Além de assídua colaboração nos
jornais A Província, Novidades, Repórter, Nacional, Jornal da
Noite e Diário Ilustrado, e nas revistas Lusitânia, Portucale,
Revista de Portugal (de Eça de Queirós), Vitalidade e Seara Nova,
deixou numerosos artigos e monografias dispersos nas colunas do
Boletim da Real Associação Central de Agricultura Portuguesa,
Revista dos Campos, Portugal Agrícola, Revista Florestal e Revue
Politique et Parlamentaire. Publicou: Estudos sobre a Literatura
Contemporânea (1886); O Sr. Oliveira Martins e o seu projecto de
fomento (opúsculo 1887); A Democracia (estudo sobre o governo
representativo, 1888); Arte de Estudar (trad. do inglês, de A.
Bain – 1888); Cidades e Paisagens (1889); Doutrinas de Leão
Tolstoi (1892); Jesus Cristo (trad. do francês, de Didon – 1894);
Transviado (1899); Notas de um provinciano (1899); Elogio de
Edmundo de Magalhães Machado (1900); O Sonho da Perfeição (romance
1901); As Vozes do Meu Lar (1902); Na Paz do Senhor (romance
1903); O Reino da Saudade (romance, 1904); Via Redentora,
Apóstolos da Terra, Servo e Menor, S. Francisco de Assis e os seus
Evangelhos (1908); A Guerra (depoimento de herejes, 1915); Rasto
de Sonhos (Arte e alentos de pousadas na minha terra, 1918); A
Língua Portuguesa e os seu Mistérios (1925); Alberto Sampaio e o
significado dos seus estudos na interpretação da história nacional
(1924); Cândido da Cunha, o pintor do mistério e da paisagem
(1926); Dificuldades étnicas de insinuação do nacionalismo na arte
portuguesa contemporânea 1931), e o amor das nossas coisas e
alguns que bem o serviram 1933). Recolhido na sua Quinta do Eixo,
proximidades de Aveiro, onde conseguiu uma colecção de eucaliptos,
que é considerada a mais notável da Península, ali morreu em 26 de
Janeiro de 1936.
/ 70 /
Inédito de Jaime de Magalhães Lima
VALE DE LAFÕES
Se me fossem necessárias provas da
perversão ou debilidade dos costumes e da educação nacionais,
tê-Ias-ia na ignorância, no abandono e na geral indiferença dos
portugueses que ou não conhecem ou não querem conhecer, ou mesmo
desprezam, depois de o conhecerem, esse delicioso cantinho da nossa
terra chamado o Vale de Lafões. Percorri-o durante três dias e em
todas as direcções, e lá encontrei empregados públicos e médicos e
advogados e proprietários e gente de toda a condição e toda possuída
dum mesmo enfado, maldizendo a sua sorte e suspirando por terras
melhores. Encontrei também muitas vezes estradas desertas, palácios
escalavrados e aldeias misérrimas. O que, porém, em parte alguma
encontrei, foram viajantes jornadeando por simples interesse e
curiosidade de conhecerem aquelas terras, que são nossas e que são
belas; nem gente que as procurasse corno um lugar de tranquilidade
salutar onde recuperasse as forças perdidas no ar empestado das
cidades; nem habitações, não de luxo ou de recreio, que as não
cobiço para o meu país, mas significando um amor consciente da
natureza, um carinhoso aferro ao silêncio e à majestade das
montanhas, à contemplação das coisas em que a grandeza da vida se
revela na serenidade plena da sua harmonia, cativando a nossa alma e
depurando-a. Nada disso lá encontrei, e nem sequer quaisquer leves
vestígios de semelhante tendência me autorizaram a sonhá-la.
Porquê?!... Será que o português não
viaje? Será que lhe faltem meios económicos para despender alguma
coisa em um repouso duplamente sadio, moral e fisicamente, longe do
bulício das cidades e da sua diversa corrupção? Com certeza, não.
Não faltam portugueses que tenham percorrido as montanhas da Suiça,
e os seus lagos e os Pirinéus e o Reno e a Escócia. Não falta quem
nos assegure que
viu lá paisagens magníficas e não
falta quem esteja disposto a ir vê-las. As viagens de portugueses ao
estrangeiro multiplicam-se e amiúdam-se constantemente. E até não
falta quem de lá nos traga e praticamente nos mostre a poder de
dinheiro e com um zelo digno de melhor sorte, chalets,
jardins arrelvados e muita outra coisa linda que do estrangeiro
importou corno a nota da civilização.
Dinheiro e gente não escasseia.
Teremos quanto basta para urna grande renovação do nosso país. Mas a
tristíssima e evidente verdade é que a tal penúria se encontra
reduzido o senso estético e o senso moral, se é que esses dois
aspectos do carácter não são uma e a mesma coisa, como eu creio, tão
pobrezinhos de alma nos vemos que não se sabe como alcançar o
pequeno capital de inteligência e arte que seria necessário para
iniciar uma renascença e aproveitar o muito dinheiro e a gente de
boas intenções que a poderiam engrandecer e levar a cabo. Tudo se
faz somente pela mais estulta ostentação; a depravação do sentimento
é profunda; a sinceridade a mais rara das aves, posto que, – manda a
justiça e o nosso contentamento que se diga, alguma sinceridade nos
apareça e essa constitua o nosso consolo e esperança. Mas é a
excepção das excepções. A regra é procurar uma casa ou construí-la
mirabolante para dar um sinal de riqueza, escolher para ela um lugar
frequentado, onde se veja, e habitar-se por tanto tempo e com tantos
criados e com tais modos e trajos quanto for necessário para cumprir
as indicações da gente fina e merecer a sua companhia e louvor. Os
sentimentos que inspiram todos esses passos serão filhos da mais
extrema vaidade.
Só assim se explica, só por completa
degradação do sentimento se compreende que sejam quase ignoradas
terras corno as do Vale de Lafões, rivalizando com as mais afamadas
e frequentadas regiões montanhosas da Europa.
Nem a dificuldade de comunicações
justifica o abandono. Quando a houvesse, deveria ser mais um motivo
de tentação para a mocidade, naturalmente ávida de esforço e
movimento, se é sã e vigorosa de corpo e alma. Mas o Vale de Lafões
é todo de facílimo acesso. Os montes estão cortados de estradas
magníficas. Só urna ausência completa de educação do espírito faz
que anualmente se despejem muitas mil pessoas pelas casas de
tavolagem das margens do Oceano, e se fuja, corno de coisa penosa ou
ruim, daqueles páramos de beleza que são um enlevo de poesia e um
refrigério para a alma mortificada de estéreis lutas do mundo.
Entrando nessa região pelo vale do Vouga, já em Pessegueiro ternos a
primeira página do volumoso livro que vamos ler e a indicação
completa do seu carácter - terras alcantiladas sobre as margens do
rio, bem povoadas de
/ 71 / arvoredo em que
o pinhal viçoso e espesso ergue as pontas agudas como lanças, casais
acoitando-se nas quebradas entre carvalhos frondosos, águas ora
tranquilas, espraiadas, ora espumando nos açudes, e lá em cima,
muito altas em uma mudez atlética, reflectindo o sol, as cristas da
serra das Talhadas, a guardarem o vale, como sentinela
incorruptível. Pelas alturas de Vouzela estaremos na mais perfeita
paisagem alpestre, e até S. Pedro do Sul se continua com uma
prodigalidade de aspectos que é maravilha. Se em tal abundância pode
haver escolha, as minhas preferências serão por Santa Cruz da Trapa.
Aí, o quadro é completo. Em um pequeno planalto ao fundo da serra da
Gralheira, fechado o horizonte pelo Caramulo e pelas Talhadas, a
divisar-se ao longe, por uma garganta estreita, a Estrela com as
suas manchas de neve, alvas como ermidas, sarjadas as terras
interiores de inumeráveis vales, donde surgem aldeias e viço e
frescura, as montanhas adquirem ali um relevo prodigioso,
desenhando-se na limpidez do céu em linhas arrojadas e nítidas, com
uma agudeza de arestas inigualáveis, com o seu «facies»,
(característica expressão que roubo a um distinto espírito) tão bem
acentuado, tão vivamente penetrante, que se grava na lembrança como
uma fisionomia austera e cativante. Os colossos informes da Estrela,
as quebradas sombrias do Buçaco, todas as montanhas de Portugal
esmorecem, por deficiência de linhas definidas, se as confrontamos
com a região privilegiada que com o Caramulo, a Gralheira e as
soberbas cascatas da Freita abrange ainda o formosíssimo vale de
Arouca, muito comparável, a meu ver, com Baden-Baden.
Vi e percorri estas montanhas. Todas
elas são de Portugal, aquém da fronteira das suas terras,
conhecidas, sabidas, estudadas e até desenhadas a rigor nas belas
cartas da comissão geodésica; e tão facilmente acessíveis que se
podem visitar a cavalo e mesmo poderá percorrer os seus trilhos
calçado de sapatos de polimento o que quiser ter esse capricho ou
por muito prolongado uso já não saiba calçar-se doutra forma.
Dir-se-ia, porém, que esses montes ficam na Ásia ou mais longe
ainda, por tal modo mostramos ignorá-los e tanto desprezamos esta
soberba riqueza que a natureza nos concedeu.
Que o faça quem nunca os viu, quem
foi educado num triste apartamento da natureza, compreende-se e
perdoa-se. Mas que igualmente procedam os que nasceram ali, que
desertem do berço os seus próprios filhos, é uma aberração
imperdoável. Porque é de notar que o Vale de Lafões e as serras
próximas e em torno são terras bem povoadas nas quais abundam casas
nobres. Que é feito dos descendentes desses senhores morgados, onde
param, como têm amado e cumprido a sua missão social, tão simpática,
de guardas da tradição e de patronos dos seus servos e dos seus
humildes vizinhos?
O código civil, com a pulverização
da propriedade, deu a voz de dispersar; o luxo, as ambições, a
civilização moderna, crassamente material, fizeram o resto. Uns,
talvez os mais capazes, pelo menos os mais audazes, passaram nas
escolas que nada souberam revelar ao seu coração, e pela política,
pela burocracia, pelas artes liberais, com fortuna vária, vivem ou
se arrastam nas cidades às quais os prendem efémeros e deprimentes
regalos. Outros, talvez os menos hábeis e menos activos, dormitam e
vagueiam pelo solar, a jogar e conquistar raparigas da aldeia
comendo bem e bebendo melhor, e a dissipar assim os bens que uma
burguesia ávida e grosseira cobiça e progressivamente vai captando.
Empobrece o fidalgo, e enriquece o tendeiro, o almocreve e o agiota.
Nas camadas superiores ficaram o estouvamento imbecil, de um lado, e
do outro uma ganância, sensual, acomodatícia, e-no fundo sórdida por
diversos modos; e entre os dois andam jogados os bens que um povo
humilde, manso e trabalhador criou e faz valer pelo seu amor.
Esse povo, quando pode, emigra. Não
tem outro meio de se libertar da miséria. O proprietário devora-lhe
as arcas, as rendas da terra são pesadíssimas; e o que lhe sobra vai
para o agiota que não quer menos de dez por cento. Toda a autoridade
social, propulsora do progresso, fiel da justiça, inspirando, pelo
exemplo, a ordem, a economia, a caridade, o respeito dos humildes e
o alívio das agruras do trabalhador, todo este elemento de
ponderação e de desenvolvimento económico e moral se dissolve na
crise social representada pela luta das duas categorias de gente
abastada que apontei, uma aristocracia caduca e uma burguesia
destituída de nobreza.
Se a emigração do campo para a
cidade, mal comum a todo o mundo civilizado, fosse compensada em
parte, ainda que mínima, por uma pequena corrente em sentido
inverso,
/ 72 / poderiam as
aldeias das nossas províncias esperar das cidades algum bem, trazido
por aqueles que enfastiados da vida urbana levassem aos campos o seu
dinheiro e o seu saber, e hábitos de método, estudo e reflexão, o
capital de ordem e inteligência que constitui o melhor do carácter
da gente educada. Mas daí nada temos a esperar. a desvairamento é,
por enquanto, profundo e completo; o campo significa para a grande
maioria um enfado temeroso. Vida digna, para esses, e felicidade só
naquela dissipação do corpo e do espírito, na perene frivolidade que
é a prenda mais evidente e a ambição mais violenta das classes
chamadas dirigentes e que de facto nos governam.
A redenção poderia vir talvez dos
filhos dessa mesma burguesia que hoje se torna notável e prepondera
apenas pela avidez. Educados na abastança, não tendo sido sujeitos
às necessidades que corromperam os pais e lhes inflamaram as cobiças,
não trarão esses à nossa terra um diverso sentir menos cruel, mais
impregnado de doçura, rectidão e amor que lhes inspire a vida? Ou
estaremos nós condenados a ver uma degradação ainda mais funda,
agravando a depressão das plebes rurais até à sua completa ruína
operada por uma burguesia insaciável e incorregível, de todo rebelde
a qualquer insinuação da justiça, da bondade, do dever e até mesmo
de um bem pensado interesse nacional?!...
No encanto do Vale de Lafões,
atravessando as suas quebradas, insistentemente me acompanhou a
lembrança destes problemas. São os de todo o país, mas ali vivamente
os acentua uma fase de transformação em que o presente ainda não
escureceu inteiramente o passado, como um começar de doença em que
se avista ainda o equilíbrio da saúde a perder-se. Nada mais
melancolicamente incerto do que o futuro daquelas aldeias.
Escravidão sob um despotismo capitalista e na mais cerrada treva
moral dos senhores e dos escravos?... Conforto e paz na abundância e
na liberdade e na luz do sentimento cristão?... E não me atrevia a
ir além duma interrogação, mais turvada de descrença do que
inflamada de esperanças.
Algumas vezes pensei que se nós
tivéssemos escolas e igrejas, escolas que fossem igrejas e igrejas
que fossem escolas, se os educadores da mocidade possuíssem uma alta
compreensão das suas obrigações e das suas responsabilidades, se
conscienciosamente fizessem da sua missão um apostolado e
esquecessem o que ela possa ter de rendoso para unicamente se
consagrarem ao que ela pudesse ter de generoso, talvez algures se
estivessem disciplinando os exércitos da salvação. Para trazer
àqueles campos a intensidade de vida económica e a beleza de vida
moral que havia de fecundar e coroar a beleza e a fertilidade que
lhes veio da natureza, seria necessária uma legião robusta de gente
capazmente educada a todos os respeitos. E, reduzida a nada a
educação doméstica, porque os pais têm política, a sociedade, os
jogos, os cafés, os negócios e os parlamentos e as secretarias de
estado, e as mães têm as casas de modas, e as criadas e as mestras
estrangeiras para as aliviarem de fadigas, e nem pais nem mães podem
por isso acompanhar os filhos, a educação fica confiada à escola e
logicamente só à escola podemos pedir gente educada. É a escola
primária, o liceu e a universidade que a há-de formar.
Mas, logo pensava, que formam elas,
Santo Deus?!...
É de morrer de tristeza! Quanto mais
linda se nos mostra a terra, mais saudades temos de quem saiba
amá-la e respeitá-la, fazendo que o seu pão se multiplique e
piedosamente se reparta. |