Se não estamos em erro, coube à Vila
de Estarreja, a honra de iniciar, entre nós, festivais folclóricos
de carácter distrital...
Seguindo o seu exemplo, Viseu, este
ano, a 18 de Setembro, promoveu, por alturas da Feira de S. Mateus,
também, um festival idêntico, no decorrer do qual foram apresentados
todos os trajes, todas as danças e cantares, dignos de nota, do seu
distrito.
Os moldes, ali, foram, ponto sobre
ponto, linha sobre linha, os mesmos de A veiro, perdão; de
Estarreja.
Isto é: não se fecharam as portas a
ninguém e, assim, cada qual pôde apresentar-se tal como era, com
inevitáveis pecados, talvez, mas, sem dúvida, com inegáveis
virtudes.
Numa palavra: ambos constituíram
completas e leais confissões públicas, para que, futuramente, quem
de direito pudesse vir a separar o trigo do joio, de forma a dar
incremento a valores, até ali desconhecidos do grande público e, a
tempo, afastar uma ou outra erva daninha.
Fosse como fosse, Aveiro pôde
orgulhar-se de nos ter revelado, em Estarreja, um espectáculo de
rara beleza e tão variado que não houve da parte de quem a ele
assistiu a menor pena de que não tivessem sido convidados ranchos de
outros distritos e, possivelmente, doutros países.
Cada grupo etnográfico, acolá,
limitou-se a exibir um cantar e três ou dois bailados de maneira a
não se repetirem números de dança e de canto, o que, só por si,
prova a riqueza do património folclórico aveirense.
Senão vejamos:
Castelo de Paiva trouxe-nos o Salto
em Bico e a Laranjinha; Paços de Brandão, a Pastorinha e o Verdegar;
Ovar, o Vira Pescador e a Real Caninha; Cidacos (Oliveira de
Azeméis), a Tirana e o Valseado; e Águeda, O Cancioneiro de Águeda,
o Vira Bairrês e a sua «dança mandada»: o seu incomparável Malhão...
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Grupo de
dançadores de Cidacos que tomaram parte no 2.º Festival de Verão
de Estarreja, em 21-8-1966. |
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No entanto, mau grado semelhante
diversidade de costumes, patente ela não só nas danças como até nos
trajes e nas canções, o Festival de Verão de Estarreja foi, apenas,
uma pálida amostra, (e ainda não um mostruário!) do tesoiro
artístico-popular de Aveiro, pois, condicionado pelo tempo e também
pelo grande número dos ranchos concorrentes, não pôde ser concedido
a certos núcleos o espaço a que pelo seu valor tinham direito, sob
pena de se prolongar o espectáculo até de madrugada e de corrermos o
risco de exibir jóias numa casa de que os espectadores, devido ao
adiantado da hora, se fossem retirando...
Donde se conclui que a palavra
«arte» é de carácter aristocrático e que os princípios da democracia
não podem reger manifestações folclóricas. . .
Mas... O que lá vai, lá vai....
Todavia, aquilo que até agora teve
uma relativa justificação, visto que se tratava como que de um
primeiro «ensaio» (chamemos-lhe assim!) já não terá defesa amanhã,
uma vez que, cônscios dos valores que possuímos, nos propomos
evidenciá-los, de modo a manter a tradição.
Com isto, porém, não se pretende
reduzir ao silêncio ou à inércia quaisquer iniciativas de
reconstituição de costumes...
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Tirana de Cidacos
– O homem avança e a mulher recua... |
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Pelo contrário: busca-se, até,
galardoá-Ias admitindo, apenas, as que estão aptas a trazer-nos uma
mensagem. Só se eleva, porém, o nível
/ 35 / cultural, condicionando
a incorporação dos grupos regionais, em festivais folclóricos e só
assim deixará de ter eco a frase lapidar (em Portugal só há viras de
três ao vintém!) com que o grande actor João Villaret manifestou a
sua mágoa ante a pobreza de tantas exibições que de folclóricas
apenas têm o nome que gratuitamente se lhes queira dar.
Há, pois, que ouvir, em assuntos
desta natureza quem, pela autoridade que lhe assiste, se possa
responsabilizar pelo êxito da representação popular E: não
sacrificar a simpatias pessoais ou a um errado humanitarismo o
renome folclórico distrital.
E, já que falamos em folclore e
representação folclórica, por que não pensarmos, a par de Festivais
de Verão em Estarreja, em Festivais de Inverno, em Aveiro,
realizados estes numa casa de espectáculos daquela cidade?
Figurariam, então, os melhores
agrupamentos etnográficos do Distrito e, com programa escolhido,
enquadramento condigno, iluminação criteriosa e boa sonorização, os
aveirenses poderiam aperceber-se de que o seu distrito nada deve aos
demais em matéria de danças, cânticos e indumentária tradicionais...
Seriam eles os primeiros, depois, a
fazer, conscientemente, a propaganda de si próprios e a desejar que
os aplaudidos de hoje formassem aquela embaixada de beleza que, onde
quer que surja, traz sempre consigo a concórdia, despertando nos
nativos o amor à terra que lhes serviu de berço e nos forasteiros um
maior desejo de aproximação.
Dói-nos pensar nestas realidades,
até agora, por aproveitar, quando, desde Paiva a Águeda, dançadores
e cantadores nos lembram as personagens de que fala Pirandello
«personagens à espera de um autor»!
Mas nem sempre o homem se conhece a
si mesmo...
Quantas vezes ele sabe ou julga
saber das suas fraquezas, dos seus defeitos, das suas limitações,
mas ignora as qualidades que possui e acaba por morrer sem ganhar a
partida, tendo tido, no entanto, os trunfos da vitória, na mão.
Dá-se o mesmo, frequentemente, com
essas terras que, à falta de quem nelas arvore uma bandeira, são
votadas ao esquecimento. Ora, a propósito de bandeiras, sempre
diremos que a arte é a que mais eficazmente ilumina o solo a que
pertence. Guiados por ela, passamos a vê-lo e a querer-lhe bem,
visto que só pelo conhecimento se poderá chegar à verdadeira
amizade.
Daí, o valor do folclore.
/ 36 / Graças aos ranchos típicos
assiste-se, em Portugal, ao descobrimento de um novo Brasil, se por
Brasil entendermos a mina de oiro que nos pareça fabulosa. Explico:
Num país como o nosso o
desenvolvimento do turismo equivale à sorte grande, pois, por
formosa que seja a paisagem natural, esta não deterá o visitante,
quando outra paisagem, a paisagem humana de que a arte é o expoente
máximo! – a não complete.
O folclore – eis hoje em dia, o
padrão da independência.
Enraizando-se nele, foi que a
literatura, a pintura, a música e a dança adquiriram carácter
nacional.
E só se acredita na existência de um
povo, no dia em que se contacta com a sua arte.
Mas... Voltem as ao Festival, ao 2.º
Festival de Verão de Estarreja.
Desejaríamos que, de futuro, se
estabelecesse uma distinção entre promotores e organizadores. A uns
e outros cabem honras, posto que diferentes umas das outras, como a
água do vinho. Sem os primeiros tornar-se-ia
/ 37 / impossível a
realização do festival. Cabe-lhes estudar as possibilidades
financeiras do empreendimento, as condições técnicas do espectáculo
(sonorização, iluminação, local, lotação, etc.) e, ainda, o
cumprimento das normas traçadas pelos organizadores que são
entidades a cujo cargo está a estrutura do programa artístico.
Desejaríamos ainda que, à semelhança
do que se faz em Santa Marta de Portozelo e na Meadela, no Concelho
de Viana do Castelo, fosse fixada uma data para o festival, data
essa que não coincidisse com a de outra manifestação de cultura
popular mais antiga. Sem datas não há tradição.
Além disso, atendendo ao incremento
turístico entre nós, entendemos que a apresentação dos números a
exibir deve ser, tanto quanto possível, bilingue, posto que breve e
clara.
Finalmente impõe-se um cartaz de
propaganda cuidado. Medite-se, ainda, na situação geográfica de
Estarreja, vila que a dois passos da Ria e de todas as praias da
Costa Verde, e não longe de Coimbra e da Figueira da Foz, é o centro
onde sem dificuldade chegam mil caminhos povoados e verificar-se-á
como, sem dificuldade, se pode no Distrito de A veiro prestar um
serviço notável à cultura nacional.
De todos os factores, para que, tão
sinceramente, acabamos de chamar a atenção da Ex.ma Junta Distrital,
a marcação de uma data fixa, sempre num domingo à tarde – é o mais
importante.
Doutra forma, compromissos prévios
de um ou outro rancho poderão contribuir para o «empobrecimento» do
Festival, como aconteceu este ano com a falta de comparência do
Conjunto Etnográfico de Moldes.
Infelizmente, a 21 de Agosto último
(data da famosa serenata das Festas da Senhora da Agonia!) não
pudemos ver ao de Moldes o incomparável «Real das Canas» – dança de
conjunto usada em todas as Terras da Feira – o «Corre-Corre» –
serenidade, compostura, graciosidade senhoril das mulheres, porte
dominador dos homens! – a «Cana Verde de Oito»o «Senhor da Pedra» e
o «Valseado» – dança de passagens tão subtis que não resistimos a
encerrar o nosso trabalho de hoje com a pormenor das várias fases, a saber:
1.º – Logo, no vaivém, dado pelo
homem, primeiro para a frente, e, seguidamente, para trás, e pela
mulher, primeiro para trás e, seguidamente para a frente, eles e
elas largarão as
mãos, poisando-as, depois, sobre as
ilhargas, com modo altaneiro.
2.º – O cantador canta e eles e elas
começam a dançar, animadamente, avançando e recuando em passo de
Vira, figura conhecida no Litoral pelo nome de «brinca».
3.º – Terminado o «brinca» eles
viram-se «por dentro», sobre a direita, seguindo eles e elas, uns à
frente dos outros, em fila indiana...
4.º – A folhas tantas, todos dão uma
volta por dentro, sobre a esquerda e a fila indiana vai em sentido
oposto ao primeiro.
5.º – Por fim, cada homem procura a
dama da direita com quem dá uma «volta inteira» sobre a direita,
passando, terminada ela, a dançar com a dama da esquerda o «valseado».
No «valseado» nunca o homem põe a
mão na cintura da mulher, limitando-se a pegar-lhe, delicadamente,
nos braços... |