Quando, no auge da veneração pelo
patrício egrégio e no desbordamento panegirístico, por exemplo,
Homem Cristo asseverava que Aveiro tudo devia a José Estêvão,
decerto pecava por exagero flagrante de admiração e encómio.
Habituámo-nos a contemplar mais essa libérrima e franca língua de
prata, inveteradamente polemicante e demolidora de ídolos de pés de
barro, na superlativação dos doestos e na cadência corrosiva das
diatribes do que nas demonstrações de apreço e preito irreticentes.
Todavia, o panfletário iconoclasta usava o mesmo ardor másculo a
esfrangalhar o bonifrates que surdisse a empecilhar-Ihe o caminho
árduo da luta e no louvor das figuras que entraram na galeria –
aliás escassa –
da sua persistente simpatia e devoção. |
|
Na circunstância, dizer tudo
representava apenas um excesso de generalização. Os serviços
prestados pelo tribuno à terra natal
–
que, aliás, para além dos benefícios materiais alcançados por seu
valimento, o tomara como modelo e patrono cívico
–
representavam pela importância imediata e pela projecção no futuro,
quase tudo quanto cabia nas mais altas aspirações da época. Assim
haveriam de considerar-se quer em valor absoluto, quer cotejados com
os de maior valia – e muito o foram – devidos aos demais
conterrâneos, seus afeiçoados ou seus antagonistas.
O simples enunciado que figura numa
das quatro inscrições do pedestal da estátua erguida à sua memória
tutelar pelo férvido sentimento de veneração dos seus patrícios –
«melhoramentos da barra, liceu, caminho de ferro, iniciação da
viação pública» – atestam, concludente e incontroversamente, os
problemas de primacial relevo para o progresso de A veiro, de que
foi o incansável, denodado e vitorioso paladino.
Por demais se conhece o calor, a
força persuasiva de esclarecimento e apostolização, o aliei ante e
desinteressado
/ 39 / empenho – da mais escorreita isenção foi,
inalteravelmente, toda a sua vida pública intemerata e ardente
que consagrou à defesa da passagem
da via férrea por Aveiro. A luta travada para atingir esse objectivo
e que não só se dirigia a vencer graníticas rotinas, a convencer os
cépticos e a desmascarar os mal intencionados, mas afectava os
interesses da firma a que fora confiada a construção da linha, anda
narrada por diversos escritos.
O empreiteiro poderoso, homem de
reduzir a cifras os pesos de consciência e de medir por bitolas
auríficas a sua e as alheias, julgou poder calar o bairrismo de José
Estêvão e as convictas disposições de propugnador impoluível de uma
causa justa, tentando a sua mediania com uma fortuna, que ele
sobranceira e indignadamente repeliu. Luís de Magalhães, na esteira
de outros trabalhos biográficos sobre o seu venerado pai, alude ao
episódio em breves linhas, de um traço incisivo lhe realçando o
significado: «Conta-se que Salamanca tentou suborná-lo para que não
insistisse no traçado do caminho-de-ferro do Norte, que levava essa
linha por Aveiro. Ouvi-o dizer muitas vezes, e ouvi, até, contar
que o emissário espanhol tivera de galgar rapidamente as escadas
para não receber senão em palavras a recusa da sua afrontosa
resposta». (1)
Nem só, porém, com o construtor da
linha teve de haver-se. Outros interesses se moviam, sub-reptícia e
cavilosamente, procurando tramar o malogro da sua aspiração. Ele
próprio o comunica ao ministro competente, numa carta em que começa
por ventilar a questão vital da prosperidade aveirense: «Esta obra
para mim nem é igrejinha política, nem preocupação de terra natal.
Interessa à economia geral do Estado». Tratava-se do problema da
barra, que «merecia ser observada por quantos pudessem concorrer
para a melhorar».
Segue logo ao assunto que, de
momento, mais lhe ocupava a atenção, «cai», para usar a sua própria
expressão, na questão do caminho-de-ferro, principal objecto que o
impelia a escrever em busca de escora segura para a obra que o
apaixonava. A Companhia já se inclinara para a «linha de Aveiro»,
que outra não poderia preconizar sem prejuízo da exploração e sem
praticar uma acção iníqua – qual seria a de desviá-la do seu traçado
natural.
Acautelava-se, e prevenia-o, contra
as pequenas malevolências, tão frequentes, apelando para o
patrocínio do estadista e, assim, tentando não só evitar uma
injustiça para os povos da sua região, mas também esperando que o
traçado do caminho-de-ferro na parte respeitante à sua terra
merecesse um parecer técnico desapaixonado – aliás, «num assunto que
de sua natureza é alheio a paixões».
Causas pouco lícitas, mesquinho
espírito oportunista de aproveitar a maré e dela tirar provei to
impeliam os seus contraditores: «Quer saber que motivos decidiram
esses cavalheiros? – Perguntava, entre risonho e severo. «Custa a
crer, mas é verdade. Compraram uns pinhais numa certa direcção e
querem levar por eles o caminho-de-ferro para ganharem na madeira!
Tenho disto bastantes provas, e do mesmo estofo são pela maior parte
as razões dos oponentes a que a linha férrea passe por Aveiro».
(2)
O problema portuário aveirense, como
esta carta já comprova, tem em José Estêvão um advogado porfiado e
atento. Rocha e Cunha (3) releva-lhe essa faceta de esclarecido e acendrado
/ 40 / aveirismo: – «paladino austero e esforçado das
reivindicações económicas da sua terra, legou-nos, a par da
nobilíssima tradição liberal, tolerante e justa, que entre nós acaba
sempre por dominar os espíritos conturbados pelas paixões políticas,
as realizações basilares de uma política económica inspirada no mais
puro ideal de paz, prosperidade e felicidade pública».
Sob o seu impulso, como observa o
mesmo probo e estudioso autor, se criou a corrente de opinião de que
viria a resultar, em 1858, a criação da Junta Administrativa e
Fiscal das Obras da Barra – antecessora longínqua da actual Junta
Autónoma do Porto de Aveiro. A orientação técnica desse organismo
seria confiada a uma das mais conceituadas figuras da engenharia do
tempo, Silvério Augusto Pereira da Silva, pouco antes vindo para
Aveiro e em circunstâncias a que não foram estranhas a influência e
o bairrismo do insigne parlamentar aveirense.
Já em 1853, para citar apenas um
facto concreto, José Estêvão demonstrara a atenção que este capital
problema lhe merecia. Na sessão da Câmara dos Deputados de 17 de
Junho, na sequência de diligências anteriormente efectuadas junto
dos membros do gabinete, requereu «que o governo enviasse à mesma
Câmara uma cópia do contrato celebrado em Londres para a construção
de uma draga destinada às obras da barra de Aveiro».
Na mesma sessão, apresentou dois
outros requerimentos, que, apesar do seu carácter genérico, eram
inspirados flagrantemente, nas condições e necessidades verificadas
na sua região natal. Neles formula uma petição ao governo para que,
no intervalo das sessões certamente devido ao período de férias que
se acercava – estude os meios de estabelecer creches nos distritos
marítimos, e assim, naturalmente ocorra às dificuldades em que
viviam as classes piscatórias; e o modo de plantar pinheiros nos
areais - providência que só viria a tomar-se algumas dezenas de anos
mais tarde.
Noticiando esta diligência do
conterrâneo ilustre e devotado e pondo em relevo os benefícios que
dessas iniciativas se podiam lograr, escrevia então «O Campeão do
Vouga»: (4)
«Damos ao Sr. José Estêvão os nossos
sinceros agradecimentos. S. S.ª provou aos seus patrícios o quanto
sabe ser generoso, e que, quando se trata do bem do seu país, e em
especial do da sua terra, até se esquece da ingratidão dos que lhe
devem finezas e consideração. Guerreado nas últimas eleições, e
acusado de se ter esquecido dos interesses da sua terra, S. S.ª, que
sempre a amou, e que dela se lembra incessantemente, deu uma
convincente prova de que ele é, e será enquanto viver o advogado dos
interesses de Aveiro, como ele é o seu mais distinto filho».
Em dois passos do minucioso
relatório que por essa altura apresentou à Junta Geral do Distrito, e
onde tantos e tão valiosos elementos de informação se podem recolher
para o estudo desse período realentador da vida regional, também o
governador civil de então, Antero Augusto da Silveira Pinto, realça
a importância das propostas apresentadas, e promulgadas como leis, e
a constante e frutuosa devoção de José Estêvão ao progresso da sua
terra.
O íntegro e operoso magistrado
distrital, que, conforme assinalaria no seu necrológico um
hebdomadário local muito parco em elogios,
(5) «deixou o sinal
indelével de uma administração enérgica» e, «terror dos bandoleiros,
era também o espectro dos crapulosos
/ 41 / enfronhados num
pedantismo alvar», refere-se no primeiro desses trechos à projectada
construção do edifício para o liceu. Na comunicação que trazia
àquele corpo administrativo informava que graças às «instâncias de
um digno Deputado da Nação, filho d'esta Cidade, o Sr. José Estêvão
Coelho de Magalhães, /.../ orçamento, e planta, devidamente
elaborados, já foram enviados à competente Estação Superior».
(6)
Sobre este assunto nos deteremos mais adiante.
Quanto à importância da nova
iniciativa do solícito propugnador dos interesses aveirenses escreve
textualmente: «Resta-me, Senhores, dar-vos conhecimento da Lei de 7
d' Agosto p. p. pela qual o Governo de S. M. foi autorizado a
contrair um empréstimo até à quantia de 100.000$000 rs., para ser
aplicado a acabar as obras da Barra a fazer uma estrada que ligue a
Barra com a Cidade –
a comprar um vapor para o serviço de Pilotagem na Barra – a semear
pinhaes nos areaes deste Districto – e a fazer na ria os trabalhos
necessários para que se possa estabelecer a navegação a vapor entre
Aveiro e avaro «Já haveis de saber, Senhores, que a proposta desta
Lei, fecunda origem da prosperidade para esta Cidade e seu Districto,
foi apresentada na respectiva Camara pelo distincto Deputado, digno
filho desta terra a quem já tive a satisfação de referir-me
–
o Sr. José Estevam Coelho de
Magalhães –,
cuja superior intelligencia e desvelada dedicação pelo bem deste
Districto, comprehendeu e conseguiu, que em uma só Lei fosse
consignado um grupo de disposições, qual mais vantajosa para esta
localidade» (7).
Ficaria no papel e nas boas
intenções a generalidade dessas providências, até melhor ensejo ou
circunstâncias supervenientes as tornarem dispensáveis. Patenteiam,
porém, de modo inequívoco, a clarividência de José Estêvão e
plenamente justificam que o governador civil – o Dr. Antero, como
era vulgarmente conhecido – num momento de confiada e jubilosa
expectativa, louvasse com caloroso reconhecimento o grande
impulsionador do desenvolvimento da economia regional: «Honra pois,
Senhores, e gratidão eterna ao nobre Deputado, auctor de uma lei tão
fecunda em benefício para este Districto».
Na mesma sessão legislativa, como já
ficou referido, o diligente e prestigioso procurador das
reinvindicações aveirenses, pois não se sentira desobrigado dessa
missão, que lhe era tão cara, pela circunstância de ser então
deputado por Lisboa, apresentou um outro requerimento, pedindo: 1.º
– Que o Governo mandasse fazer a planta e orçamento de um edifício
para estabelecer o liceu do distrito de Aveiro, tendo por adjunto a
biblioteca pública, que estava decretada para essa cabeça de
distrito; 2.º – Que mandasse consultar as autoridades para verificar
se as ruínas da Albergaria de S. Brás eram o lugar mais próprio para
o liceu; 3.º – Que o Governo escolhesse dos edifícios nacionais, que
em Aveiro eram destinados para diversos eerviços da repartição
militar, os que se pudessem dispensar com as melhores condições para
se estabelecerem as cadeias e tribunais; por forma que o edifício
satisfizesse às condições que as ideias humanitárias, a filosofia do
direito e as prescrições que o código penal indicava em construções
daquela espécie».
O terceiro parágrafo só viria a ter
concretização recente, como se sabe, quer quanto à cadeia comarcã,
quer, sobretudo quanto, à «Domus Justitiae».
/ 42 / Os dois primeiros, todavia –
salvo no que respeita à biblioteca pública, criada e instalada por
alturas das celebrações centenárias da revolução liberal de 16 de
Maio de 1828 – vieram a efectivar-se ainda em vida de José Estêvão e
mercê da sua inabalável perseverança.
Com efeito, o aproveitamento das
ruínas da Albergaria de S. Brás para o edifício do liceu, que José
Estêvão preconizava, veio a verificar-se pouco mais tarde, com o
correspondente abandono do propósito, que redundava por certo em
economias, mas tinha os evidentes defeitos das adaptações, de o
instalar definitivamente nas dependências do convento de Santo
António, onde por alguns anos funcionou.
A Albergaria de S. Brás fora
fundada, no século XV, por Fernão Vaz Agonide, contador-mor de D.
Duarte e D. Afonso V, que para sua manutenção legou, à morte, todos
os seus avultados bens. Destinava-se a obra a dar pousada aos
passantes, mais particularmente a romeiros que do sul do país se
encaminhavam para Santiago de Compostela,
(8) e deveria dispor de
seis camas para dar pernoita a viandantes pobres, a quem, no caso de
ser necessário, se forneceriam medicamentos e ministraria tratamento
adequado.
Os sucessores do fundador, segundo
informa o memorialista José Ferreira da Cunha e Sousa – de quem
colhemos algumas referências àquela instituição beneficente – e como
pode comprovar-se por uma diligência efectuada, nos princípios do
século passado, pela Câmara Municipal junto do então administrador
dos bens legados pelo instituidor, o barão de Vila Pouca – que fez
ouvidos de mercador – continuaram a arrecadar as rendas, mas, pouco
a pouco, foram-se dispensando de cumprir as obrigações inerentes. As
construções da Albergaria, que deixaram de ser utilizadas, já pelo
abandono a que as votaram os administradores, mais atentos a
benefícios que a escrúpulos de consciência, já porque a corrente de
peregrinos para o túmulo de Santiago decrescera consideravelmente,
foram-se assim, arruinando de maneira crescente e, na época a que
nos reportamos, já não existiam mais do que as velhas e robustas
paredes a desmantelar-se morosamente.
A construção do edifício para o
liceu, que, em 1875, Marques Gomes poderia ainda considerar, no «seu
género, o primeiro de Portugal» (9), não teve imediato início,
apesar das instâncias de José Estêvão, que não mais abandonou o
assunto, apadrinhado com tanto entusiasmo. Claramente testemunham o
empenho que o devotadíssimo aveirense consagrou à consecução deste
melhoramento, as informações que lhe presta Rodrigo da Fonseca
Magalhães, ministro do Reino à data, sobre o assunto pelo qual com
tanta solicitude pugnava.
O astuto rábula das artes políticas
que era Rodrigo da Fonseca – a «Raposa», como era apelidado pela
consumada habilidade com que tramava as artimanhas e usava dos
expedientes esse céptico e acabado simulador que estabeleceu a
prática regra de que «os deputados, como as casas, se compravam
depois de feitos» – desdobrava-se em atenções no intuito de cativar
José Estêvão, que, embora com algumas reservas, dava o seu apoio ao
governo. «Considerava, segundo ele dizia, a situação política da
regeneração como uma empreitada de obras públicas, como tal
merecedora de amparo e estímulo. O combativo parlamentar «adquirira
a convicção da boa fé política de Rodrigo da Fonseca, dos intuitos
liberais do seu carácter e dos sentimentos democráticos do seu
coração». (10)
/ 42 / A ele se dirige, dada a sua
preponderância no ministério e a correcção do seu procedimento. E
dele recebia, em carta de 6 de Dezembro desse mesmo ano de 1853
(11)
uma animadora informação:
«Tenho presente quanto me diz sobre
o Lyceu: não abandono a ideia da Albergaria, mas tendo entendido que
ao Engenheiro pertencia a escolha, e que a obra seria feita pelas
Obras Públicas não quis teimar na primeira ideia – Continuará V. E.
a ser meu amigo porque eu vou esforçar-me activamente para que a
Albergaria seja transformada em Lyceu com absoluto abandono da
tenção de o colocarmos em casa de frades ou freiras».
Apesar de o governo ter tomado uma
deliberação sobre o assunto, haveriam de arrastar-se os habituais e
morosos trâmites até se atingir a fase de realização da obra. Esta,
na verdade, só viria a ser determinada por uma portaria, de 5 de
Março de 1855, subscrita por outra proeminente figura da regeneração
– António Maria Fontes Pereira de Melo – que, como veremos, desde
início vinha intervindo no caso.
Cerca de quatro meses depois, dava a
Câmara Municipal o alinhamento, não só para o edifício do liceu, mas
igualmente para o do teatro, que haveria de lhe ficar contíguo
(12),
e para cuja edificação adquirira, pouco antes, uma casa pertencente
à família de Mateus José de Freitas Guimarães.
José Estêvão, porém, não descansara
com a acalentadora comunicação, e insistira na pretensão preconizada
com Rodrigo da Fonseca. Este, em nova carta, escrita nove dias
depois da que referimos –
e transcreveremos, no final, integralmente, pois todo o contexto se
reveste de relevante interesse e permite penetrar nos bastidores da
política dessa interessante época
–
dá-lhe conhecimento da marcha que
iam tomando os negócios não só do liceu, mas de teatro.
Quanto a este, diligenciará junte de
Fontes para autorizar a Câmara Municipal a vender o terreno
anteriormente concedido para aquele fim, e a destinar o produto da
venda à construção no local julgado mais conveniente, isto é, no
prolongamento do projectado edifício do liceu. Mostrava-se, mesmo,
pressuroso em obter deferimento para a pretensão.
No respeitante à edificação,
fornece-lhe notícia de renovadas diligências, que repetiria, para
alcançar definitivamente a ordem necessária à concretização dos dois
objectos.
Como é natural, José Estêvão não
deixou de acompanhar, dia a dia, o andamento quer das providências
preliminares, quer, depois, da própria construção. Três semanas
antes da inauguração do edifício – verificada a 15 de Fevereiro de
1860 – escrevia ainda ao reitor, Francisco José de Oliveira Queirós.
Dava-lhe instruções, que julgava convenientes para prevenir
eventuais contratempos, para promover a compra imediata de
mobiliário, «visto q.e d'a mobília q.e prezentemente se axa no
Convento de Sant' António, onde ora são as lisoens» – dizia uma acta
do Conselho Escolar daquele estabelecimento de ensino secundário, de
10 de Novembro de 1859, com um completo desprezo pelas regras
ortográficas que hoje causará certo espanto – e o mais serviso
pertensente ao Liseu, nenhuma corresponde à grandeza do novo
edifizio, antes servirá para d'algum modo o deturpar».
Recomenda-lhe, pois: «Logo que o lyceu estiver prompto, mettão-se de
dentro, e dá parte d'assim o teres fei to ou estás em vespera de o
fazer» (13).
/ 44 / Dos serviços à cidade – e à
região – prestados por José Estêvão, mencionados no pedestal do
monumento que consagra a sua memória e permanentemente a reaviva no
espírito dos aveirenses falta apenas a referência à iniciação da
viação pública.
Também numa carta para um influente
homem público da época – que não só por méritos próprios, mas por
ser marido da inspiradora das Folhas Caídas, de Almeida Garrett,
hoje se recorda – o visconde da Luz – se poderá documentar a acção
desempenhada nesse sector, por aquele a quem Castilho chamou o
Cícero português e que foi, irrecusavelmente, o grande
propulsionador do progresso regional, no seu tempo.
Como se poderá ver da textual
transcrição – que igualmente fazemos no final destas notas – desse
outro valioso espécime do espólio epistolar deixado por José
Estêvão, aí lhe responde o cotado político, que dispunha de
prestimosas relações nos departamentos do Estado e no próprio
Governo – de que ele mesmo fez parte duas vezes – ao interesse que
lhe manifestara, em fins de 1861, o eminente deputado por Aveiro
pela construção da estrada para Albergaria e da ponte de Ílhavo.
Esta, ao que parece, haveria de
construir-se num regime a que hoje chamaríamos de comparticipação. A
Câmara concorreria com uma parcela, maior ou menor, pois os duzentos
contos votados para melhoramentos não bastariam para ocorrer às
petições apresentadas, e muitas das obras requeridas eram
consideradas de âmbito municipal. Entretanto, o assunto fora
correndo a sua marcha, desemperrado pela solicitude do patrocinador
e já do Conselho Superior de Obras Públicas aguardaria sanção.
A estrada de Albergaria, essa, já
obtivera a aprovação daquele alto organismo e encontrava-se na fase
de se promover a elaboração do projecto definitivo.
Como sucede com a carta para Rodrigo
da Fonseca que atrás referimos, igualmente nesta se verifica que
José Estêvão, então no auge do prestígio e requestado tanto pelos
desprotegidos como pelos próceres, patrocinava numerosas e as mais
diversas pretensões.
O nome do visconde da Luz está
porém, ligado a um outro melhoramento que na terminologia actual se
designaria também como rodoviário – a estrada da Gafanha.
José Estêvão alcançara do governo a
respectiva aprovação. Tinha como que uma presciência do que viriam a
representar certas obras no fomento económico e demográfico. A
generalidade dos seus contemporâneos, às vezes por malevolência, mas
quase sempre por se cingir e apegar demasiado a realidades de
momento que constituíam frágeis e enganadoras premissas, não
acreditava no papel impulsionador dos caminhos de ferro e das
estradas. Marques Gomes, ainda em 1875, doze anos depois da
inauguração da estação do caminho de ferro de A veiro, não
encontrara quaisquer benefícios na passagem da via férrea pela terra
a que tão minucioso estudo dedicou – mal imaginando que ela viria a
estar compreendida, se não logo, pouco mais tarde, entre a dezena
das de maior tráfego ferroviário de todo o país.
Agora, porque a Gafanha dos meados
de oitocentos era apenas uma grande extensão de pinhal e areia
estéril, quase desabitada, a estrada era classificada pela oposição
indígena como uma superfluidade. Pouco importava que servisse a
Costa Nova do
/ 45 / Prado, onde se haviam instalado companhas de
pesca que, com as de S. Jacinto e da Torreira, abasteciam a região
e, por intermédio dos antecessores do imorredoiro «Malhadinhas» –
Aveiro vai, Aveiro vem! – as longínquas terras da Lapa, onde nasce o
Vouga, e seu derredor.
Já o negócio do pescado atraíra
mesmo para a praia – que começara apenas a conquistar as
predilecções de escassos veraneantes, como a família paterna de Eça
de Queirós – o visiense Manuel de Moura Marinho, que ali mandou
construir, e depois vendeu ao tribuno aveirense, o conhecido
«palheiro de José Estêvão».
Pouco importava que desse acesso à
barra, num período promissor de revitalização, nem se sonhava que a
Gafanha viria a ser um dos casos mais extraordinários de colonização
espontânea realizados no país, graças ao moliço e ao suor e à
pertinácia da gente que ali se fixou.
Afirmava-se, sim, com evidentes
intenções de maledicência, que José Estêvão apenas defendia a
construção da estrada para sua própria comodidade. O Campeão das
Províncias, que passara a hostilizar algum tempo antes aquele a
quem, na sua primeira fase, aclamara como «o advogado dos interesses
de A veiro e o seu mais distinto filho», aproveitou o ensejo para
uma acerba e ruidosa campanha contra a obra e o seu patrono.
O visconde da Luz veio certificar-se
por seus próprios olhos das razões que militariam a favor da
construção ou da sua desnecessidade, apregoada em alta grita pelos
foliculários locais que se opunham a José Estêvão.
Joaquim de MeIo Freitas relata o
episódio que convincentemente determinaria as conclusões do ilustre
visitante, (14) com o bom humor e a elegância que lhe eram
habituais:
«Embarcaram no cais, e fizeram-se ao
largo. Neste instante o vento desencadeia-se, as marés agitam-se em
balanços desesperados; o barco dançava sobre a espuma da ria, e o
mastro, curvado pelo vendavaI, gemia e estalava com o impulso cego
das lufadas. A chuva desatou-se por fim em torrentes, e não tardou
uma trovoada medonha.
O visconde da Luz ordenou
imediatamente aos barqueiros que voltassem para traz porque não
gostava da chuva nem do temporal. José Estêvão, a cada relâmpago que
alumiava o céu, brusco e temeroso, esfregava as mãos de contente e
dizia com esplêndida alegria:
– Encomendei-o de propósito;
eu desejava que você se convencesse de que a estrada era precisa e
até urgente... Desminta-me agora se é capaz!
A encomenda era o temporal»
«Dentro em pouco – prosseguia –
procedia-se à construção da estrada», da estrada que chegou a
registar, há meses, em vinte e quatro horas, num domingo de verão de
1965, um movimento de cerca de seis mil veículos automóveis.
Referiremos apenas mais um serviço
prestado a Aveiro por José Estêvão – a criação de um asilo para a
infância desvalida, no ano anterior ao seu falecimento.
Esse estabelecimento, que se seguiu
à fundação do Asilo de S. João, em Lisboa, também por sua
iniciativa, está na origem do actual Asilo-Escola, mantido
pela Junta Distrital e a que este corpo administrativo tem
dispensado desvelado carinho, e foi instituído mercê de um donativo
da colónia portuguesa, do elevado montante, para a data, de 1263$400
reis.
/ 46 / Foi instalado em algumas
dependências do extinto convento de Santo António – onde, como
vimos, funcionara o liceu – cedidas para esse fim, pelo Ministério
da Guerra, a solicitação do fundador dessa obra de assistência.
Apontados sem pormenores demasiados
para uma notícia desta natureza, cremos que os factos referidos
constituem prova sobeja de que José Estêvão não era apenas o mais
distinto filho de Aveiro, mas também o mais prestante, e, assim, que
o culto consagrado pelos seus patrícios à sua memória exemplar tem a
mais plena e lídima justificação.
– ● –
Lisboa 15 de Dezembro
Meu bom amigo
Respondo às suas de 9 e 11 do
corrente. Não tive a mesma demora em dar andamento aos dois neg.os
do theatro e do Lyceu.
No dia 11 pedi ao Fontes que desse
licença à Camara d'Aveiro para vender o terreno concedido com o
intento theatral a fim de que o seu produto servisse à compra do
edifício em local apropriado.
E fiz ver a necessidade que eu tinha
da opinião do Min.º das Obras públicas p.a mandar passar o Decreto.
Espero que hoje venha a resposta; e
o diploma será expedido amanhã.
Pelo que respeita ao Lyceu approvei
um dos planos que me parece melhor do que o outro, mas não
entendendo certos detalhes do alçado disse às obras P.as
que fizessem o seu juízo; e achando era mal assente decidissem,
porque eu me sugeitaria a melhor opinião.
Como o Fontes em ofl.o anterior a
esta minha decisão me aftirmasse que mandaria acabar os trab.os
no sentido do projecto que eu aprovasse, intendi que bastaria isto
para dar começo à obra.
Vendo porem que assim não aconteceu,
escrevi-lhe e disse-lhe depois que não demoras se com isto mais a
ordem necessaria para os dois objectos; e não o deixarei em q.to não
partir a dita ordem.
Resta-me o que pertence ao Sousa
Lobo, unico assunto da sua carta de 11.
Eu não sou affeiçoado ao Sousa Lobo?
Nem desaffeiçoado – Nunca tive occasião de manifestar-lhe affecto ou
repugnancia. Como g.or civil seria a meu ver inconveniente – outra
coisa não podia elle ser feita por mim.
Soube, não mui particularmente que o
Frederico não se atrevera a dar-lhe não sei que logar – Creia me que
não tive a minima p.te nisso; mas sabendo que não podia deixar de
ser o procedimento do Nog.a comigo fundado em razão, porque o
conheço intendi que bem fazia em escolher melhor, se melhor havia
por onde – Isto sem relação a nenhum motivo pessoal. Se eu posso
fazer alguma coisa ao Lobo de quem como V. E. me condoo deveras –
diga-me. Bem sabe que eu tenho sincero desejo de o servir, porque
sou seu Amigo, e porque lhe devo finezas feitas generosamente.
Ainda me resta o padre de Alcobaça –
Quando ele me entregou uma carta do Marechal tinha eu para fazer o
empenho dado o logar a um homem digno recomendado pelo Rei D. P.
homem egresso, antigo capellão d'armada constitucional-liberal e
homem m.to desattendido – Rogava um subsidio para o Estado, e o
individuo ia amparar uma família que delle depende – O padre é das
vizinhanças da Nazareth –
Em momentos de mau humor recebi a
carta que era a quarta ou quinta que o D. me escrevia; e creio que
não fui agradavel ao portador, a quem disse que não trajava como
clerigo, tendo-lhe perguntado se o interessado era elle –
Desenganei-o de que estava provido o logar, e não obstante escreveu
a V. E. para interceder por elle – Eu falei-lhe a verdade como a
escrevo aqui.
Pelo que toca ao Thomas de Carvalho
bem vejo que elle está mal commigo – Deus e eu sabemos quem tem
razão.
O que se passou com o Candidato não
proveio de Frederico – este nem em tal diabo me falou nunca – O
assumpto foi prematuro de nós ambos.
Entrou o g.or civil como V. E. sabe,
e pela razão que sabe.
Os candidatos dos outros circulos à
excepção de Coimbra não os indiquei a ninguem.
Os alliados do Seabra nunca foram
meus – Mandei dizer ao g.or civil de Coimbra que queria antes perder
vinte eleições do que incorrer na suspeita...
(15) influindo
assassinos: nada mais
/ 47 / – V. E. não pode duvidar que eu sempre
tenha procedido assim.
Apesar da minha apregoada devassidão
politica nunca podia descer à baixeza do meu ex-collega. Declarei
solemnemente que se viesse como deputado Brandão, o dia em que
recebesse a noticia da façanha seria o ultimo da minha ministrice –
nem à Camara me atreveria a ir esta sessão.
Am.º não me descuido das suas cousas
que sempre reputarei m.as proprias.
De V. E.
Am.º do C.
R. F. Magalhães
– ● –
Amigo
Ha muito tempo, e ainda mesmo antes
da morte do nosso bom rei, recebi duas cartas suas, pelas quais nos
fazia arguiçoens e nos pedia couzas; em quanto às arguiçoens como
eram menos exactas, não foi cazo, porque aquillo de que se queixava
estava já feito, e mais se havia de fazer; em q.to aos pedidos falei
com o Horta, e elle disse-me: como elle vem a Lisboa aqui trataremos
de tudo – como efectivamente o esperava a cada momento eis os
motivos porque lhe não respondi.
Respondo à sua ultima de 18 do
passado, e tem razão de se queixar mas faça-o de si.
Algumas obras desse e de outros
distritos são consideradas municipais, para as quais foram votados
os 200 contos; o Ministro tem as do distrito de Aveiro, e de outros
por resolver; bastantes vezes o tenho atormentado, mas elle não
resolveu, e eu não sei qual é o seu pensamento a este respeito;
suponho que quer que as camaras concorram com uma parte do custo das
obras, na conformidade do que se acha na proposta de lei, q.e ficou
por discutir –
A ponte de íhavo está no mesmo cazo,
neste momento. Não lhe posso responder couza positiva, mas parece-me
q está no conselho; amanhã indagarei –
A estrada de Albergaria já está
resolvida no conselho; o João Chrisostomo está redigindo a consulta
e espera apresental'a ao Ministro mas temos q mandar fazer o
projecto definitivo.
O rapaz de que me falou é um moço
qu,e foi dado por louco, e por isso o ministro mandou-o demitir: ha
dous dias q me mandaram entngar um requerimento p.a ser reintegrado;
como o seu lugar foi preenchido, só com dcspacho do Ministro, que só
amanhã obterei.
Estamos a 12 ainda aqui não está –
eu ando cançado e doente, desejando muito a m.ª reforma – mas cstou
sempre à sua disposiçlio para o servir em quanto fôr da sua vontade,
porq sou deveras
Seu am.º do C.
V. Luz
Lisboa, 12 de Janeiro de 1862.
______________________________
NOTAS:
(1) – José Estêvão - Estudo e
Colectânea, 1962, pág. 35.
(2)
–
Rascunho de uma carta oferecida
pela família do Conselheiro Luís de Magalhães à Biblioteca Municipal
de Aveiro, datado de 11-9-1860, ditado por José Estêvão, como era
seu costume, e emendado pelo seu próprio punho.
(3)
–
O Porto de Aveiro, conferência
realizada em 5-5-1923, na Associação dos Engenheiros Civis
Portugueses. Ed. do «Correio do Vouga» , 1933, pág. 35.
(4)
–
N.º 124, de 22-6-1853.
(5)
–
O Povo de Aveiro, n.º 247, de
7-11-1886.
(6)
–
Relatório apresentado pelo
Governador Civil do Districto d'Aveiro a Junta Geral do Mesmo
Distr.o na sua sessão ordinária de quinze de Setembro de 1854, pág.
2.
(7)
–
Idem, pág. 6.
(8)
–
José Ferreira da Cunha e Sousa,
Arquivo do Distrito de Aveiro, voI. VI pág. 194.
(9)
–
Memórias de Aveiro, pág. 127.
(10)
–
J. A. Freitas e Oliveira, José
Estêvão, pág. 274.
(11)
–
Carta existente no arquivo dos
descendentes de José Estêvão, em Moreira da Maia.
(12)
–
José Pereira Tavares, História
do Liceu de Aveiro, pág. 15.
(13)
–
José Pereira Tavares, ob. cit.,
pág. 17.
(14)
–
Violetas, pág. 173.
(15)
–
Palavra ilegível. |