AROUCA - A vila e o convento de Santa
Mafalda
Como não sei que género de artigo
sobre Arouca desejam de mim para a «Revista da Junta Distrital de
Aveiro», nem sequer o espaço a que devo limitar o meu escrito, terei
de superar o embaraço espraiando-me em algumas generalidades, tão
desataviadas quanto mo consinta a Direcção da «Revista» e tão
abreviadas quanto mo permita a extensão e a diversidade dos
assuntos focáveis sobre a vetusta e monumental vila, mais a variada
paisagem com que Deus dotou este recanto da boa terra portuguesa.
Receio, ainda que considere o
âmbito dos possíveis leitores confinado à gente do distrito, que
muitos haverá que talvez só de nome conheçam a terra da Rainha Santa
Mafalda – onde a Beata Princesa quis repousar e jaz no seu belo
leito tumular – e, assim, para esses, o que me ocorre pode ser
novidade. Para os conhecedores será um reencontro fortuito que
desejo não se torne enfadonho por pretensioso, ou indigesto por
referido como o cansado chá do Tolentino.
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Situa-se na periferia serrana do
distrito quase no extremo nordeste dos seus limites, larga área
heterogénea, com seus vales fundos e macios como a mais verde
alfombra, seus montes agrestes mais altivos como Senhores de baraço
e cutelo e suas encostas, ora lisas e densamente povoadas de
variadas e nobres essências, ora trabalhadas em socalcos onde medra
a vinha em tachoeiras ou no enforcado e se amanha o pão nosso de
cada dia para as gentes e os gados. A indústria é balbuciante.
AROUCA – Túmulo da Rainha Santa Mafalda
no convento de Arouca – em ébano e prata –
onde se encontra o seu corpo incorrupto.
Da sua história não cabe falar em
tão reduzido escorço. Tão velha que História e Lenda se confundem
sem se destruírem em fantasias – ainda recentemente o douto
investigador A. de Almeida Fernandes, em extenso trabalho publicado
em vários números do «Arquivo do Distrito de Aveiro», se debruçou
sobre um largo período em que a documentação, por escassa, mais
obriga a inteligência a escogitar a verdade «Arouca na Idade Média
Pré-Nacional» – chamando-lhe, apenas, uma introdução à história altimedieva dos Vales de Arouca e Moldes».
E, se de aí ascendermos nos
séculos, veremos a gente de Arouca a bater-se em S. Mamede, nas
hostes das Terras de Santa Maria; como no seu próprio vale, com Egas
Moniz, contra as mesnadas mouras de Lamego; andar, esforçados, com
os cavaleiros do Templo ou de Malta e, com a Cruz de Cristo,
embarcar nas caravelas para as grandes aventuras do Infante D.
Henrique; repelir, nas gargantas dos seus ribeiros, os invictos de
Napoleão; sofrer os fluxos e refluxos de batalhões e guerrilhas
nos confusos períodos do liberalismo vintista; ir, resignadamente,
cumprir o dever militar nas guerras modernas ou, como hoje,
virilmente lutar entre os melhores nas nossas terras de África
contra os inimigos invisíveis que só se deixam identificar pela sua
traição e cupidez.
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E no foro civil, desbravar,
afeiçoar, edificar, estudar, rezar, fazer cristandade e nobilitar a
vida, ano após ano, dia após dia – e quantas vezes dia e noite –
para transformar o seu agro e as suas famílias em courelas
produtivas e elementos válidos para o progresso harmonioso que
dignifica a Nação.
Terra impregnada, desde os
primórdios, de profundo sentimento religioso, aqui até as outrora
compartimentadas divisórias sociais de clero, nobreza e povo se
amoleceram para serem, apenas, travejamentos hierarquizados de uma
grande família cristã servindo, com devoção e gosto, as suas freiras
e a sua Pátria.
Poderão, certamente, ser taxados
de fatuidades os dizeres dos autóctones aludindo ao seu torrão
natal. Mas tantos foram os estranhos, responsáveis e notáveis, que
trataram, em páginas impregnadas do seu talento de consagrados,
Arouca, sob vários aspectos, que melhor será remeter o leitor para o
seu alvedrio, sem alongar o escol:
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CAPELA DA CASA DE CELA (Urrô-Arouca).
A frontaria dos meados do século XVIII é um dos destacados
exemplares em capelas anexas a casas tradicionais que o
distrito possui. Na empena, brasão de Moreiras, Melos,
Magalhães, Pintos, com timbre dos primeiros (N. G.) |
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/ 10 / o sóbrio e íntegro
Herculano comparou a descida para o vale à paradisíaca Sintra;
Ramalho, forte no físico e
robusto no que escreveu, alçou-se desde o vedro Rêgo de Chave, que
quase marca o limite do Concelho por poente, até às alturas da
Senhora da Lage de peregrina tradição, Albergaria das Cabras e
outras cumeadas até às vizinhas Caldas de Lafões, dando-nos uma
formosa narrativa do viajar naqueles tempos;
Abel Botelho, entre o desenho e o
romance, tratou a paisagem e a gente com tal engodo que, anos mais
tarde, na infância da nossa cinematografia, os cineastas não se
amedrontaram com as agruras dos caminhos e ousaram filmar «As
Mulheres da Beira» no próprio local da Frecha da Mizarela,
produzindo um dos poucos filmes «dos que ficam» para o êxito e a
cinemateca nacional;
Camilo fez «penar» no Convento e
fugir, despenhando-se das rancas de um medronheiro gigante (que
ainda há pouco lá vegetava no Canto do Muro) para os braços do seu
ardente sedutor, uma heroína dos seus imaginosos romances;
Aquilino andou a jornadear com o
seu Malhadinhas pelos montes da orla oriental da comarca até ao
centro do vale onde o pôs a contar as suas fantasiosas proezas;
Ferreira de Castro, nado na sua
Ossela, a lindar com Arouca, por lá andou a abeberar os
«Emigrantes»;
O violento Homem Cristo foi suave
e admirativo para as terras do Arda;
Pinho Leal viveu e escreveu em e
de Arouca;
Sant'Ana Dionísio deu-lhe páginas
de percuciante análise e de recortada beleza formal;
Sousa Costa enamorou-se e
namorou-a como um colegial com aptidões de post-graduado; et j'en
passe...
Pois, apesar disso e em plena era
turística, quantos codistritais terão considerado ínvios os caminhos
que para lá conduzem ou distantes, se não «apenas» serrana esta
terra que tanto tem para oferecer e nunca desapontará o visitante
conhecedor ou, apenas, dotado de sensibilidade e sã curiosidade?!
O convento, monumentosa
reconstrução ampliada de um dos mais vetustos cenóbios do País, rico
na fábrica e nos adornos, belo na decoração, valioso e selecto no
Museu anexo, justificaria, por si só, a viagem. Mas toda a vila e
seu termo oferecem os mais variados motivos de interesse; o
calvário, a capela da Misericórdia, velhas pedras patinadas pelos
séculos, solares,
/ 11 / antigas casas de curiosa arquitectura,
novas avenidas e rancias quelhas ostentando ainda, algumas, os
velhos toponímicos...
Em contraste com as «velharias»
para admirar, outras há que o visitante não desdenhará de gostar: os
sempre saborosos doces conventuais – o pão de S. Bernardo ou Bola do
Convento, o famoso Pão de Ló de Arouca, Melindres, Cavacas,
Castanhas doces, Roscas de amêndoa, Manjar, Morcelas, etc., etc.,
que nobilitam qualquer chá e se deixam acompanhar, complacentemente,
com o vinho verde local, com precedência para o Branco, de limitada
produção mas ilimitadas virtudes.
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CASA DA CELA
(Urrô–Arouca) – Pertence aos Ex.mos Senhores Dr. Albano de
Almeida Rebelo e D. Maria Angelina de Melo Pina Rebelo.
Vindo-lhe a passar a um dos lados a moderna estrada de acesso à
vila, enquanto que o antigo caminho lhe era perpendicular, pela
frente da capela, foi valorizada, na sua composição
arquitectónica e com grande equilíbrio, com a renovação da parte
do topo de poente. Define, de forma superior, a arquitectura
domiciliária em que viveu a fidalguia arouquense setecentista
(N. G.) |
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Caberiam ainda, com incontestável
justiça, algumas linhas para as frutas – as castanhas, os melões e
as cerejas, são já bem conhecidas da beira-mar – mas hoje, alargadas
e mais cuidadas as culturas, abrangem seleccionada variedade de
pomos.
Correria o risco de desmentir o
que me propus no início deste escrito se me alongasse, cedendo ao
natural deseja de mostrar a qualidade e variedade de paisagens que
Arouca pode proporcionar; limitar-me-ei pois a enunciar alguns
locais donde, mais vantajosamente, se pode contemplar em vastos
horizontes a riqueza panorâmica de montes e vales.
Para quem venha da sede do
distrito, ao entrar, em Chã d'Ave, na fronteira do concelho, logo se
poderá extasiar, ao descer para o vale de Rôssas, com variada e bela
paisagem. Depois é o vale, estrangulado na ciclópica garganta
rochosa da Pedra-Má, até à vila.
Sobranceiro a esta levanta-se o
monte da Senhora da Mó, que dedicada comissão de iniciativa vai
preparando e será, no futuro, para além da beleza panorâmica
natural, um Miradouro de alta cotação nacional.
As novas vias, para Alvarenga e
para a Zona Florestal da Feira, recentemente abertas ao tráfego
automóvel, trouxeram para a avidez admirativa dos que sabem e podem
ver, paisagens de amplíssima extensão e raro encantamento, no dizer
de cultos apreciadores que ali se têm extasiado.
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Do perímetro florestal da Freita,
pela Frecha da Mizarela, onde o Coima se despenha ao nascer, num
salto magnífico que os geólogos consideram uma das maiores – se não
a maior – fractura geológica na Península Ibérica, pode o viajante
prosseguir até Vale de Cambra, num continuado desdobrar de emoções
de beleza e – assim o esperamos – não tardará muito que a ligação a
S. Pedro do Sul e Viseu mais venha ampliar a possibilidade de sentir
o sortilégio noutros aspectos e pormenores, numa zona ainda vedada
ao grande turismo, aparte o encurtamento e facilitação, como
comodidades novas para o viajante que das altas Beiras queira
atingir o Porto e terras do Norte do País. |
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CASA DA
CELA (Urrô–Arouca) |
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As rodovias de Arouca ao Porto,
por Cabeçais e Vila da Feira ou por Castelo de Paiva e marginal do
Douro, oferecem outras vistas diferentes e igualmente acidentadas
ou policrónicas que o viandante apreciará para seu gozo.
Deixo, apenas esboçado, um índice
para os que já conhecem poderem recordar mais facilmente e que aos
não iniciados sirva de sugestão para uma visita. Peca, o escrito,
pelas insuficiências de toda a ordem, mas antes assim, para que os
visitantes sintam desapontamento apenas no fim da leitura, a ser
largamente compensada com o que não foi enunciado ou ficou mal
apontado.
As empoladas propagandas, do tipo
agência de viagens, trazem nos nossos dias os encómios tão
enfestados que o viajante, por vezes, dificilmente reconhece o
local que visita; não será igual desta feita, pois lhes posso
assegurar que a verdade fica esquiçada em tão débil imagem que se
surpreenderão, sim, no contraste entre a realidade e a previsão
quando os olhos a venham contemplar e admirar na «nudez forte da
verdade».
Parafraseando Camões, hão-de
sentir bem, e confirmar que «mais vale experimentá-lo que
julgá-lo».
Outubro de 1967. |