Jumbembem, 6 / Junho / 1965.
A aldeia nasceu da terra,
prendeu-se ao chão e aos nossos olhos. Recuperada a tabanca de
Lamel, havia que dar a cada família uma casa. E o sonho de cada um foi o
sonho de todos: indígenas e tropa.
O carpinteiro fez as formas
para os adobes. Os homens abriram barrancos. Atiraram-lhes baldes de
água. E as bajudas e a criançada amassaram com os pés a terra
cavada.
Depois as paredes foram
subindo, ganhando corpo, portas e janelas. Nas horas vagas, os soldados
trocavam a arma, que penduravam na parede ou na barra da cama, pela
colher de cal feita por vezes de um pedaço de chapa de bidão. Trocavam
os perigos da guerra pela paz.
A aldeia nova, obedecendo a
um projecto do Bretão, o grande impulsionador da obra, abre-se em
talhões e ruas baptizadas em tabuletas de pau-sangue que irão recordar
aos que nos vierem render os que nesta zona se bateram tão
esforçadamente. Rua das Beiras, Rua do AIgarve, Rua de Gibril Candé
(guia morto em combate em 30 de Dezembro de 1964). Ao fundo, junto do
poço, do lado do rio, há a praça do Alentejo, reservada a festas:
batuques, rezas. Por volta do meio-dia e ao entardecer, as ruas
enchem-se de burburinho, de pequenas fogueiras e panelas de ferro,
assentes em duas ou três pedras, a
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transbordarem de arroz que, cozido, passa para os cabaças, sobre o qual
derramam uns molhos verdes feitos com as folhas duma árvore chamada
cabaceira, folhas essas que são moídas no pilão até darem uma espécie de
papa. E, hoje, se exceptuarmos algumas crianças, todos comem de colher.
Hoje, a aldeia nova continua
a crescer. É mais uma família que regressa do Senegal, onde os
refugiados sofrem privações de toda a espécie:
«Vianda cá tem; arroz cá
cume...»
«Corpo doente... mist
mésinho... mésinho cá tem...»
Estas as frases que ouvimos
constantemente.
Sobretudo, Sare Samba Seidi
veio tornar maior a aldeia que é o orgulho da companhia, audaz na
guerra, laboriosa na paz. Uma aldeia modelo, sem dúvida, construída com
esforço e sacrifícios. É uma obra que reflecte sem sofismas a nossa
maneira de ser, de conviver com os negros. A verdade está aqui toda na
aldeia nova.
Dentro do arame farpado,
somos uma família, onde não existem muros, onde não existe o menor
ressentimento. A cor da pele não é barreira para nós. Fazer bem sem
olhar a quem aqui é letra viva que ressalta aos olhos de todos. A
população adora a tropa («tropa velha sabe... tropa de jumbembem
pessoal macho») e esta gosta dos negros. É roupa que se compra para
vestir as crianças e mesmo para as bajudas; são bolas que se dão
aos miúdos que se entusiasmam ao entardecer; é pão que se reparte, é
rancho que se distribui. E, quando eles têm falta de arroz, é a
companhia que os socorre. Em geral, cada menina tem o seu protector que
lhe compra brincos, roupas e a quem ela chama tão pateticamente «home
di mim…» E elas são meigas: trepam-nos para o colo, beijam-nos. O
Dr. Franco distribui-lhes mimos: bolos, rebuçados e elas arregalam os
olhos de felicidade. A Usita, que deve beirar os onze anos, de olhos
vivos, esguia, é o exemplo da vontade de deixarmos marcada a nossa
presença. O Afonso ensinou-a a ler, a escrever, a fazer contas. Hoje
fala quase correctamente o Português e já escreve uma carta. Escreve
mesmo ao furriel Lima, doente em Bissau. É certo que são frases curtas,
letra arredondada e tímida, mas põe nas cartas toda a afeição
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que lhe dedica. Muitos a querem levar para a metrópole. Ela quer ir, mas
a mãe é que não a deixa. O pequeno Mamadú é outro exemplo da obra
realizada. Aprendeu umas noções de enfermagem e, sob a orientação dos
brancos, faz pensos, dá injecções.
Existe realmente o espírito
de família. E já agora ouso alongar-me ainda um pouco. Quando os
indígenas nos vêem sair e ficam a saber que vamos para zonas onde há
«manga de bandidos», um silêncio pesado cai sobre a tabanca e
ficam a pairar-lhes nos olhos horas de expectativa se, por acaso,
começam a distinguir ao longe estrondos, fuzilaria. Ao chegarmos, se
tudo correu bem, abeiram-se de nós, alegres, a sorrir, porque a vitória
também lhes pertence. E as bajudas destacam-se dos grupos e beijam este
e aquele, cumprimentam-nos:
«Então corpo?»
E concluem:
«Hoje manga di ronco...»
Porém, se há feridos ou
mortos, entristecem-se, lamentam.
Os negros têm um profundo
sentimento de gratidão. Se há algum que caça fracas, gazetas, javalis,
vem logo com um presente para o «homem grande» da companhia, o tenente
Fernandes Thomaz. Homem dum só rosto que lisonjeia aqui e repreende ali,
mas sempre com a mesma compreensão e o mesmo sorriso tímido a bailar-lhe
no canto da boca. E as miúdas dão-nos na pobreza da sua oferta a
grandeza da sua alma: mancarra torrada e, nesta altura, mangos. E
são as crianças que mais nos aliviam do peso da guerra. Perante elas
quem não deseja a paz? E, quando elas cantam pequenas canções
portuguesas: «A Tia Anica do Loulé», «O Malhão», o «Tiroliro», ensaiadas
pelo Bretão, ou quando batucam, então, é uma satisfação para elas e para
nós.
A aldeia nova tomou raízes,
cresceu, prendeu-se ao horizonte. A aldeia nova é uma realidade.
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