I –
«Seria desejável que as
personalidades mais categorizadas e representativas da região
aveirense, os estudiosos dos problemas respeitantes aos diversos
sectores da vida do Distrito, se congregassem no sentido de dar a
conhecer ao Pais as possibilidades culturais, económicas,
políticas e sociais desta região, que abrange 2.772 quilómetros
quadrados de superfície. As belezas naturais, as características
etnogeográficas, o problema demográfico, o da assistência, etc.
merecem estudos minuciosos, que devem e podem ser tratados por
pessoas qualificadas, que as há, amantes da região onde nasceram.
Afigura-se-nos que tal tarefa deverá caber à Junta Distrital, em
estreita colaboração com as autarquias locais».
O aparecimento do boletim «Aveiro
e o seu Distrito», cujo primeiro número veio a lume em Junho
último, não pode deixar de regozijar-nos pelo significado que
representa e por vir de encontro à sugestão formulada por nós, há
mais de um ano, na imprensa local
(1).
A Junta Distrital de Aveiro,
abalançando-se a uma publicação desta natureza, destinada a fazer
o inventário da região aveirense nos múltiplos aspectos da sua
operosa actividade, realiza um dos seus principais objectivos e
pratica uma autêntica política do espírito.
O nosso Distrito, com uma vida
intensa, com as suas belezas naturais inconfundíveis, a sua
pujante e crescente riqueza económica, só ganha em ser conhecido e
só lucra com os estudos e divulgação dos seus diferentes
problemas.
Não é novidade para ninguém que o
Distrito de Aveiro ocupa o terceiro lugar na carta industrial do
País. Nele predominam as indústrias metalomecânicas, as do papel e
as químicas, as da cortiça e madeiras, a dos lacticínios, as do
calçado, as da cerâmica e faiança, a da construção naval, a
salineira, as da pesca longínqua e costeira e a da agricultura.
Podemos ainda acrescentar a este rol a avicultura industrial, uma
florescente indústria por enquanto na fase inicial de
desenvolvimento, mas cujo rendimento bruto anual roça pelos quinze
mil contos.
Um apontamento: só uma das várias
unidades industriais desta modalidade, espalhadas pelo Distrito,
dispõe de aviários que obtêm cerca de 80.000 pintos por mês.
Outro apontamento: as 268 marinhas
do salgado de Aveiro produziram, na safra de 1965, 95.500
toneladas de sal, no valor de vinte e sete mil e trezentos e seis
contos. Embora se trate de indústrias do sector primário em que o
crescimento anual é lento e muito sujeito a oscilações, em que há
anos de expansão alternando com anos de retrocesso, sobretudo na
pesca, nas indústrias extractivas e na agricultura, o certo é que
a sua influência na balança económica da região e, digamos, na
economia nacional, não é de desprezar.
O elevado número de
estabelecimentos fabris (cerca de 5.500); o seu valor económico,
computado em um milhão e quinhentos mil contos; o avultado
contingente de indivíduos ao serviço da indústria (à roda de
61.000), colocam o Distrito de Aveiro logo a seguir ao de Lisboa e
ao do Porto. Seguem-no de perto o de Santarém (com menor densidade
industrial) e o de Braga.
O surto de progresso que se tem
verificado nos últimos anos no nosso concelho, surto
/ 6 /
extensivo a outras zonas do Pais, deve-se, em grande parte, à
unidade política em que temos vivido, capaz de criar ambiente à
realização de grandes obras. Entre essas obras de vulto, conta-se
o melhoramento e construção do porto de Aveiro, cuja influência na
vida económica da região, tema principal do nosso trabalho, é
verdadeiramente notável.
A laguna, que se havia convertido
num mal mortífero em épocas passadas, transformou-se num elemento
de bem-estar das populações ribeirinhas; a barra, que se
encontrava quase sempre obstruída e incapacitada de dar acesso à
navegação, tornou-se um factor de riqueza, permitindo que os
navios entrem e saíam sem perigo nem receio; a população, que
havia atingido 14.000 almas no século XVI e caíra para 3.000 no
princípio do século XIX, multiplicou-se não só pelo saneamento
operado pela abertura da barra nova, que passou a dar saída às
águas estagnadas, mas também porque se abriram novos horizontes à
actividade do homem. Facilmente se conclui que o porto é condição
de vida ou de morte para A veiro, é a razão de ser da sua própria
existência.
Na opinião de pessoas autorizadas,
o porto, uma vez convenientemente equipado e dragado, representará
o maior valor económico da nossa região. E, dadas as suas
excepcionais condições naturais numa costa de 485 Km. de extensão,
poderá vir a ser um complemento do porto industrial de Leixões,
presentemente quase saturado e sem possibilidades de expansão.
Foi também esta a opinião do douto
Conselho Superior das Obras Públicas que, em 10 de Maio de 1955,
emitiu o seguinte parecer: «se é provável que a função de grande
porto comercial não venha a ser exigida a Aveiro antes ainda da
longínqua saturação de Leixões (e desse ponto de vista não deve
tão-pouco esquecer-se a presença da Figueira da Foz), já aparecem
bem menos remotas as suas extraordinárias possibilidades de grande
porto industrial, sem par no norte e centro do País, e cujo plano
de aproveitamento seria necessário assegurar: nesse aspecto, pode
dizer-se que é nula a capacidade de Leixões e que A veiro não tem
competidor».
Este parecer, muito lisonjeiro
para o nosso porto, foi homologado pelo então Ministro das Obras
Públicas, Sr. Eng.º Frederico Ulrich, em despacho de 18 de Maio de
1955.
Podemos reforçar esta autorizada
opinião com um excerto do discurso do ilustre Ministro das
Comunicações, Eng.º Carlos Ribeiro, quando Sua Excelência o
Presidente da República, Almirante América Tomás, inaugurou as
recentes obras portuárias em Leixões, no dia 23 de Outubro do
corrente ano, obras no valor de 332.000 contos.
Disse o Sr. Ministro: «Na verdade
a bacia da foz do Leça estará em breve totalmente ocupada pela
doca número dois e não é arriscado prever que dentro de duas ou
três dezenas de anos se esgote a capacidade de exploração do
porto. Restará, então, ou o alargamento artificial do porto pelo
aproveitamento de novas áreas marítimas ou encontrar outro porto
complementar, que parece só vislumbrar-se em Aveiro».
Como as instâncias superiores
estão agora ao corrente das grandes possibilidades do nosso porto
– o que nem sempre aconteceu, diga-se de passagem –, a região
aveirense tem um amplo futuro aberto à sua frente.
As opiniões dos técnicos são
concordes, o que representa meio caminho andado.
A realidade insofismável dos
factos veio pôr em evidência, nestes últimos anos, a acertada
orientação do Governo quando, em 1929, decidiu dar prioridade às
obras do porto de Aveiro, concedendo a verba de 21.000 contos.
Oxalá as futuras gerações saibam
dar continuidade à obra iniciada há mais de século e meio.
II –
Durante muitos anos, o porto de
Aveiro não teve a menor projecção no País. No grande Congresso
Nacional de Lisboa, realizado em 1909, foi apresentada uma
«Memória» sobre portos francos, da responsabilidade da «Liga de
defesa dos interesses públicos». Nesta «Memória» não há qualquer
referência ao nosso porto. Cita-se Viana do Castelo, Figueira,
Setúbal, Faro, mas nem a mais leve alusão a Aveiro.
De facto, a verdade é que o
movimento marítimo de Aveiro, nesse tempo, pouco mais era do que
nulo. A barra estava quase sempre obstruída, e as instâncias
superiores não atendiam aos apelos angustiosos da cidade e do
concelho. Por outro lado, não havia planos, nem técnicos, nem
disponibilidades financeiras.
Em 1921 já era do conhecimento dos
governantes que: «na complicada acção das correntes internas e
marítimas, dos ventos e das dunas,
/ 7 / das
cheias e aluviões, o bem-estar e o progresso desta região,
estiveram sempre indissoluvelmente ligados às condições do passe
da barra, por onde se realiza o tráfego marítimo, se escoam as
águas altas dos rios e entra a corrente purificadora das águas
salgadas. Condição primária de toda a economia regional, a barra
de Aveiro – muito tempo um rasgão apenas, errante de norte a sul,
na cortina litoral das dunas, da Torreira a Mira – determinou nas
suas vicissitudes, umas vezes a miséria e outras a abundância, ao
capricho das forças geodinâmicas, que ora a alargavam, ora a
reduziam e de todo a obstruíam, causando a inundação das terras
marginais, a epidemia, o despovoamento e a ruína».
Assim retratou, com inteira
verdade e em síntese perfeita, a situação da região aveirense, o
autor do preâmbulo do decreto 7880 que criou a antiga Junta
Autónoma da Ria e Barra de Aveiro.
Apesar deste panorama fielmente
traçado em 1921, nada se fez de positivo até 1932.
No concelho e na cidade poucos
eram os que pugnavam para que Aveiro voltasse a ter o alto valor
económico que atingira em séculos passados. Não havia fé nos
destinos do País. As paixões políticas exacerbadas; a impotência
dos governos perante um parlamento de palavrosos; a falta de visão
e de planos construtivos; a insuficiência das disponibilidades
financeiras; a escassez de técnicos, tudo isto trazia o povo
descrente e desiludido. E quando um povo é minado pela descrença,
leva tempo a curar-se do mal. Por isso, poucos foram os aveirenses
que acreditavam no ressurgimento do porto de Aveiro. A verdade é
esta.
O panorama do País, nessa época,
era o que nos descreve o Sr. Dr. Oliveira Salazar:
«O grande público sabe, e
vagamente, que não havia estradas, nem portos, nem telefones, nem
escolas, nem navios, nem nada; mas só os que têm envelhecido, só
os que se têm matado sobre os problemas nacionais, a lutar dia a
dia contra as deficiências dos homens e das coisas, contra a
estrutural incapacidade de realização, só esses podem ter a noção
exacta do Estado sem direcção e sem vontade, do Governo sem força,
da vida pública sem directriz, da burocracia sem estímulo, e
amiudadas vezes sem competência, dos serviços sem meios nem
preparação técnica, da política sem seriedade, da administração
sem administração, enfim, da desordem que não era simplesmente
falta de ordem mas o conjunto de todos os elementos positivos de
desagregação, de ruína, de dissolução nacional».
(2)
Registe-se mais um depoimento,
este do antigo Ministro das Finanças do Governo do Eng.º António
Maria da Silva, o homem sem mácula e prestante cidadão que foi o
Dr. Marques Guedes, para não se supor que ouvimos só um sino.
Escreveu ele após a revolução de
28 de Maio: «Estar no Governo em Portugal é como estar numa frente
de batalha. Há que lutar todos os dias contra toda a espécie de
pressões numa sociedade que dir-se-ia só despertar do seu torpor
abúlico para impor aos dirigentes a conservação, mesmo imoral,
das situações criadas, o respeito, mesmo prejudicial, dos
direitos adquiridos. Depois, a cada momento, a preocupação
absorvente da ordem pública, a saída das secretarias do Estado
para o quartel do Carmo, a jugular os ímpetos dos heróis
improvisados que em Portugal vão proliferando e vivendo
agitadamente, numa vesânia de acção egocêntrica e
criminosa, como a daqueles caudilhos das repúblicas americanas
que, no dizer do brasileiro Euclides da Cunha, entram
desabaladamente pela História, fugindo à polícia correccional... E
a todos os momentos o parlamento em trucs regimentais e
debates políticos, quando não pessoais, em que muitas vezes nem a
compostura das palavras e das atitudes se salva.
Em 5 meses de governo tive três
debates apaixonados da Câmara dos Deputados, vários incidentes
tumultuosos e duas revoluções!...»
(3)
Era a realidade. Estávamos
habituados a uma decadência tão invertrada no corpo da Nação, que
achávamos impossíveis as realizações dos grandes empreendimentos.
A descrença era geral. Passava-se ano após ano à espera de uma
resolução que não vinha, de um remédio que não surgia, de uma
decisão que não chefiava.
Não admira que numa atmosfera
desta natureza os aveirenses se desinteressassem do principal
problema da sua região – o porto de mar.