Fambantã, 27 / Maio / 65.
Um estranho roncar de
motores cortava a noite e aguçava os ouvidos, tão preocupados como os
olhos com os segredos da selva que nem sequer o vento bulia. Vinha da
fronteira e ouvia-se, por vezes, o meter das mudanças. Que seria, que
não seria? Muitos faziam conjecturas. Viaturas do Senegal?
A progressão continuava
cautelosamente.
De repente, pressentiu-se o
rodar de bicicletas. Tomaram-se posições convenientes. Os turras, por
vezes, quando fazem os seus deslocamentos, usam de todas as precauções,
pois sabem bem como elas mordem. Metem à frente homens desarmados,
mulheres e até crianças, que são a isca. Depois, mais atrás, vêm eles, a
uma distância que lhes convenha para a fuga, se o grupo explorador é
detectado.
Os homens das bicicletas
rodavam. Aproximaram-se o bastante para a morte. Um caiu de redondo como
uma pedra, bateu com a cabeça ensanguentada na terra da vereda, varado.
O outro, ferido, nem sequer tentou fugir. Seria inútil. Vinham da
fronteira, onde tinham ido reabastecer-se de arroz, óleo de palma e
outros géneros e dirigiam-se ao acampamento de Bricama. Traziam as
respectivas guias de marcha a fim de poderem transitar sem impedimento
algum pelas chamadas «zonas libertadas do PAIGC».
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Amanhecia.
Queimadas algumas casas de
mato ali perto, caminhou-se em direcção à bolanha onde se dizia
encontrar uma manada de vacas roubadas à população.
O roncar dos motores
continuava a ouvir-se. Caminhava-se através de todo o terreno, abrindo
caminho. Num segundo, ouviu-se a detonação de granadas de morteiro.
Todos por terra e de armas a fumegar. Uma granada, outra e ainda outra.
E todas elas vieram explodir no meio das nossas forças. O Rogério, que
vigiava o prisioneiro ferido e de mãos atadas às costas com um cinto,
deixou cair a G3 e a cabeça tombou-lhe para o lado direito. Precisamente
para o lado donde voara o estilhaço. A boina preta, que ele sempre
usava, encheu-se de sangue. Gemeu. O Sinésio aproximou-se, rastejando.
Ligou-lhe imediatamente a cabeça. Tinha partida a caixa craniana que
deixava ver a massa encefálica. O estilhaço atingiu-lhe os centros
vitais. O Rogério, que era um rapagão moreno, de cabelo encarapinhado e
barba crescida, valente, tinha uma pulsação baixíssima, uma respiração
difícil. O enfermeiro deu-lhe uma, duas injecções. Ele reagiu e a
pulsação começou a melhorar. Tinha também as pernas enegrecidas pela
explosão e alguns rasgões.
Os terroristas, emboscados
em meia-lua, perpendicularmente à nossa progressão, fizeram um «bate e
foge», o que raras vezes acontece. Lá ao longe, uma metralhadora pesada
fazia-se ouvir, medonha e agressiva. Eles tentaram manobrar, mas fomos
mais rápidos. Talvez uma cilada. Como poderiam viver as vacas numa
bolanha ressequida? Há sempre quem jogue com pau de dois bicos...
O prisioneiro ficou ali
grudado à terra, entre o capim seco. E caminhámos para Fambantã. O
Rogério, deitado na maca, gemia. Montou-se a segurança para o
helicóptero.
Ao longe, ainda o roncar
estranho dos motores.
Havia lágrimas nos olhos dos
companheiros abatidos. E alguns praguejavam. Um grupo de combate, ou uma
companhia, é sempre uma família cuja divisa é: um por todos e todos
por um. A morte dum companheiro é
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sempre um choque brutal, e mais triste ainda, quando nos surpreende no
fim da comissão, quando se começam a fazer planos para a vida e a
esperança do regresso se começa a desenhar em sorrisos e abraços. Mas
a guerra queima-nos as mãos até ao fim.
O helicóptero levantou.
A morte é um coração parado.
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