editar, que
importa considerar. As 531 espécies musicais ali coligidas são, só
já pelo número, particularmente significativas.
Raparigas arouquenses em traje
tradicional.
Será altura de perguntar-se: –
Como explicar a presença de tais e tantas espécies musicais por
terras de Arouca? Desde que Arouca tem no seu vale maior um
convento que foi inicialmente de monjas da velha ordem de S.
Bento, que mais tarde a prestigiosa Rainha Santa Mafalda, neta do
fundador da Nacionalidade, havia de submeter à de Cister na
reforma de S. Bernardo, a resposta concreta estava naturalmente
indicada: – ali, naquele convento! – E assim está estabelecido.
Por outro lado os dicionários de
termos ligados à música informam que
Fabordões são géneros
musicais de típicos corais que se assinalaram pelo século XII em
Inglaterra e que as ordens religiosas haviam de transmitir aos
seus mosteiros do exterior, o que tudo concorre para dar
consciência à indicada origem da nossa música coral. Com aqueles
se identificam os
gymeis, de que derivaram se não mesmo lhes
teriam dado origem. Nos dois a mesma fórmula.
Os corais arouquenses, como de
resto muitos outros estranhos à região, são cantados ao ar livre.
em voz natural e sempre igual sem pianos nem fortes, por mulheres
voltadas para os vales ou declives, de forma a poderem ser ouvidas
ao longe, como se a toada fosse emanação telúrica do chão que
pisavam ou dádiva do céu. Alguma coisa de unção religiosa pairava
nessa música lenta e nostálgica.
Tais corais hão-de definir-se pela
junção de duas ou três pequenas melodias iguais sobrepostas e
separadas por
terceiras
da escala musical, extensivas pela
repetição quer dos seus períodos que de toda a composição e pela
lentidão dos tons graves, mais prolongados nos remates finais. Têm
a particularidade de a sua iniciação se fazer pela voz duma única
mulher para definir o mote poético e a figura musical, logo
repetido a duo com a voz superior da acompanhante, para seguir-se
propriamente o coro. no qual se incorporaria a terceira voz quando
se tratasse dum fabordão. A qualquer das vozes em função se podem
agregar outras acompanhantes.
E acontece algumas vezes que um
inesperado e pejorativo apupo aparece no remate da cantoria,
partido, em regra, dum indivíduo estranho senão mesmo duma das
próprias participantes do adjunto coral. Qual o significado ou
intenção deste apupo, tão característico entre os audientes dos
cantos populares? Desagrado, chacota ou apenas divertimento?
Compreende-se que possa resultar dum estranho ouvinte, mas já se
não explica se da comparticipante.
O apupo, sempre reservado para os
remates dos corais populares, é, com efeito, desconcertante. Temo-lo como sinal de troça, mesmo perante aquele conteúdo
religioso que emprestamos aos corais que se criaram ou
desenvolveram à sombra do convento, que é o caso de Arouca, que
começa de entrar em perigo.
Merece crítica a relação dos
conventos e os cantos populares, como também estudo merecem os
próprios corais.
*
* *
A Igreja e os seus institutos
religiosos só dispunham, como é sabido, duma música-tipo ou única,
que é a música coral gregoriana, caracterizada pela sua estrutura
uníssona. Outra não era admitida e se houve tentativas de a
modernizar ou enriquecer mediante as prestigiosas fórmulas de Palestrina, o Concílio de Trento, dos meados do século XVI,
tomando conta do caso repôs as coisas no seu lugar e a música
religiosa se havia de conter na sua linha gregoriana tradicional.
Na Igreja há corais, por sinal
muito belos, mas não passam do resultado de umas tantas vozes
associadas a desferir uma melodia a uma só voz ou linha. Ora
/ 67 / isto não acontece com os corais
populares, evidentemente mais complicados, mais ricos, pela inicial
associação de 2 ou 3 vozes
escontriadas. Nada, pois de comum entre
uns e outros. Haverá quando muito uma unção de que comparticipam os
dois. daí ter resultado o equívoco da interdependência que os liga,
mas que nada depõe a favor ou contra. Por outro lado, os cânticos
religiosos têm sempre uma difusão e observância universais quanto os
populares uma localização muito restrita e são desiguais de terra
para terra e mesmo de sítio para sítio, como podemos ver.