Foi no ano de 1742.
Esta pedra de Ambar, que hoje
catalogamos como uma resina fóssil, andava já nesse tempo
setecentista descrita em vários tratados eruditos; sobre ela se
redigiram conjecturas de origem e constituição e se lhe atribuíram,
como a muitas outras «pedras», miríficas virtudes mais ou menos
terapêuticas. Mas, provavelmente, nas estantes das nossas boticas,
seria o ambar espécie rara e muito custosa. Quase preciosidade.
Provinha de longínquas praias de mares orientais, trazida por algum
embarcadiço aventureiro e mercadejada por alto preço. Como produto
indígena não havia notícia.
De suas singulares propriedades
substanciais só alguns conhecedores, mezinheiros e cirurgiões,
teriam conhecimento aproximado. E mesmo assim por leitura de livros
raros que poucos possuíam.
A glória da sua descoberta entre
nós, segundo um crédulo cronista de setecentos e tal, cabe a um
ílhavo e a um vareiro, boticário aquele, pescador o segundo.
O primeiro, finório e sabedor, vai
logo de corrida fazer o seu negócio; o outro, somente intuitivo,
bate à porta de outro boticário na sua rua e entrega-lhe o achado.
Ambos descobriram, toparam, a
«pedra» na orla do mar, quando, descida a maré ficam na areia os
detritos. Dois solitários, veraneante mas intencional um, passante e
néscio o outro, toparam o âmbar misturado com as conchas, embrulhado
nas algas, no meio do cisco da maré vaza, nas praias do mar de
Aveiro...
Em 1779, consoante consta do rosto
do voluminho, o irmão frei Cristóvão dos Reis, Carmelita Descalço,
Farmacêutico-Botânico e Administrador da Botica de N. Senhora do
Carmo de Braga, publicou, com licença da Real Mesa Censória,
impresso na Régia Officina Typográfica, umas: Reflexões
Experimentais Methodico-Botânicas, muito úteis, e necessárias para
os Professores de Medicina e Enfermos, Divididas em Duas Partes.
A primeira parte trata das Caldas,
Banhos de Rios, do Mar e Fontes Medicinais que se acham nas três
Províncias do Minho, Trás-os-Montes e Beira. Com muitos
conhecimentos directos e outros de outiva vai o autor ensinando de
seus saberes e suas notícias desfazendo ignorâncias e apontando
sabedorias.
A parte segunda trata: Dos Animais,
Vegetais e Minerais, que se criam neste Reino.
Uma pequena e sóbria introdução
deixa-nos entrever o estudioso farmacêutico-botânico de Braga que
todo se arrepela pela entrada de medicamentos, de Símplices
estrangeiros, muitos falsificados e outros já sem acção, com
menosprezo dos produtos nacionais bem mais activos porque frescos e
não menos variados do que os estrangeiros. Por isso mesmo se resolve
a noticiar do Unicórnio (cujas pontas são diaforéticas, bezoarticas,
sudoríficas...), do Porco-Bravo (cujos dentes se aplicam nas febres
malignas e nos pleurizes...), dos Caranguejos do Mar (que,
calcinados, curam as chagas cancrosas e corrosivas...), do
Sabugueiro (de cujo sumo se faz arrobe chamado baga, indicado com
sucesso nas enfermidades que procedem de tumores crus...), de certas
excrescências que nascem nas raízes do Sargaço e com as quais se
obtém um extracto que reprime o sangue do peito e a demasiada
purgação nas mulheres; das folhas do Aloes, cujas virtudes são
magníficas nas escandecências hemorrodais.
E muitos, muitíssimos outros
ensinamentos nos propina este saudável boticário, conhecedor do seu
nobre mister e crítico sagaz. Da flora
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hervas que se criam junto ao mar nada lhe escapa: o
Carvalho-Cerquinho, o Silvão-Machado, a Salsa-Parrilha, o Buxo cujo
óleo remove qualquer tumor glanduloso, a Jalapa cuja raiz purga
todos os humores, o Açafrão Silvestre que, por experiência própria,
se muito abundante na comida causa vómitos, tristeza e turvação da
cabeça, mas desfeito em leite de mulher e aplicado aos olhos,
reprime os humores que acodem a eles; por aí adiante, ensinando as
propriedades e o modo de fazer os cozimentos e as cataplasmos e as
mixorfadas para uso interno.
No Capítulo V do tratado III
ensina-nos «Do Ambar; e suas diferenças». No índice geral do
precioso voluminho a rubrica Ambar é explícita: «Ambar, seu
descubrimento», como quem dar notícia, em primeira-mão, de um facto
de importância nacional e científica.
Vale a pena arquivar, actualizando a
grafia (pág. 324):
– «O Ambar é uma matéria bituminosa,
de côr branca cinzenta, jaspeada de diversas linhas, ou pintas
pretas, o qual se acha em várias partes do mar, arrojado às praias
com o impulso das ondas, quando há alguma grande tormenta. No ano de
1742, em que assistia em Coimbra, foi àquela cidade um boticário de
Ilhalvo, terra vizinha de Aveiro, com um pedaço de betume cheiroso,
que pesaria duas libras. Examinou-se por causa do seu cheiro, e se
assentou ser perfeito Ambar, o qual vendeu na mesma cidade. Disse
este, que por ter lido a descrição do Ambar, fora andar pela praia,
depois de uma grande tormenta, e o achara entre o cisco e ervas que
o mar tinha lançado fora, aonde acudiam as aves marinhas.
O mesmo sucedeu nas praias do mar,
vizinhas à vila de Ovar, nas quais o achou um pescador, e
mostrando-o ao boticário da terra, e este não só pelo cheiro, mas
também pelas cores, assentou ser Ambar verdadeiro».
Curiosíssima a intimidade
psicológica deste pequenino texto. O facto não é inventado nem
sabido de outiva. O redactor teve conhecimento directo: «em que
assistia em Coimbra». Por então, nas andanças das missões das sua
Ordem Carmelita, frei Cristóvão dos Reis estanceava no Convento da
cidade doutora. E o Boticário de Ílhavo não fora à Costa Nova
somente veranear. Finório e sabido nas leituras, quando passou um
vendaval, ladino, deu-se a passarinhar na praia à procura... E
correu a fazer negócio em terra de sabedores. Descoberta e proveito.
O outro, pescador de ofício e somente atento ao estranho achado, já
que calcorreando as areias nunca topara semelhante pedra, foi
inquirir do que era aquilo, entregando o achado ao sabedor da terra,
um farmacêutico de ofício. E não se sabe se houve negócio...
E em seguimento o bom cronista
adverte e ensina:
– «E se houvesse curiosidade nos
moradores vizinhos ao mar de o procurar nas suas praias, depois de
algumas tormentas, talvez se acharia com abundância, e causaria
admiração, por ser cousa rara neste Reino, e não ter havido quem até
aqueles anos o procurasse, nem até agora nos desse notícia do seu
invento.
Quem quiser procurar o Ambar, tenha
o cuidado de observar as aves marítimas; porque ordinariamente se
juntam nos sítios, onde as ondas o tem lançado. Umas vezes se acha
brando, outras duro, de sorte que se fica em parte húmida, se
conserva brando; se não, se endurece com o sol. Enquanto brando, tem
cor cinzenta escura; mas depois de seco, se lhe veem diversas cores,
como branca cinerícia, jaspeada com manchas pretas».
Não se pode dizer melhor, descrever
com mais apropriamento: branco cineríceo, jaspeado de manchas
pretas.
Havia no convento não só o texto da
botica, mas a regra da linguagem perfeita.
E aquele Ilhalvo? Mais um
qualificativo a adornar a linguística e um filão filológico; e outro
elemento onomástico para aquela «povoação junto à água» na
significação que Rocha Madahil intuiu com agudeza e Arlindo de Sousa
demonstrou eruditamente.
Agradeçamos ao bom Carmelita
Descalço a anotação da descoberta.
E não nos fiquemos, hoje, muito
sabichões, a querer perdoar a ingenuidade. Era assim, como agora é
de outra maneira.
Bem haja o farmacêutico-botânico,
lhe dizemos daqui regionalisticamente agradecidos e embofiados, pois
então!
Não é exacto: mas consta de
verídicas crónicas que o ambar foi descoberto nas praias do mar de
Aveiro, por um ílhavo e por um vareiro, no ano da graça de 1742. |