Em 1871 veio a Aveiro, em comissão
de serviço público, Manuel Alberto Guerra Leal. Natural do Porto, e
nascido em Fevereiro de 1819, segundo o Dicionário Bibliográfico de
Inocêncio Francisco da Silva (T. XVI, de 1893), Guerra Leal havia
sido aluno da Academia de Marinha e ajudante do Corpo de
Guarda-Barreiras do Porto, sabendo-se que em 1889 era por ele
exercido o elevado cargo de Reverificador do Círculo Aduaneiro do
Norte.
Não será, pois, arriscado supor que
o objectivo da missão oficial que o trouxe a Aveiro em 1871 tenha
estado relacionado com os serviços alfandegários locais.
Guerra Leal era também escritor e
dramaturgo. Da sua autoria regista Inocêncio:
O Fratricida, drama original
representado na Sociedade Philo-Dramática Portuense, e impresso em
1843.
O Juramento ou o Cavaleiro de
Cristo, drama histórico, representado no teatro de S. João, do
Porto, por ocasião da visita da Rainha D. Maria lI, e publicado em
1852.
O Testamento, drama histórico.
Os Argonautas, drama mitológico.
Há bens que vêm por mal, romance
original publicado em folhetins do "Comércio do Porto" em 1859.
Atribui-se-lhe ainda a autoria do
poema As duas actrizes, impresso no Porto em 1849.
Além destas obras originais, Guerra
Leal deixou traduções de vários romances franceses, parte dos quais
a Imprensa periódica publicou em folhetim. Como jornalista que
também foi, conhece-se colaboração sua nos jornais "Porto e Carta",
"Brás Tisana", "Comércio do Porto", "Teatro", "Cronista", "Defensor",
"Primeiro
de Dezembro", e sabe-se que escreveu ainda em outros mais. Era, no
Porto, o correspondente do "Jornal d’O Comércio do Rio de Janeiro".
O Governo agraciou Guerra Leal com a
comenda de Cavaleiro da Ordem de Cristo, índice do apreço e da
consideração em que era tido.
Em Aveiro, a cidade e a vida local
seduziram-no inteiramente; e como teve de permanecer no exercício da
sua comissão nada menos do que trinta dias, Guerra Leal deu-se ao
grato trabalho de lhe investigar a história, nas suas linhas mais
acessíveis, claro está, e, consequentemente, ao prazer de a relatar
também.
A bibliografia informativa de
Aveiro, à data, era escassa: o 1.º volume do Portugal antigo e
moderno, de Pinho Leal, é de 1873; as Memórias de Aveiro, de Marques
Gomes, só quatro anos depois da vinda de Guerra Leal a Aveiro
apareceram (1875); e o Distrito de Aveiro, então, data de muito mais
tarde (1877); apenas a corografias gerais se poderia, pois,
recorrer, e quase só para esclarecimentos de natureza histórica: a
Corografia Portuguesa, do Padre Carvalho da Costa, a Geografia
Histórica, de D. Luís Caetano de Lima, o Mapa de Portugal Antigo e Moderno, de João
Baptista de Castro, o Dicionário Geográfico, do Padre Luís Cardoso,
o Dicionário, de Frei Francisco dos Prazeres Maranhão, e pouco mais.
Guerra Leal socorreu-se, segundo confessa, deste último
dicionarista, cuja obra fora reimpressa, em 3.ª edição, em 1862,
actualizada pelo Padre Manuel Bernardes Branco
(1), e, juntando aos
elementos ali colhidos as suas observações
/ 49 / pessoais,
dirigidas a todos os sectores da vida aveirense, organizou duas
interessantíssimas páginas de narrativa que datou de 28 de Maio e
que saíram em rodapé no "Comércio do Porto" (n.º 146) de 26 de Junho
do citado ano de 1871 – há, portanto, pouco menos de um século,
circunstância essa que lhes confere indiscutível valor como
autorizado depoimento pessoal a considerar na história da cidade e
da região circundante.
Ainda hoje essas Recordações de Aveiro (que assim se intitulam as duas páginas de rodapé do
"Comércio
do Porto") se acompanham não apenas como curiosidade do século
passado, mas, queremos crer, com justo e manifesto agrado. A fina
sensibilidade de Guerra Leal não passou despercebida a indelével
característica paisagística da cidade, registando logo de início que
«o seu aspecto geral é alegre, porque a luz se entorna por igual
tanto na cidade como na ria e extensa planura que a cercam, porém a
esta alegria silenciosa não se associa o bulício que denuncia a vida
dos grandes centros de população».
Mais adiante, é ainda a luminosidade
e a alegria da cidade que lhe afloram à memória, como nota mais
viva, e para elas busca explicação, que logo se lhe afigura
convincente:
«Não há edifícios elevados em Aveiro, e é por isso que a luz se derrama por igual, dando à cidade
feição alegre. A razão é talvez a falta de material para construções
muito levantadas, pois que as paredes são feitas de adôbos, que é
uma pedra artificial, mas pouco dura, fabricada de cal e areia».
Deleita-se repetidamente na evocação
das estradas que convergem à cidade, ensombradas de fresco arvoredo;
alegra-se com o aspecto dos canais da Ria que desde o Vouga se
espraiam; enternece-se com a rara beleza dos barcos a velejar por
entre os milharais; regista as largas perspectivas que do Jardim
Público se descortina vam; enaltece a vida laboriosa do bom povo das
Gafanhas, cuja origem define, a beleza e o génio expansivo da mulher
de Ílhavo, a afabilidade do trato e a geral educação dos aveirenses, e não fica indiferente à já clássica
distinção da tricana de Aveiro, da qual, observa ele com precisão
ainda hoje não obliterada, não é nada difícil fazer uma senhora...
A Ria, o Teatro, o Liceu, o Clube
Recreativo, o Cemitério, o Caminho-de-Ferro e a implicação por ele
trazida então à acanhada vida comercial da cidade, a Filarmónica da
Associação dos Artistas, a falta de indústrias, todos esses aspectos
da vida local lhe mereceram comentário ou adequada palavra de
apreço, tornando as suas Recordações de Aveiro, de perfeita
correcção literária, apreciável leitura para os agitados dias de
hoje, em que um vento de renovação arrebata a cidade para horizontes
insuspeitados então e imprevisíveis até.
Guerra Leal, jornalista
experimentado e dramaturgo consciente, conhecia bem a carpintaria
duma narrativa do género, arquitectando-a e conduzindo-a de forma a
manter-lhe interesse e a assegurar-lhe vida para além da efemeridade
inglória dum jornal. Exumando, pois, do repositório inesgotável da
Imprensa periódica do século passado o artigo de Manuel Alberto
Guerra Leal, que a seguir integralmente se reproduz, presta-se
devida homenagem a um escritor que soube captar o raro sortilégio da
luz e da alegria inatas em Aveiro e na região, e oferece-se uma
página mais ao futuro álbum de recordações da vida de uma cidade em
florescente e franca evolução social.
Descrevendo Aveiro, diz Frei
Francisco dos Prazeres Maranhão (págs. 27 e 28):
«Aveiro, Cidade (Bispo) e Distrito.
Beira.
Situada sobre a ria do seu nome a S.
O. e perto da foz do Vouga, 9 léguas Porto, 12 Viseu, 43 Lisboa.
(Latitude Norte 40.0 11'. Longitude oriental 15').
No século XVI tinha Aveiro 11.000
habitantes e 150 embarcações próprias e em alguns anos armou 60
navios para a pesca do bacalhau no banco da Terra Nova: porém o jugo
espanhol, e as areias que se acumularam na barra até Mira, tudo
fizeram retrogradar. Em 1860 os direitos sobre o pescado em todo
Portugal produziram para o Estado 59:056$824 reis.
Hoje tem 1:403 fogos em duas
freguesias (Nossa Senhora da Glória 814, Vera Cruz 589), Concelho
2:721 fogos. Comarca 7:741 fogos. Distrito 58:103 fogos. Feira, 25
Março: 8 dias.
A ria de Aveiro é uma espécie de
lago salgado e de pouco fundo, que comunica com o mar pela barra
velha (hoje quase de todo obstruída) que fica perto de Mira, pela
barra nova, que a Oeste de Aveiro foi aberta em 1808 (com a despesa
de 100:000$000 reis), e pela comunicação, que o mar abriu em 1838 ao
Sul da barra nova; uma língua de areia que se estende desde Ovar até
à barra velha, e que tem 7 léguas de comprimento e 500 a 1:000
passos de largura, separa do mar esta ria, que
/ 50 / tem 7 léguas
de comprimento de Norte a Sul e meia légua na maior largura, despresadas as sinuosidades: nela desaguam os rios Antuã, Vouga,
Soza, e algumas ribeiras.
Segundo Viterbo (Elucidário, Vb.
Estrada), parece que no tempo dos Romanos ainda não existia este
agregado de águas: e é provável que torne a desaparecer, porque a
ria diariamente diminue de fundo.
É impossível calcular os réditos
dela em sal, peixe, caça paludal, e moliço (erva que se cria debaixo
de água, e, tirada com o lodo, serve para esterco – Há quem lote o
rédito anual do peixe (taínhas, enguias, linguados, solhas,
mariscos, etc.) em 20:000$000 reis; o do sal em 15:000$000 reis; o
do moliço em 24:000 cruzados. No canal, aberto pelo mar em 1838,
pesca-se muito polvo –
As suas vizinhanças, que em parte se
podem chamar Paizes Baixos de Portugal, são pela maior parte
abundantes das cousas necessárias para a vida, à excepção de azeite,
que há pouco.
Seria muito útil povoar de pinheiros
a língua de areia; e tentar a aclimatação de mangue (árvore do
Brasil, que se assemelha ao amieiro e só vegeta em terreno lavado de
água salgada) nas muitas ilhas alagadiças, de que a ria está
semeada: sortindo bom efeito, haveria uma barreira contra as areias
do mar; e a Murtoza e outras povoações seriam abastecidas de lenha,
etc.
Em Salreu, Travassô, e outros sítios
das vizinhanças da ria, mesmo sobre colinas, desde a superfície da
terra até mais de duas braças de profundidade, encontram-se camadas
de seixos redondos e levigados como os dos rios, o que dá a entender
que o terreno foi trabalhado com violenta agitação de enorme peso de
águas.
Veja Planos, e Província da
Beira na
Introdução.
A exportação de Aveiro reduz-se a
sal, laranja, cortiça; e vidro e porcelanas da Vista Alegre. Veja
Indústria na Introdução.
Na barra desta cidade entraram no
ano de 1861, 341 navios, e saíram 357».
Com esta base informativa e com o
resultado das suas deambulações pela cidade e região, escreveu então
Guerra Leal as suas RECORDAÇÕES DE AVEIRO.
«Quando ahi qualquer observador
curioso, mal sahe do mais ou menos limitado circulo das suas digressões habituaes, se
recreia dando publicidade às suas impressões de viagem, quer-nos
parecer que se não estranhará que sigamos o exemplo, dando
publicidade ás recordações que trouxemos de Aveiro, quando, em
comissão de serviço público, alli demoramos algum tempo.
A terra natal do profundo polygrapho
Ayres Barboza, preceptor do cardeal-rei; a cidade em que nasceu o
famoso orador José Estevão, deixa agradaveis impressões em quem a
visita.
O seu aspecto geral é alegre, porque
a luz se entorna por igual tanto na cidade como na ria e extensa
planura que a cercam, porém a esta alegria silenciosa não se associa
o bulício que denuncia a vida dos grandes centros de população.
A decadencia de Aveiro revela-se até
no decrescimento do número dos seus habitantes, que no seculo XVI
era de 11:000, segundo diz frei Francisco dos Prazeres Maranhão.
Hoje não vai além de 7:000 nas duas freguezias (Gloria e Vera Cruz)
em que desde 1834 se divide.
Antes tinha a freguezia de S. Miguel
(matriz), de que era prior um freire de Aviz, e tres curatos, que o
commendador da mesma OrdeJYI apresentava.
A nova divisão parochial é obra do
não pouco falIado Lopes Lima, que foi o primeiro prefeito de Aveiro,
depois da restauração liberal. Contam os desse tempo que, resolvendo
elIe estabelecer uma das suas novas freguezias (a igreja dos
dominicos, quiz se lhe chamasse da Gloria, por ser o segundo nome da
rainha D. Maria II, porém o caso é que, comquanto a freguezia se
denomine da Gloria, a igreja ficou sendo sempre de S. Domingos.
É que contra a mudança de nome
reagiram as muitas recordações que os frades lá deixaram de si.
A industria vizivel de Aveiro é a
exploração da sua ria, que, separada do mar por uma larga trincheira
de areia na extensão de 35 kilometros, de N. a S., é admirável com
as suas quatrocentas marinhas, com os seus canaes e com as suas
ilhas, que figuram um pittoresco archipelago. É n'estas ilhas que se
produz o junco e bônho, de que annualmente se fabricam muitos
milhares de esteiras.
É calculado em 365:000$000 réis o
rendimento annual da ria em sal, peixe, caça paludal, junco, bônho e
moliço. O moliço é uma planta aquatica que constantemente se
reproduz no fundo da ria e que se emprega no adubo das terras.
São innumeros os pequenos barcos ou
bateiras
/ 51 / que em toda a ria e ramaes d'elIa se occupam na
apanha do moliço, que é depositado e vendido em certos sitios
denominados malhadas. Esta exploração torna a ria menos piscosa do
que deveria ser, porque, de envolta com o moliço, é colhido muito
peixe em embrião.
Um braço de ria, canalisado, com
belIo caes de um a outro lado, corta o centro da cidade, de O. a E..
Uma ponte de dous arcos liga as duas
partes da cidade divididas por este canal. É na parte meridional que
se acham a alfandega, governo civil, repartições do correio e
telegrapho, lyceu, casa da camara e tribunal, Mlsericordia, jardim
municipal, etc.
Em continuação do caes, do lado S.,
vai até á barra, na extensão de 7 kilometros, uma pittoresca
estrada, que corre pelo meio de marinhas e da ria, sendo em grande
parte orlada de um vistoso arbusto, a que lá chamam tramagueira, e
que tem suas parecenças com o alecrim do norte.
No seguimento d'esta estrada ha uma
ponte de um só arco, por baixo da qual atravessa o canal que vai a
Ilhavo, Vista Alegre, Vagos, etc., e ha tambem a ponte denominada
das Cambeias, proxima à Gafanha.
É curiosa e de data pouco remota a
historia d'esta povoação original, que occupa uma pequena peninsula.
Era tudo areal quando das partes de Mira para alli vieram os
fundadores d' aquelIa colonia agricola, que á força de trabalho e
perseverança conseguiu, com o lodo e moliço da ria, transformar uma
grande parte do areal em terreno productivo. Foi crescendo a
população, que já hoje conta uns 200 fogos, e o que fôra esteril
areal pouco a pouco se transformou em fertil e extensa campina, que
fornece o mercado de Aveiro de muito milho, feijão, ervilha, batata,
hortaliça, gallinhas, ovos, etc.
Os anhos da Gafanha são muito
apreciados, pelo sabor agradavel e especial da carne.
Não ha alli arvores fructiferas nem
vinhas, porque a camada de terra productiva, pela sua pequena
profundidade, lhes não permite crescimento.
São denominados gafanhões os
habitantes da Gafanha, a seu typo physionomico denuncia feicão
árabe, os homens são robustos e de boas fórmas, e as mulheres de
mediana estatura, mas cheias e vigorosas. São de caracter expansivo
e indole benevola. É raridade o casamento de um gafanhão, homem ou
mulher, fora da colonia, que talvez por isso conserva immutavel a
sua feição primitiva. Cada nova casa edificada é signal de que um
novo casal se estabeleceu. Há alli duas capelIas, modestas, mas
decentes, edificadas e consagradas ao culto, à custa da colonia.
Em junho do anno passado vivia, e
talvez viva ainda, a matriarcha d'aquelIa povoação. Chamavam-lhe a
tia Joanna e parecIa que, embebecida no fumo do seu cachimbo, se
deslembrava da conta do tempo abrangido pelos seus 90 janeiros. É a
idade que nos disseram deveria ter.
São belIas as estradas que sahem de
Aveiro para Esgueira, S. Bernardo, Arada, Ilhavo e Vista Alegre,
etc. Correm por entre formosas campinas e são na maior parte orladas
de arvoredo, que as abrigam do sol. Reconhece-se que andára alli
amor de filho que a todo o custo queria levar vida onde faltavam
elementos para a sustentar.
O caminho-de-ferro, pondo Aveiro a
duas horas de distancia do Porto, prejudicou o commercio d'aquella
cidade, tanto no tocante ao consumo local como nas suas relações com
uma parte da Beira.
Diz o já citado author que a praça
de Aveiro tinha no seculo XVI 150 embarcações e que alguns annos
armára 60 navios para a pesca do bacalhau na Terra Nova. Hoje está
muito reduzido este numero, limitando-se a exportação ao sal, que
regula anualmente por 18 a 20:000 moios, termo médio, a alguma
cortiça, pouco vinho, e minerio das minas do Braçal e Palhal, na
maior parte exportado nos navios inglezes que importam o carvão para
aquellas minas.
O commercio maritimo de Aveiro é
quasi todo de cabotagem.
A exportação de fructa, que antes do
caminho de ferro era pela barra, é agora pelo Porto, vindo para aqui
pela via ferrea. É que na barra de Aveiro, onde a entrada é certa
com todo o tempo, a sahida é tão incerta, que não eram raros os
casos de se perderem, com a demora, carregações completas de fructa,
sendo mister renoval-as.
A principal vantagem que Aveiro tira
do caminho de ferro é a exportação de mariscos e peixe para Badajoz,
que, começada ha pouco, é já importante.
A antiga barra de Aveiro era para o
lado de Mira, a 15 kilometros ao sul da actual. Foi tapada pelo
coronel de engenheiros Luiz Gomes de Carvalho, que em 1808 abriu a
barra nova, com o dispendio de 250:000 cruzados.
/ 52 / O forte da barra fica para
dentro d' ella, na distancia de 1 kilometro, e é situado na praia do
sul. Diz-se que para a sua construcção se empregaram os materiaes da
muralha do bairro de Aveiro (com) que o infante D. Pedro, filho de
D. João I, a muralhára.
Na praia do norte, em frente do
forte, levanta-se, no meio do areal que se interpõe entre o mar e a
ria, uma elegante capella, denominada de S. Jacinto, que deu o seu
nome áquella praia. É construida de pedra de Ançã, de fórma
polygonal, sendo a sua architectura singela, mas elegante. Na festa
do santo ha alli arraial.
Do bairro amuralhado de que fallamos,
ainda hoje junto ao edificio que foi convento de S. Domingos,
defronte do convento das freiras de Jesus, existe vestigios de uma
porta, que se denominava do Sol, e onde, segundo a tradição,
appareceu Nossa Senhora ao velho Affonso Domingues.
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Largo
do Rossio, em Aveiro, nos meados do século XIX, vendo-se ao
fundo a Capela de S. João. |
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Na ria de Aveiro entram o rio Vouga,
a uns 4 kilometros ao norte d'aquella cidade, o rio Antuão, em
Estarreja, o Souza ou Sóza e differentes ribeiras, depois de
alimentarem os innumeraveis canaes que em todos os sentidos cortam
as ferteis e extensas campinas que se denominam campos do Vouga, e
em que vogam centenas de pequenos barcos, que de longe parece
velejarem por sobre os milhos, quando estes estão altos. É lindo
aquillo!
A cousa de 5 kilometros de Aveiro e
na proximidade do esplendido sitio da bellissima Ponte da Rata
juntam-se o Agueda e Vouga. É nos lagos formados na confluencia
d'estes dous rios que, ao abrigo das plantas aquaticas (n'esta
quadra floridas) que cobrem a superficie d'esses lagos, abundam os
peixes vermelhos e dourados, denominados pimpões, e que o já
citado author diz ser a especie chyprinus auratus que os
inglezes trouxeram da China em 1611. Conta elle que um doutor Leite,
de Aveiro, os tinha, em 1800, como raridade, e que, escapando-se do
tanque em que se achavam para a ria, subiram os rios affluentes
d'ella e se propagaram a ponto de se tornarem vulgares.
Fallaremos agora da cidade.
A obra moderna que alli mais attrahe
a attenção dos visitantes é o edificio do lyceu, que toma o lado
oeste na praça ou largo em que se acham a Misericordia. Asylo da
Infancia, do lado éste, casa da camara e tribunal, do lado sul, o
edificio do correio e telegrapho, do lado norte.
O edificio do lyceu de Aveiro é com
aquelle destino o primeiro do paiz. No primeiro pavimento acommoda
as repartições do governo civil
/ 53 / e da fazenda, que para alli
foram mudadas quando em 1864 ardeu o paço episcopal.
A construcção interna e externa é
elegante. Ás tres portas ogivaes da entrada, no alto da escadaria
exterior, correspondem outras tantas no fundo do atrio, communicando
a do centro para o interior do primeiro pavimento e as lateraes para
as escadarias que vão ao patamar, do meio do qual arranca, em
sentido inverso e allumiada por uma bella claraboia, em fórma de
zimborio, a escada que dá o accesso para o segundo pavimento,
occupado pelas aulas, bibliotheca, gabinete onde se acham as
vitrines que conteem instrumentos de physica e exemplares de
mineralogia, ornitologia, etc., e salão dos exames, no qual vimos um
retrato, de meio corpo e tamanho natural, de José Estevão, ao qual
Aveiro deve aquelle e outros melhoramentos com que a todo o custo
queria engrandecer a sua terra natal.
A bibliotheca, que comprehende cêrca
de 4:000 volumes, está intelligentemente disposta e bem coordenada.
Nas aulas os lugares para os alumnos formam, em frente da cadeira do
professor, um amphytheatro, de cadeiras de braços em semi-circulo. É
abundante a luz em todas as partes do edificio.
Em continuação ao lyceu ha, em
principio de construcção, um edificio destinado para theatro, que
ficou assim porque faltou o homem que nunca cansára no empenho de
elevar Aveiro ao nivel de grande cidade.
É obra ainda mais moderna o jardim
municipal, no extremo sul da cidade, situado na proximidade da
igreja e convento de Santo Antonio, hoje quartel militar.
O jardim de Aveiro, dividido em
alameda e jardim propriamente dito, não tem nada que invejar a
qualquer dos melhores do paiz. É bonito, espaçoso, e cuidadosa e
intelligentemente tractado. Tem o senão de estar a cavalleiro de uns
arrozaes que lhe ficam do lado do poente, que é o único que d'alli
domina largo horizonte, que abrange uma grande parte da ria e
formosas campinas.
É tambem obra moderna o cemiterio,
situado a E. da parte sul da cidade, sobranceiro ao braço ou canal
da ria que passa a sopé da alameda do Cojo (hoje praça da herva e
fructa), com a qual defronta. Tem o mas de estar muito
proximo do centro da povoação.
Deparando alli com a capella-jazigo
do famoso orador José Estevão, não podémos resistir á tentação de
escrever a lapis, na parede exterior da frente, o seguinte
improviso:
"S'os eccos inda soam na tribuna
"Da voz que lá vibrára audaz,
potente,
"Em peitos portuguezes accendendo
"Da patria liberdade amor ardente...
"Os labios que a soltavam tão
brilhante,
"Nas pompas da palavra bella e
forte,
"Silencio sepulcral aqui envolve
"Na eterna mudez – mudez da morte!
«GUERRA LEAL»
Do meio do cemiterio ergue-se uma
columna de marmore, sobre a qual pousa uma urna funeraria, tambem de
marmore. Duas faces do pedestal dizem o que é aquelle funebre
monumento.
Em uma d'ellas lê-se:
"7 de maio de 1829
"Francisco Manoel Gravito da Veiga
Lima.
"Manoel Luiz Nogueira
"Clemente de Mello Soares de
Freitas.
"Francisco Silverio Magalhães
Serrão.
"9 de outubro de 1829
"Clemente de Moraes Sarmento.
"João Henriques Ferreira".
Na face opposta lê-se:
"Os ossos aqui tem – a alma no
empirio –
"Seis illustres varões por quem
fremente
"A liberdade chora. Atroz delirio
"N'elles puniu o esforço
independente,
"E heroes os fez co'as palmas do
martyrio.
"Fique a sua lembrança eternamente
"Nos nossos corações, na patria
historia.
"Paz aos seus restos-aos seus nomes
gloria
(MENDES LEAL».
Aquelle monumento, o cemiterio e
jardim municipal são obras das camaras a que presidiu o snr. Manoel
Firmino de Almeida Maia, segundo nos disseram.
Não ha edificios elevados em Aveiro,
e é por isso que a luz se derrama por igual, dando á cidade feição
alegre. A razão é talvez a falta de material para construcções muito
levantadas, pois que as paredes são feitas de adôbos, que é uma
pedra artificial, mas pouco dura, fabricada de cal e areia. Nas
portadas, janellas, etc., emprega-se a pedra calcaria de
/ 54 / Outil e Ançã, cujo transporte, na distancia de uns 25 kilometros, a
torna cara.
Os edificios mais notaveis da cidade
são os palacetes do visconde de Almeidinha e par do reino Casimiro
Barreto na parte meridional, e o do actual presidente da camara na
parte septentrional. O primeiro occupa, com a sua bella fachada,
todo o lado do largo em que está situado, proximo ao jardim. Alli se
reune algumas vezes a boa sociedade aveirense, á qual a fidalga
bizarria do dono da casa liberalisa attractiva recepção.
Os templos mais notaveis de Aveiro
são os de Jesus, S. Domingos e Carmo, todos tres na parte meridional
da cidade. No primeiro e ultimo é muito para se ver a primorosa obra
de talha dourada que os guarnece. No segundo é principalmente para
muita admiração o tumulo da princeza Santa Joanna, filha de Affonso
V, abbadessa que fôra d'aquelle convento de dominicas. O tumulo, que
consta ser trabalho de artistas genovezes, foi mandado fazer por D.
Pedro lI, que, tendo alcançado do Papa Innocencio XI a beatificação
da princeza em 4 de abril de 1693, lhe fez erigir sumptuoso tumulo
de marmore, em primoroso mozaico, no mesmo local onde, em campa raza,
fôra sepultada, junto ao côro, do lado da epistola. A trasladação
teve lugar a 22 de outubro de 1711, reinando já D. João V. Pena é
que um primor artistico d'aquella ordem esteja de grades a dentro, e
que só atravez d'ellas possa ser visto e admirado, e, ainda assim,
imperfeitamente, porque só se lhe vê a frente.
A infanta D. Joanna, nascida a 6 de
fevereiro de 1452, tomou o habito de S. Domingos no mosteiro de
Jesus, de Aveiro, em 1475, e falleceu em cheiro de santidade a 22 de
outubro de 1511.
Temos ideia de que na capella-mór ha
algumas pinturas representando passagens da vida da santa.
A procissão de Santa Joanna é das
festas mais grandiosas de Aveiro. Apparecem
n'esta solemnidade riquissimos paramentos, tão notaveis pelo valor
como pelo perfeito estado de conservação. Ouvimos que foram donativo
de D. João V.
Junto ao local em que está o tumulo
da princeza santa, mas com entrada pela igreja, ha uma capella
denominada de Santo Agostinho, na qual se vê um magestoso tumulo de
pedra de Ançã perfeitamente trabalhada. Pousa sobre dous leões e tem
na parte superior tres caveiras com corôas ducaes, rematando o um
escudo real, com corôa ducal, e um trophéu em aspa, formado por uma
espada embainhada e o emblema da morte. É o tumulo de um duque de
Aveiro.
Á exc.ma snr.a D. Anna Emilia do
Espirito Santo, sympathica abbadessa d'aquelle mosteiro, e senhora
de esmerada educação e espirito culto, devemos a fineza de algumas
informações que dizem a razão porque alli se acha o tumulo de um
duque de Aveiro.
O filho natural de D. João lI, D.
Jorge, duque de Coimbra, do qual procedem os duques de Aveiro, foi
até aos nove annos educado por sua tia, a infanta Santa Joanna,
tendo-se solicitado um breve de Roma para elle estar de dia no
convento, indo á noute para a companhia de D. Filippa de Noronha,
condessa de Villa Verde e tia da santa, que residia em uma casa
contigua ao convento, ao qual foi depois encorporada.
A explicação d'este parentesco está
em que a mãi de D. Filippa fôra D. Izabel, filha natural de D.
Fernando I e casada em 1378 com D. Affonso, conde de Gijon e
Noronha, filho bastardo de Henrique II de Castella, e do qual
viuvára, voltando depois de viuva para Portugal.
D'este matrimonio procederam os
condes de Villa Verde e de Cantanhede, senhores de Ilhavo, etc.
Era versão corrente que o cadaver
encerrado no tumulo de que fallamos era o de D. Jayme, filho de D.
Jorge e 1.º duque de Aveiro.
A duvida em que a este respeito nos
deixou o trabalho de esculptura do tumulo, que denuncía epocha mais
aproximada do nosso tempo, vimos que era justificada, quando,
depois, podémos obter da benevolencia de um respeitavel cavalheiro
cópia de um termo que se acha no tombo dos irmãos da Misericordia e
que reza assim:
Termo do dia em que chegou a esta
VilIa o cadaver do Ex.mo Duque nosso Irmão, a quem acompanhou á
sepultura toda a Irmandade
Aos oito de Julho de mil cetecentos
quarenta e cinco annos, nesta nobre e notavel Villa d'Aveiro, e na
Igreja da Mizericordia delIa, se ajuntou a sua Irmandade que tinha
sido convocada a som de campa corrida: ahi pelo Irmão Jaze Barreto
Ferraz, CavalIeiro professo da Ordem de Christo, e Provedor desta
Santa Caza, foi dito, que o III.mo e Ex.mo Snr. D. Gabriel de
Lencastre, Duque d'Aveiro, que tinha sido Irmão e Provedor desta
Santa Caza, fallecera em Lisboa a vinte e trez de Junho, e deixara
determinado o vir enterrar-se ao Convento das Religiosas de Jezus,
junto ao tumulo
/ 55 / de sua Tia Santa Joanna Princeza; e que
segundo o avizo, que lhe fizera D. Nicolau de Gusman, que fora
estribeiro do Ex.mo Duque, e o acompanhava, queria que a Irmandade
desta Santa Caza o acompanhasse, e conduzice o seu caixão até a
sepultura. O que ouvido por todos forão esperar a corpo do Ex.mo
Duque á Rua de Jezus; ahi pelos Irmãos de maior, e menor condição,
que nomiou o Irmão Provedor, se tirou do Coche em que vinha, foi
levado á capella mór das ditas Religiozas, e acabado o Officio, e
Missa, conduzido á Capella de Santo Agostinho, junto ao tumulo de
Santa Joanna, aonde fizerão o jazigo para o Ex.mo Duque; assistindo
a todos estes actos a nossa Irmandade incorporada dentro na mesma
Igreja athé o fim de tudo. De que o Irmão Provedor mandou fazer este
termo que assignou, e eu João Pedro da Silveira Mascarenhas,
Escrivão da Meza e escrevi e assignei – João Pedro da Silveira
Mascarenhas.
Na capella-mór da mesma igreja
existe, do lado do evangelho, uma lapide de marmore que fecha o
jazigo de D. Joanna de Tavora, fallecida em 1592.
Proximo ao mosteiro de Jesus fica o
templo de S. Domingos, hoje igreja parochial da freguezia da Gloria.
É notavel pelas memorias do passado que encerra, e entre as quaes
nos indicaram, como a de mais nomeada, o tumulo de uma D. Catharina
de Athayde, que alli tomam como sendo a Natercia de Camões.
Funda-se esta opinião na similhança do nome.
No epitaphio do tumulo lê-se: «D.
Catharina de Athayde, filha de D. Alvaro de Souza e de D. Filippa de
Athayde, fallecida em 1661».
Aquella de que o author dos «Luziadas»
se enamorou nos serões poeticos da côrte, em que pela protecção e
amisade do duque de Aveiro, e de D. Constantino e D. Theodozio de
Bragança, foi admittido, era filha de D. Antonio de Lima e D. Maria
Bôca Negra, e falleceu em 1556, sendo dama da rainha D. Catharina.
Na capella do Senhor Jesus da
referida igreja vê-se um tumulo pousado sobre tres leões, tendo
deitado, na parte superior, um guerreiro com armadura completa. A
imperfeição da esculptura revela epocha pouco posterior á do
convento, fundado pelo infante D. Pedro em 1423. Jaz n'aquelle
tumulo o mestre João de Albuquerque, doador das muitas terras que o
convento de S. Domingos possuia em Aveiro.
Entre as outras igrejas e capellas
d'aquella cidade merece especial menção a capella do Senhor das
Barrocas, no extremo N. da cidade, ao lado da bellissima estrada que
vai a Esgueira, Eixo, etc. A capella é de fórma polygonal, como a de
S. Jacinto, porém de mais rica esculptura. Nas portas lateraes e
principal imita o estylo gothico floreado.
Na porta principal, sobretudo, ha
figuras e lavores de grande merecimento artistico, e pena é que tão
deterioradas estejam pelo tempo, a que a pedra de Ançã não resiste
como resiste o marmore e o nosso granito. O zimborio da capella é
tambem obra notavel, e da facha horisontal que lhe corre em volta da
raiz, por sobre a cornija, goza-se um esplendido panorama em
derredor.
Nos tres conventos de Jesus e Carmo,
na parte meridional, e de Sá, na septentrional (em frente da estrada
que vem da estação do caminho de ferro), existiam em maio do anno
passado tres religiosas em cada um, mas em todos tres havia
educandas e recolhidas.
Das onze fontes publicas de Aveiro a
que mais desafia a curiosidade, pela antiguidade que revela e pelo
nome, é a fonte dos Amores, situada junta á estrada nova. O nome é
talvez o titulo de uma interessante historia ou lenda de que a
tradição se perdeu no correr dos tempos.
Ha em Aveiro uma associação de
artistas que tem uma phylarmonica marcial, bastante regular, e um
pequeno theatro, propriamente seu, e unico na cidade, situado na
proximidade do jardim municipal, em uma rua bastante erma, chamada
do Rato. Ha também um club recreativo, estabelecido na principal rua
da parte septentrional, e onde de tempos a tempos se dão reuniões de
familias. Em continuação d'aquella rua é que se estava fazendo a
nova rua de communicação com o largo do Cojo, denominada de José
Estevão, mas não é a em que o famoso orador nascera, porque essa
fica na parte meridional.
Apesar de tudo, não se observa em
Aveiro nenhum indicio de actividade industrial. O genio, que, como
ministro da Providencia, na decomposição e recomposição constante
das combinações do espirito e das reacções da natureza, ora descobre
verdades novas, ora mostra melhor applicação das antigas, ainda não
conseguiu estabelecer em A veiro o seu predominio sobre as bases
naturaes e solidas do interesse social e local.
Contaram-nos que ha poucos annos se
organisára alli uma empreza para fabricadio de soda, que se gastaram
alguns contos de réis na compra do material e machinas, mas que tudo
se gorára, não obstante as condicões esnecialissimas que alli se dão
para que aquella
/ 56 / industria medrasse! Parece que sobre aquella
cidade pesa ainda a indignação do ministro omnipotente que em 1758
nem o nome lhe queria deixar, ordenando se chamasse Nova Bragança!
O brazão de Aveiro denuncía o muito
que em outras éras valeu aquella cidade. Tem no escudo uma aguia
real coroada, com as azas abertas, tendo tanto na parte superior
como inferior o crescente e uma estrella, e de um dos lados as
quinas e do outro as espheras.
A 5 kilometros de Aveiro, para o
lado do sul, ha a villa de Ilhavo, e pouco distante d'esta o sitio
denominado Vista Alegre. Para um e outro ponto ha uma bella estrada,
e tambem communicação pela ria.
A villa de Ilhavo é mais populosa
que Aveiro e de aspecto agradavel. Gosta-se d'ella á primeira vista,
contribuindo para isto, no seu tanto, os costumes pittorescos,
beleza e genio expansivo das mulheres. Não vimos que houvesse alli
outra industria além da pescaria.
A matriz de Ilhavo é dos maiores
templos que temos visto. Disseram-nos que a não enchem 4:000
pessoas! Tem uma custodia, tão notavel tanto pelo trabalho artistico
e valor intrinseco, que nos disseram ser de 1:000$000 réis, como
pela historia do modo como foi salva na occasião da invasão franceza.
O local da Vista Alegre merece em
boa verdade o nome. Situado na margem E. do canal da ria, que lhe dá
communicação fluvial com a ponte de Ilhavo e Aveiro, é um lugar
amêno e aprazivel, com o seu viçoso e abundante arvoredo, e com o
seu ar alegre. O local é occupado pela fabrica de louça e vidraria
pertencente á familia dos snrs. Ferreiras Pinto Bastos. É um dos
mais notaveis estabelecimentos industriaes do paiz. No deposito dos
productos da fabrica ha muito que ver e admirar, porque ha, em
porcellana, obras que nada te em que invejar ás melhores
estrangeiras.
A igreja da Vista Alegre é um
verdadeiro monumento. O mozaico da capella-mór e principalmente o da
cupula é admiravel.
É tambem de primoroso trabalho o
tumulo do bispo de Coimbra e conde de Arganil, D. Manoel de Moura,
fallecido em 1697, que foi o fundador d'aquelle templo. Sobre o
tumulo está o bispo, com as vestes pontificaes, figurado na hora do
passamento. Todas as figuras allegoricas do quadro e outras que na
parte superior o completam são excellentemente trabalhadas. Ha
tambem alli uma cabeça de S. Jeronymo, pintada no estylo flamengo,
que nos pareceu ser obra de muito valor artistico.
Tirando-se o frontal do altar, vê-se
o Senhor morto, tendo a cabeça sobre o regaço da Virgem, e Santa
Maria Magdalena de joelhos aos pés. É um grupo commovente pela
expressão das imagens, fielmente ajustada, pelo esculptor, á
situação tristissima que representa o ultimo acto da redempção do
mundo christão.
Terminando a exposição das
lembranças que trouxemos de Aveiro, seria injustiça não dizermos
alguma cousa dos habitantes d'aquella cidade, dos quaes conservamos
agradavel recordação.
A gente de Aveiro distingue-se da da
maior parte das terras de provincia pela affabilidade de tracto,
revelando-se, mesmo nas classes inferiores, um certo grau de
educação que não é vulgar por outras partes.
De uma tricana de Aveiro não é nada
difficil fazer uma senhora.
Agora esperamos que se nos releve
qualquer inexactidão, porque em trinta dias, na maior parte
occupados pelas obrigações da commissão official de que estavamos
encarregado, não era cousa facil apurar tudo.
Porto, 28 de maio de 1871.
M. A. GUERRA LEAL.
__________
A informação documental,
sucessivamente mais apurada, como era natural, rectificou há muito
já os pequenos deslizes em que Manuel Alberto Guerra Leal incorreu.
Não os salientaremos, pois, tanto mais que tudo quanto é resultante
da sua observação pessoal tem incontestável merecimento, e só alguma
informação menos cuidada por parte de quem tinha obrigação de
conhecer melhor os factos por ele inquiridos (como a data em que
faleceu a Princesa Santa Joana – a 12 de Maio de 1490 e não a 22 de
Outubro de 1511), o terá feito cair nalguma das involuntárias
incorrecções de que pede o relevem.
Obra regional de maior tomo não
deixará decerto de vir a englobar, e com acentuado proveito, as
curiosas Recordações de Aveiro, de 1871, que acima se registam de
imerecido esquecimento.
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(1) – É de 1839 a 1.ª edição, e devida
aos cuidados de um irmão do autor, já então falecido; a obra teve
2.ª edição em 1852, e 3.ª em 1862; é hoje livro bastante raro. |