Sulucó, 14 / Maio / 65.
Armado de simples pistola e
duas ou três granadas nos bolsos do camuflado, alto e escanzelado e de
uns olhos penetrantes, donos de uma fina argúcia, o cabo-verdeano abria
a escuridão. Tinha um passo rasgado e decidido de quem está habituado a
todos os segredos da noite e da selva e é conhecedor do terreno que
pisa.
Chegados perto do objectivo,
ainda vinha longe o alvorecer, divididos em três grupos, os homens da
489 estenderam o corpo na terra ensopada. Então, o verdeano, que
conhecia a situação exacta do acampamento e o seu dispositivo de defesa,
avançou, pé ante pé, até junto do mangueiro e da nascente onde devia
estar uma sentinela avançada, acobertando-se de árvore em árvore e
espreitando amiudadas vezes.
Ele estivera ali várias
vezes de visita, pois aquele acampamento pertencia ao sector. Fora
comissário político, mas, por divergências com o partido e aborrecido
com os guerrilheiros, abandonara as armas e a luta. Correra já bastantes
riscos e se escapou às unhas dos mesmos soldados, que ele agora guiava,
no assalto a Morés, em 2 de Nov. / 63, foi porque a sorte estivera a seu
lado. Agora estava farto de mato. Que os guerrilheiros não sabiam
aguentar um contra-ataque mais forte e, quando pressentiam o manobrar da
tropa, acagaçavam-se e começavam
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a abandonar as posições, sobretudo, se tinham feridos e mortos, embora,
muitas e muitas vezes, nos dêem contínuas horas de luta.
O silêncio era pesado,
ensopado de escuro. Nada se ouvia. Parecia que a natureza ali era de
veludo. A respiração era abafada pelo leve barulhar da folhagem a que se
colava um vento mole.
O Gomes voltava. A sentinela
que ele devia eliminar com a faca de mato, num golpe certo e sem
precipitações, já não ocupava aquele posto.
Estirados, armas na frente
da cara, todos desejavam que aquele silêncio, quase aterrador, se
quebrasse o mais depressa possível, porque lhes esfrangalhava os nervos
e enchia ao mesmo tempo a cabeça de pensamentos e conjecturas inúteis.
Todos desejavam que a alva rompesse ao mais breve.
Passada uma hora e tal,
quando o dia começou a despontar, começaram a aproximar-se,
vagarosamente, em linha. Lá ao fundo, dois sentinelas, estremunhados,
quando bateram com os olhos nas fardas de sardão, nem sequer se
lembraram que tinham uma arma aos ombros: espantaram-se, embrenhando-se
no mato cerrado. E o tiroteio começou do nosso lado. Granadas de
morteiro e bazooka começaram a levantar nuvens de poeira e ramos nas
casas de mato. E as G3, numa fuzilaria dos diabos, aos gritos «isto é
cavalaria» sublinhavam os rebentamentos. De longe, os terroristas
atiravam, mas sem quebrar o ânimo e a fúria dos soldados, que avançavam
de peito feito. Duas ou três espingardas e duas ou três pistolas Ceska,
espalhadas no chão, eram já um troféu. Destruídas as casas de mato, o
cabo-verdeano disse: «Vamos à arrecadação.» Apontou o local e mandou
lançar algumas granadas de morteiro. E, como não houvesse nenhuma
resposta, levou-os por uma vereda. Ficava a uns escassos 50 metros.
Então, foi um delírio, uma festa. Cada um arrebanhava o mais que podia:
armas (russas, alemãs, checas e americanas), munições e fardas, granadas
e petardos de trotiI.
Emboscados, mais longe, e ao
mesmo tempo a servirmos de ponto de apoio, tínhamos os nervos a rasgar a
pele, cheios de expectativa.
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Na retirada, os soldados da
489 encontraram várias poças de sangue e pedaços de algodão e, ao
chegarem junto de nós, em cortejo triunfante, que nós fomos engrossando,
mostravam-nos os inúmeros troféus e exclamavam: «hoje ganhámos bem o
dia…»
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