TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 144-146

DIA GANHO

Sulucó, 14 / Maio / 65.

Armado de simples pistola e duas ou três granadas nos bolsos do camuflado, alto e escanzelado e de uns olhos penetrantes, donos de uma fina argúcia, o cabo-verdeano abria a escuridão. Tinha um passo rasgado e decidido de quem está habituado a todos os segredos da noite e da selva e é conhecedor do terreno que pisa.

Chegados perto do objectivo, ainda vinha longe o alvorecer, divididos em três grupos, os homens da 489 estenderam o corpo na terra ensopada. Então, o verdeano, que conhecia a situação exacta do acampamento e o seu dispositivo de defesa, avançou, pé ante pé, até junto do mangueiro e da nascente onde devia estar uma sentinela avançada, acobertando-se de árvore em árvore e espreitando amiudadas vezes.

Ele estivera ali várias vezes de visita, pois aquele acampamento pertencia ao sector. Fora comissário político, mas, por divergências com o partido e aborrecido com os guerrilheiros, abandonara as armas e a luta. Correra já bastantes riscos e se escapou às unhas dos mesmos soldados, que ele agora guiava, no assalto a Morés, em 2 de Nov. / 63, foi porque a sorte estivera a seu lado. Agora estava farto de mato. Que os guerrilheiros não sabiam aguentar um contra-ataque mais forte e, quando pressentiam o manobrar da tropa, acagaçavam-se e começavam / 145 / a abandonar as posições, sobretudo, se tinham feridos e mortos, embora, muitas e muitas vezes, nos dêem contínuas horas de luta.

O silêncio era pesado, ensopado de escuro. Nada se ouvia. Parecia que a natureza ali era de veludo. A respiração era abafada pelo leve barulhar da folhagem a que se colava um vento mole.

O Gomes voltava. A sentinela que ele devia eliminar com a faca de mato, num golpe certo e sem precipitações, já não ocupava aquele posto.

Estirados, armas na frente da cara, todos desejavam que aquele silêncio, quase aterrador, se quebrasse o mais depressa possível, porque lhes esfrangalhava os nervos e enchia ao mesmo tempo a cabeça de pensamentos e conjecturas inúteis. Todos desejavam que a alva rompesse ao mais breve.

Passada uma hora e tal, quando o dia começou a despontar, começaram a aproximar-se, vagarosamente, em linha. Lá ao fundo, dois sentinelas, estremunhados, quando bateram com os olhos nas fardas de sardão, nem sequer se lembraram que tinham uma arma aos ombros: espantaram-se, embrenhando-se no mato cerrado. E o tiroteio começou do nosso lado. Granadas de morteiro e bazooka começaram a levantar nuvens de poeira e ramos nas casas de mato. E as G3, numa fuzilaria dos diabos, aos gritos «isto é cavalaria» sublinhavam os rebentamentos. De longe, os terroristas atiravam, mas sem quebrar o ânimo e a fúria dos soldados, que avançavam de peito feito. Duas ou três espingardas e duas ou três pistolas Ceska, espalhadas no chão, eram já um troféu. Destruídas as casas de mato, o cabo-verdeano disse: «Vamos à arrecadação.» Apontou o local e mandou lançar algumas granadas de morteiro. E, como não houvesse nenhuma resposta, levou-os por uma vereda. Ficava a uns escassos 50 metros. Então, foi um delírio, uma festa. Cada um arrebanhava o mais que podia: armas (russas, alemãs, checas e americanas), munições e fardas, granadas e petardos de trotiI.

Emboscados, mais longe, e ao mesmo tempo a servirmos de ponto de apoio, tínhamos os nervos a rasgar a pele, cheios de expectativa. / 146 /

Na retirada, os soldados da 489 encontraram várias poças de sangue e pedaços de algodão e, ao chegarem junto de nós, em cortejo triunfante, que nós fomos engrossando, mostravam-nos os inúmeros troféus e exclamavam: «hoje ganhámos bem o dia…»

 

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