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Os Reis Magos a
caminho do Templo. |
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/ 59 / Mesmo
em épocas de agitação política em que a religião sofreu os seus
reveses, o povo conservou mais ou menos firme as suas ideias
religiosas.
O Protestantismo não criou raízes
profundas entre nós e, de certo modo, isso foi causado pela grande
devoção à Virgem, que, no seu papel de Mãe amantíssima, serve de
medianeira entre Deus e os homens; por outro lado, pelo culto das
Almas do Purgatório; por isto mesmo, a criação, através de todo o
país, das Irmandades das Almas e das Confrarias e a construção
tradicional das capelinhas ermas com o nome de «Alminhas» foram
motivo de retenção das ideias tradicionais que não se sentiram
abaladas nos seus princípios por outros ideais políticos ou
religiosos. Orações singelas, mas revelando viva fé, passaram
perpetuadas pelas gerações, através dos séculos, e ainda hoje as
podemos encontrar entre as pessoas humildes do povo, por vezes numa
amálgama ignorante de princípios cristãos e supersticiosos.
A Virgem, todavia, é invocada em
todas as horas do dia desde o levantar ao deitar da cama, no começo
e no fim dos diferentes trabalhos e em todas as circunstâncias. Ela
é, na verdade, o arrimo forte a que o povo se segura nos seus
transes, a quem recorre mesmo em primeiro lugar; Ela é Mãe e o seu
Filho, mesmo sendo Deus, não lhe recusará um pedido. Está aqui o
ponto de partida do seu ideal e da sua filosofia simples, mas
compreensiva. Ê nesta relação familiar que o nosso povo baseia os
seus pedidos de intercessão à Santíssima Virgem.
É, pois, nesta igualdade ingénua e
modesta da família em geral com a Sagrada Família, que apoia a razão
de todo o seu pensamento.
Ora, as circunstâncias em que nasceu
Jesus, pobreza e humildade, vêm afagar a sua maneira de pensar e de
agir; e toda essa época que marca o Nascimento de Cristo é uma época
de esperança, principalmente para os mais desprotegidos; assim, como
o Menino nasceu pobríssimo e foi presenteado, também o povo espera
sempre alguma coisa com que alivie o seu desconforto; como o Menino
recebeu a visita dos Magos com as suas ofertas, também os garotos,
formando grupos, esperam de certas casas, alguma guloseima ou
dinheiro com que possam festejar esse dia – As Janeiras.
Em princípio as «Janeiras» seriam
cantadas no começo de Janeiro, portanto nas primeiras noites do novo
ano; mas o dia seis está perto e celebra a visita dos Reis Magos à
gruta de Belém; por isso as «Janeiras» se prolongam até ao dia de
Reis, o que, em certas regiões do país, toma nome diferente, mas
conforme com o dia – cantar as reisadas se diz então.
Esse facto bíblico da visita dos
Magos, com as suas ofertas ao Deus-Menino recém-nascido, não
sensibilizou só a classe popular como grande número de artistas de
todas as categorias, de todos os países e de todas as épocas; a
adoração dos Magos e dos Pastores está bem representada na pintura e
na escultura.
Na Literatura Portuguesa, muitos
autores trataram o assunto, quer enquadrando-o em obras clássicas,
quer dando-lhe o tom afectivo e humano da maternidade.
Dentre eles, quero destacar três:
Um, pela maneira sentimental, dolorosamente santa, como tratou a
vida de Jesus de momento a momento, de angústia a angústia, até a
maceração da sua própria existência, desde o ventre materno até à
Ascensão – Frei Tomé de Jesus.
/ 60 / De
facto «Os trabalhos de Jesus» são, em todos os momentos da vida de
Cristo, representados pela pena de Tomé de Jesus numa sucessão de
sofrimentos cruéis até ao desenlace do Gólgota; os sacrifícios do
autor, prisioneiro dos muros no norte de África, por muitos e
amargos que tenham sido, não se poderão comparar às angústias de
Deus feito homem.
Mas Tomé de Jesus também nos conta a
história dos Magos que vieram visitar o Menino, trazendo-lhe as suas
prendas; fala-nos da recepção feita por Herodes, da sua hipocrisia e
das suas perversas intenções; e ainda de que avisados em sonhos da
malícia do Tetrarca, voltaram a suas terras por outro caminho
(1).
Outro, levado pelo interesse de
agradar, escrevendo um novo auto de feição popular também em
castelhano como os primeiros que compusera – Gil Vicente.
Instado pela Rainha, que se mostrara
satisfeita com as duas peças anteriores, compôs, para o dia de Reis,
o «Auto dos Reis Magos». O argumento é simples: O pastor Gregório
que tencionara ir a Belém, errou o caminho; surge outro pastor,
Valério, com quem estabelece conversa que se prolonga com a chegada
de um ermitão; mas a parte que de facto se liga ao tema surge-nos
com o aparecimento de um cavaleiro árabe que acompanhava os Reis
Magos, os quais representam no auto um papel de curta duração, pois
somente aparecem no fim, cantando o seguinte Vilancete:
«Quando la Virgem bendita
lo parió,
todo mundo lo sentió.
Los coros angelicales
todos cantam nueva gloria;
los tres Reis la vitoria
de las almas humanales
en las tierras principales
se sonó,
cuando nuestro Dios nació»
(2).
É também através da conversa entre o
cavaleiro, o ermitão e os dois pastores que se sabe que apareceu uma
estrela avisando os Magos, a qual era
«... muy reluciente...
Y um nino en medio della,
muy mas que ella
relu ciente en gran manera:
uma cruz en su cimera
por bandera»
(3).
Também no discurso que o Rei
Baltazar faz junto da igreja no manuscrito dos «Reis» da Palhaça, o
Menino nos aparece no centro da estrela que os guiou até Belém.
Resta-nos uma referência particular
a Júlio Dinis, não só porque soube enquadrar numa das suas obras –
«A Morgadinha dos Canaviais» – um auto dos Reis Magos com verdadeira
mão de mestre, mas ainda porque o podemos considerar um escritor
deste distrito. (4)
Em quase todo o país se cantam as
«Janeiras», costume que é, sem dúvida alguma, muito antigo; em
algumas aldeias do Minho fazem-se representações de autos populares
em verso, cujo assunto tem por centro o nascimento de Jesus;
recordo-me de um auto representado na vila do Prado, perto de Braga,
sobre um estrado previamente preparado; noutras regiões fazem-se
cortejos de «Pastoras»; noutras de «Reis».
Estes autos representados em estrado
já são citados por Leite de Vasconcelos a propósito dos folhetos de
cordel, quando ele afirma:
«O Auto dos Reis Magos» está
bastante propagado na literatura de cordel.
(5)
O mesmo autor cita ainda um folheto
de cordel, que, publicado, trazia como autor Costa Nabiça, mas sendo
refundição de textos mais antigos, onde há uma cena em que Herodes,
ao darem-lhe a notícia da execução dos Inocentes a que nem o próprio
filho escapou, «atira com a espada ao chão e, arrancando as barbas,
foge gritando: ai que morreu o meu filho!»
(6).
Cita ainda um «Auto dos Três Reis
Magos» original de um poeta analfabeto – «O cego de Gôrda» – natural
de Palmeira, Esposende, onde aparece também a fala de Herodes:
«Retira-te de mim miserável! Juro-te
por estes bigodes
Que brevemente saberás
Qual é a justiça de Herodes».
Depois, a uma informação do
Embaixador que diz que o Deus-Menino é nascido, Herodes, irado,
responde:
«Seja nascido ou não seja,
Suceda o que suceder,
Por estas barbas te juro
Ou'esse infante hade (sic) morrer».
(7)
Para fazermos qualquer estudo sobre
estes assuntos temos sempre que beber nesse grande
/ 61 / repositório de
usanças e tradições populares de Leite de Vasconcelos – «Ensaios
Etnográficos». Aí se encontra tudo quanto é possível coligir a um
homem interessado e perseverante como foi o seu autor; os seus
estudos sobre Etnografia são o produto de uma vida de exuberante
lavor e de extrema dedicação aos estudos filológicos em Portugal;
não devemos esquecê-lo e, pelo contrário, manuseá-lo com frequência.
Nos «Opúsculos», ao fazer o estudo
da Linguagem popular de Guimarães, o autor cita duas quadras
relativas à festividade dos Reis de cunho caracteristicamente
popular:
«Quando o Santo José biu
Três reis
em sua pousada,
Sua-i aul e ma ficou croada
E tãobéim seu coraçóum:
Logo preguntou à Virgeim:
– Sinhora-s qui homein'são?
Dai-Ie cr'ôua cuômo rei,
Q'i êles os três reis serão:
Milra
cuômo sois mortais,
Que mais q'reis áu miêu menino?»
(8)
Como estamos a ver, nestes versos
assistimos à chegada dos Magos a Belém e à admiração de S. José que
interroga a Virgem sobre os recém-chegados. A conversa passa depois
a ser confusa, elucidando-nos somente acerca das ofertas que trazem
ao Menino.
É próprio das composições populares
este diálogo sem nexo, apressado e confuso, como podemos ver até nos
textos dos Reis da Bairrada.
As Janeiras constituem uma tradição
interessante, própria de certas regiões do país; a exemplo do Mestre
muitos estudiosos se têm dado ao trabalho de não só recolherem as
letras, mas ainda as respectivas músicas, por vezes ingénuas mas
cheias de encanto.
Passo a apresentar uns versos que
pude compilar e da maneira mais completa possível, de Electra deI
Lima, concelho de Ponte da Barca:
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I
– Quem são aqueles três Reis
Que vão no lado do rio?
– São os Reis do Oriente
Que vão visitar o Menino.
II
Nossa Senhora le disse:
– Ó meu Deus que vos farei?
Não tenho cama nem berço
Nos braços vos criarei.
III
Anginhos olhai p'ró céu
Que lá vireis uma cruz;
Lá vireis cama e berço
Par'ó Menino Jesus.
IV
Os três Reis do Oriente
Seguiram para Belém,
Guiados por uma Estrela
A Estrelinha do Bem.
V
Foram à casa de Herodes
Pró bem lhes encaminhar;
Herodes, como maldoso,
Tratou de os enganar.
VI
Eles, como eram Santos,
Seguiram o seu destino,
Por uma estrela guiados
'té chegarem ao Menino.
VII
S. José desceu cá'baixo
Acender um candeeiro,
Que Nossa Senhora teve
Jesus Cristo Verdadeiro.
VIII
Viva lá senhor F...
Quando põe suas correntes,
No meio da sua sala,
É dos homens mais valentes.
IX
Senhora dona de casa,
Quando põe o seu chapéu,
No meio da sua sala,
Parece um anjo do céu.
X
Esta casa é caiada
Mais por dente que por fora;
O senhor dê muitos anos
Aos senhores que nela mora(m).
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XI
– De quem é aquele lencinho,
Que está ali no coradouro?
– É da menina F...
Que é bonita como o ouro.
XII
Viva lá, Senhora F...
Raminho de salsa crua;
Quando se põe à janela
Nace o sol e põe-se a lua.
XIII
Viva lá, menina F...
Raminho de bem querer;
Quando se põe à janela,
As pedrinhas faz tremer.
XIV
– De quem é aquele chapéu
Que está dependurado?
– É da menina F...
Que é bonita como um cravo.
XV
Viva lá, menina F...,
Casaquinho de veludo;
Meta a sua mão ao bolso,
Tire p'ra cá um escudo.
XVI
Viva lá, menina F...
Casaquinho de pinhão,
Meta a sua mão ao bolso
Tire p'ra cá um tostão.
XVII
Viva Já o senhor F...
Casaquinho de veludo,
Quando mete a mão ao bolso
Deita-nos sempre um escudo.
XVIII
Viva lá, o senhor F...
Com 'ma flor no chapéu
Quando vai par'à igreja,
Parece um anjo do céu.
XIX
Viva lá, menina F..., R
Aminho de palma branca.
Seu corpinho é de neve
Sua alma já 'stá santa.
XX
– Ó meu Menino Jesus,
Onde está teu sapatinho?
– Deixei-o em Santa Clara
Metido num buraquinho.
|
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É este o conjunto de quadras,
referentes às «Janeiras» mais completo que conheço; na verdade, há
aí três partes distintas:
a) Uma introdução formada pela
primeira quadra, disposta em diálogo, que nos indica o aparecimento
dos Reis Magos. b) A história do pobre nascimento de Jesus, a
angústia da Virgem, o encontro dos Magos com Herodes, o engano
intencional do Tetrarca e a chegada ao seu destino, guiados pela
estrela. c) Daqui em diante (quadras VIII a XIX) surgem os versos
normais das «Janeiras», isto é, do elogio das pessoas da casa para
receberem a consoada; o conjunto não tem propriamente uma quadra de
agradecimento, se recebem alguma coisa, ou de repulsa, se nada
recebem, mas termina por outra quadra disposta em diálogo, como a
primeira, dirigida ao Menino Jesus, interrogado sobre o lugar onde
se encontra o seu sapatinho.
/ 62 / Se
depois de cantadas pelo grupo de reiseiros todas as quadras, os
donos da casa não vierem abrir a porta e não derem qualquer coisa,
eles terminam descantando-os; é interessantíssima a estância fixada
em Trás-os-Montes pelo Abade de Baçal:
«Estes Reis que aqui cantamos,
Tornamo-los a descantar:
Estes barbas de farelos
Não têm nada que nos dar
Só têm uma arquinha velha
Onde o gato vai mijar»
(9)
Mas o grupo de versos varia de lugar
para lugar e de concelho para concelho. Assim, em S. Julião de
Freixo, concelho de Ponte do Lima, são só cantadas oito quadras
baseadas no interesse que leva os grupos a andarem de porta em
porta:
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I
Aqui estamos nós
Todos reunidos,
A cantar Os Reis
Aos nossos amigos.
II
As Janeiras não se cantam
Nem aos reis nem aos fidalgos
Só se cantam aos lavradores
Porque dão malgas de caldo.
III
Bendita a hora Bendita
Em que entrou na igreja do Senhor;
Bendita a hora também
Em que entrou co'a sua flor.
IV
Viva lá, senhor F...
Um raminho c'uma cereja;
São os olhos mais bonitos
Que entram na nossa igreja.
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V
Viva lá, senhor F...
Casaquinho de veludo
Deite a mão ao seu bolsinho
Deite p'ra cá um escudo.
VI
Viva lá, senhor F...
Cabelinhos aos anéis
Vale mais o seu cabelo
Do que três contos de reis.
VII
A rolinha rola, rola,
Por cima duma cebola;
Viva lá, Senhor F...
A mais a sua senhora.
VIII
Vamos dar as despedidas,
Boa-noite, até amanhã;
Vamos pedir ao Senhor
Que p'ro ano estejam cá.
|
|
A quadra n.º V é variante dos n.ºs
XV, XVI e XVII do grupo anterior; e tem a mais a última que é o
epílogo do canto, desejando um bom ano às pessoas da casa.
Resumindo, o assunto das «Janeiras»
é sempre o mesmo através das aldeias, vilas e cidades, do Minho e
Trás-os-Montes ao Algarve; o que varia é não só a música, mas também
a letra, não só quanto à disposição, mas ainda quanto ao número das
quadras. Possuo ainda letras de Álvora, concelho de Arcos de
Valdevez; de Gulpilhares, concelho de Vila Nova de Gaia; de S. Paio
de Merelim, Braga; de Duas Igrejas, Vila Verde; de Vieira do Minho;
de Aveiro; e de Trás-os-Montes (sem indicação da localidade).
Todo este material aguardará outra
altura mais oportuna, visto que o meu interesse de momento é
dedicar-me aos «Reis» do Norte da Bairrada, que apresentam
características bastante originais.
Já uma vez tentei estabelecer uma
linha, na verdade sujeita a muitas correcções, que delimitasse a
região da Bairrada pelo lado do Norte; geologicamente, a zona está
estudada e conforme a constituição do solo, aparece-nos, dentro
dessa linha, o vinho tipicamente bairradino; no entanto, zonas há em
que se encontram vinhos diferentes, o que se nota, por vezes, numa
só aldeia (10).
Não era meu interesse dedicar-me
particularmente ao estudo desses problemas. Passei, portanto, de
relance sobre o assunto para me dedicar mais ao estudo linguístico,
etnográfico e folclórico dessa região em todos os seus aspectos e
compus a minha Dissertação de Licenciatura, apresentada à Faculdade
em 1959. Aí estudo certas aldeias muito antigas, como Soza, Ouca e
Fermentelos, e outras que, por estudos feitos, são de criação muito
mais recente, quando não zonas de infiltração do povo nortenho,
atraído pela fertilidade dos terrenos e até por um ambiente de
idêntica coloração. Aí, pois, defendo a influência exercida pelo
norte, neste caso no seu sentido lato, e também por outras povoações
situadas mais ao norte mas relativamente perto; é o caso de Ílhavo,
povoação muito antiga que terá tido, como na verdade ainda hoje tem,
uma grande influência sobre essa zona mais ao sul. Referi-me à
linguagem e também ao característico modo de entoação, notável pela
musicalidade das frases; e afirmei que a vila de ílhavo tem exercido
até uma influência muito maior do que a própria cidade de Aveiro que
se terá confinado muito à sua volta.
Pois bem, passemos ao folclore; é
deste assunto que agora me quero ocupar, e dentro deste, do que diz
respeito à Epifania.
Em todas as aldeias próximas de
Aveiro se fazem por essa altura «Cortejos de Pastoras», simples, sem
diálogo, em que os componentes somente apresentam os seus fatos
garridos, com predominância minhotos.
No entanto, de aspecto mais
complicado, de cortejos de oferendas para a Igreja ou Capela,
ouve-se falar pela primeira vez em ílhavo, que parece ter primado
com essas festas. Mas esse ritmo abrandou, ílhavo deixou de ter os
seus Reis, e em contrapartida essa zona sob a sua
/ 63 / influência,
passou a organizá-Ios. Assim passa a haver cortejo dos Reis em Soza,
Ouca, Boco, Palhaça, Nariz e numa aldeia do Concelho de Águeda, mais
interior, chamada Borralha, enquanto as zonas de influência de
Aveiro, passam a ter cortejos de pastoras: Aradas, Quinta do Picado,
Verdemilho, Quintãs, Costa e Póvoa do Vaiado, Oliveirinha, etc.,
etc., o que não quer dizer que, uma vez ou outra, também não façam
cortejo dos Reis.
Actualmente, há uma aldeia em que
essa festa se faz com grande luzimento, e deixa até de ter já o
cunho inicial popular; os autores dos autos passaram a interessar-se
pelo assunto e foram bebê-lo com mais interesse a obras consideradas
clássicas, como a «Bíblia», «O Mártir do Gólgota» de Perez Escrich
ou o «Ben Hur» de Lewis Wallace.
Qual o melhor Auto? É isso que nos
propomos estudar.
Quando pela primeira vez tratei o
assunto, afirmei que o arranjo utilizado na Palhaça, tinha sido
baseado nos papéis de Ouca e de Nariz. Não me foi possível, na
altura, comprovar a afirmação. É que estes manuscritos são
avaramente guardados pelo autor que a ninguém os quer ceder; na
Palhaça, consegui coligir praticamente tudo o que dizia respeito a
esta festa, embora tivesse de vencer por vezes certos obstáculos.
Esta retenção dos originais é motivada por aquilo a que eu costumo
chamar política de aldeia.
Por felicidade, chegou-me às mãos um
velho manuscrito dos «Reis» de Nariz, com o qual o da Palhaça tem
bastantes semelhanças, diga-se mesmo que é o plano sobre o qual este
foi feito; é, como se pode ver, muito simples e fácil de decorar. O
da Palhaça é muito mais completo; antes mais solene; num e noutro há
erros ortográficos e de sintaxe, mas não nos admira isso, pois foram
pessoas pouco cultas que os compuseram.
Na Palhaça, apesar das muitas
incongruências, tentam aproximar-se mais do natural do que em
qualquer das outras aldeias citadas, não falando em Bustos, onde se
peca por grande exagero.
Manuel Vieira Romízio, um velho
criado de servir, amigo de ler livros de leitura, a «Rosa do Adro» e
o «Amor de Perdição», guardou com grande cuidado esses papéis que
Iogo se prontificou a emprestar-me; por isso, graças a ele, eu posso
pôr ao lado dos escritos da Palhaça, os de Nariz, tornando assim
possível uma comparação.
COMPARAÇÃO DOS
PAPÉIS DA FESTA DOS «REIS DE NARIZ, DA PALHAÇA E DA BORRALHA»
Disse há pouco que o original de
Nariz deve ter servido de plano ao da Palhaça, e isso nota-se
perfeitamente, fazendo uma leitura com os Originais, um em frente do
outro. A estrutura do primeiro é a mesma do segundo, mas, enquanto
naquele a simplicidade das formas do discurso e o tom natural e
perfeitamente popular se mostram com evidência, neste nota-se um
conhecimento mais profundo, embora por vezes incompleto, da história
de Cristo; além disso, a fala das personagens é mais solene, mais
própria das grandes peças de teatro... e, quando os reis falam, não
se limitam a um pequeno número de palavras, mas fazem de preferência
Longos discursos, ora com evocações histórico-religiosas, ora de
interesse moral.
Estas são as diferenças que existem
nos dois dos três textos que adiante reproduziremos, no seu sentido
geral; mas outras há que passo a mencionar.
Logo no começo, no texto da Palhaça,
há o diálogo entre o Anjo e o velho Simeão que nos elucida sobre o
que vai acontecer e qual a razão da sua presença, ali.
Ora, no original de Nariz, nada há
que nos indique os sucessos posteriores; o texto entra imediatamente
com o encontro dos Reis Magos, deixando para segundo lugar a fala do
Anjo que não faz parte de um diálogo como no outro texto, mas é um
convite a todos os pastores e pastoras para o seguirem. Como vemos,
não há dúvida de que o original da Palhaça começa com mais arte,
obrigando os espectadores a presenciarem e a tomarem, desde o
início, contacto mais íntimo com a peça.
Para mostrar a diferença de
linguagem num e noutro texto, basta reproduzir a primeira
interrogação no encontro dos três Magos:
Nariz:
Baltazar – Quem és tu?
Palhaça:
Baltazar – Saúdo-vos, Majestade,
amigável e respeitosamente; que fazeis e onde vos dirigis?
Por este exemplo vemos, e não é
necessário apresentar outro, pois numa leitura, ainda que
/ 64 / breve, muitos se
podem tirar, que o tom natural da conversa quotidiana e simples é
substituído pelo tom grave, solene da conversa aristocrática,
embora, por vezes, o autor não saiba fazer corresponder os elementos
de sintaxe devidos ao tratamento.
Outra diferença, que também é
superior no original palhacense, encontra-se no texto, precisamente
na altura em que os Magos deparam com o palácio de Herodes. Enquanto
o texto de Nariz está conforme o que é actual, visto que o escravo
do Tetrarca é representado pelo cabo da guarda do palácio, no texto
da Palhaça aparece-nos esse escravo com o nome de Cingo, o egípcio
favorito do cruel rei, e isto é, com toda a certeza, uma
reminiscência da obra de Perez Escrich, «O Mártir do Gólgota».
Além disto, uma outra diferença se
nota, entre os originais; enquanto no manuscrito da Palhaça, Herodes
manda chamar os sábios doutores da Lei para que o elucidem
sobre o nascimento do Messias, no texto de Nariz os doutores da
Lei são substituídos pelo Secretário de Herodes que lê aos
ilustres estrangeiros a lei que intima todas as mães de Israel a
apresentarem no palácio os seus filhos até à idade de dois anos.
No texto da Palhaça, o assunto é um
pouco diferente pois o primeiro doutor lê o seguinte:
«Senhor e grande Rei de Judá!
Está escrito, no cap.º XIV, do
Vaticínio de Belém, nas Profecias de Daniel, que outra coisa é a
Escritura, senão uma carta do Omnipotente aos homens!
Rogo-te que estudes e medites, cada
dia, as palavras do teu Criador, aprendendo assim a conhecê-lo
nelas.
Porque o Messias, prometido à terra,
deve nascer em Belém de Judá, que, apesar de ser uma cidade sem
importância, é considerada feliz entre todas as cidades».
E esta informação sobre o nascimento
do Menino também é confirmada pelas palavras do segundo
doutor:
«Senhor:
De Jacob nascerá uma estrela, no
formoso céu da Galileia, onde David foi ungido rei; em ti, Belém,
chamada Eufrates.
Tu és pequena, mas de ti sairá
aquele que deve reinar em Israel, cuja geração teve princípio desde
a eternidade».
Nota-se mais ainda: enquanto os
discursos do texto de Nariz são feitos pelos Reis, junto ao palácio
de Herodes (e isto tem muita importância, porque toda a gente que
assiste os quer ouvir), no texto da Palhaça são feitos à porta da
igreja, isto é, já com o Presépio à vista. Nesse caso, no original
da Palhaça há, é certo, palavras que esclarecem a identidade de cada
um dos Magos a Herodes; mas quase que, nessa altura, a cena cai no
tom natural de curiosidade de saber. Somente Gaspar, dando de novo
com a Estrela, se maravilha com o seu reaparecimento, falando algum
tempo mais.
No texto de Nariz, Herodes enganou
os Magos, indicando-lhes um caminho diverso; e é depois Baltazar,
que, voltando ante as portas do palácio, lhe chama traidor,
mentiroso e assassino de seu filho Antipas.
A peça, que termina junto do templo
com grandes discursos no original da Palhaça, acaba no de Nariz, por
três simples e mal feitas quadras, cada uma delas recitada por cada
um dos Reis ao mesmo tempo que beijam o Menino-Deus; isto não está
longe de modo como Gil Vicente termina o seu «Auto dos Reis Magos»,
simplesmente, neste autor, os Reis cantam o vilancete em conjunto.
Concluindo: o texto de Nariz é mais
simples, mais aproximado da conversa popular de todos os dias, e,
por isso mesmo, mais facilmente apreensível por todas as pessoas,
que, pouco cultas ou mesmo analfabetas, podem tomar parte integrante
na representação. Esta simplicidade facilita às personagens uma
interpretação mais natural.
O texto da Palhaça, mais solene nas
suas frases, mais elevado de pensamento e mais minucioso em certos
pormenores, tem, de quando em vez, alguma coisa de pretencioso.
Mesmo assim, a representação é mais aceitável sob o ponto de vista
artístico.
Por tudo o que acabámos de expor,
concluímos pela superioridade do texto da Palhaça, muito mais fora
do vulgar.
Resta-nos agora chamar também a
atenção para o manuscrito dos Reis da Borralha e para as respectivas
influências ou interpenetrações, evidentes depois de uma ligeira
comparação.
Assim, no manuscrito da Palhaça, o
velho Simeão aparece no princípio e no fim; o seu diálogo com o Anjo
introduz o auto, vindo imediatamente a seguir o encontro dos Magos.
Na parte final, Simeão sente-se extasiado perante o Deus-Menino.
No de Nariz, esta santa figura de
velho não aparece; o auto começa com o encontro dos Reis Magos,
vindo a seguir um convite
/ 65 / da parte do Anjo
aos Pastores, situação idêntica ao da Borralha. Neste também não
aparece o velho Simeão; o auto é introduzido pela fala do Anjo da
Aparição aos Pastores. E ainda neste manuscrito se topa com alguma
coisa de diferente em relação aos outros dois: não se assiste ao
encontro dos Magos que só revelam a identidade perante as perguntas
de Herodes, à frente do seu palácio. No entanto, as falas dos Magos,
nesta altura, são, nos três autos, muito semelhantes, quase iguais.
Mas podemos ainda apontar outras
diferenças: no auto palhacense, aparece uma figura, Cingo, o escravo
de Herodes, que aparece substituído, nos de Nariz e da Borralha,
pelo cabo da guarda; aparecem também os dois doutores da lei, a quem
Herodes pede esclarecimentos sobre o nascimento do Messias. Ora, no
texto de Nariz, além do cabo da guarda, há o Secretário de Herodes
que lê o Código da Lei na presença dos Magos, ao mesmo tempo que
revela uma ordem a todas as mães para apresentarem os filhos até à
idade de dois anos, no palácio, hipocritamente a fim de ser
reconhecido o Messias.
No texto da Borralha, contudo,
aparece uma nova personagem, o Doutor Rabi, a esclarecer os
interessados sobre o lugar onde teria nascido Jesus; e além desta, e
à semelhança de Nariz, um Secretário a ler o édito imperial com a
mesma finalidade de avisar as mães de Israel. É ainda neste auto que
surge uma nova situação, após o diálogo com Herodes: os Magos
aparecem pernoitando sob uma árvore, sendo avisados em sonho da
traição de Herodes, pela voz do Anjo que os guia até à igreja, à
frente da qual os Reis não falam, o que acontece nos outros dois
casos.
Estes cortejos dos «Reis Magos» têm
vigor na Península Ibérica; recordemos certas cidades da Espanha,
por exemplo Málaga, onde se prima pelo grande aparato folclórico, e
onde os Reis distribuem brinquedos e rebuçados às crianças; de maior
interesse é a tradicional «cavalgata» de Bilbau, preparada com
interesse, mas antecipadamente; é no dia cinco de Janeiro, à
tardinha, que se efectua a passagem dos Reis pela cidade, para levar
às criancinhas necessitadas os presentes trazidos, simbolicamente,
de terras longínquas. Isto, aliás, esteve na reprovação do Papa Pio
XII, que quis acabar com esse costume por ser uma mentira armada à
inocência das crianças (11).
(continua
no número seguinte)
__________________________
NOTAS:
(1) – Frei Tomé de Jesus –
«Trabalhos de Jesus», Porto, 1951, vol. I, págs 167-177.
(2) – Gil Vicente – «Obras
Completas», vol. I, Lisboa, 1942, pág. 47.
(3) – Gil Vicente – Opus cit., vol.
I, Lisboa, 1942, pág. 45.
(4) – Quanto à integração do auto
dos Reis Magos na citada obra deste Autor, veja-se o artigo
publicado no «Jornal da Bairrada», n.º 274, com o título «Aspectos
de folclore em Júlio Dinis».
(5) – Leite de Vasconcelos – «A
Barba em Portugal. Estudo de Etnografia comparativa», Lisboa, 1925,
pág. 107, nota 2.
(6) – Leite de Vasconcelos – «A
Barba em Portugal. Estudo de Etnografia comparativa», Lisboa, 1925,
pág. 19.
(7) – Leite de Vasconcelos – Opus,
cit., pág. 107.
(8) – Leite de Vasconcelos – «OpúsculO's»
vol. lI, pág. 227.
(9) – Francisco Manuel Alves –
«Memórias Arqueológico-históricas do distrito de Bragança», tomo IX,
pág. 299.
(10) – António Tavares Simões Capão
– «A Bairrada. Estudo linguístico, histórico e etnográfico».
Dissertação de Licenciatura, inédita, Coimbra, 1959, pág. 63-65.
(11) – Informação dada por uma aluna
da Escola de Agentes de Formação Rural, de Braga. |