TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 147-149

A MORTE É CORAÇÃO PARADO

Fambantã, 27 / Maio / 65.

Um estranho roncar de motores cortava a noite e aguçava os ouvidos, tão preocupados como os olhos com os segredos da selva que nem sequer o vento bulia. Vinha da fronteira e ouvia-se, por vezes, o meter das mudanças. Que seria, que não seria? Muitos faziam conjecturas. Viaturas do Senegal?

A progressão continuava cautelosamente.

De repente, pressentiu-se o rodar de bicicletas. Tomaram-se posições convenientes. Os turras, por vezes, quando fazem os seus deslocamentos, usam de todas as precauções, pois sabem bem como elas mordem. Metem à frente homens desarmados, mulheres e até crianças, que são a isca. Depois, mais atrás, vêm eles, a uma distância que lhes convenha para a fuga, se o grupo explorador é detectado.

Os homens das bicicletas rodavam. Aproximaram-se o bastante para a morte. Um caiu de redondo como uma pedra, bateu com a cabeça ensanguentada na terra da vereda, varado. O outro, ferido, nem sequer tentou fugir. Seria inútil. Vinham da fronteira, onde tinham ido reabastecer-se de arroz, óleo de palma e outros géneros e dirigiam-se ao acampamento de Bricama. Traziam as respectivas guias de marcha a fim de poderem transitar sem impedimento algum pelas chamadas «zonas libertadas do PAIGC». / 148 /

Amanhecia.

Queimadas algumas casas de mato ali perto, caminhou-se em direcção à bolanha onde se dizia encontrar uma manada de vacas roubadas à população.

O roncar dos motores continuava a ouvir-se. Caminhava-se através de todo o terreno, abrindo caminho. Num segundo, ouviu-se a detonação de granadas de morteiro. Todos por terra e de armas a fumegar. Uma granada, outra e ainda outra. E todas elas vieram explodir no meio das nossas forças. O Rogério, que vigiava o prisioneiro ferido e de mãos atadas às costas com um cinto, deixou cair a G3 e a cabeça tombou-lhe para o lado direito. Precisamente para o lado donde voara o estilhaço. A boina preta, que ele sempre usava, encheu-se de sangue. Gemeu. O Sinésio aproximou-se, rastejando. Ligou-lhe imediatamente a cabeça. Tinha partida a caixa craniana que deixava ver a massa encefálica. O estilhaço atingiu-lhe os centros vitais. O Rogério, que era um rapagão moreno, de cabelo encarapinhado e barba crescida, valente, tinha uma pulsação baixíssima, uma respiração difícil. O enfermeiro deu-lhe uma, duas injecções. Ele reagiu e a pulsação começou a melhorar. Tinha também as pernas enegrecidas pela explosão e alguns rasgões.

Os terroristas, emboscados em meia-lua, perpendicularmente à nossa progressão, fizeram um «bate e foge», o que raras vezes acontece. Lá ao longe, uma metralhadora pesada fazia-se ouvir, medonha e agressiva. Eles tentaram manobrar, mas fomos mais rápidos. Talvez uma cilada. Como poderiam viver as vacas numa bolanha ressequida? Há sempre quem jogue com pau de dois bicos...

O prisioneiro ficou ali grudado à terra, entre o capim seco. E caminhámos para Fambantã. O Rogério, deitado na maca, gemia. Montou-se a segurança para o helicóptero.

Ao longe, ainda o roncar estranho dos motores.

Havia lágrimas nos olhos dos companheiros abatidos. E alguns praguejavam. Um grupo de combate, ou uma companhia, é sempre uma família cuja divisa é: um por todos e todos por um. A morte dum companheiro é / 149 / sempre um choque brutal, e mais triste ainda, quando nos surpreende no fim da comissão, quando se começam a fazer planos para a vida e a esperança do regresso se começa a desenhar em sorrisos e abraços. Mas a guerra queima-nos as mãos até ao fim.

O helicóptero levantou.

A morte é um coração parado.

 

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