26 / Abril / 65.
Ontem veio-nos um fula, de
nome Indé, pedir que a tropa fosse a Sare Samba Seidi buscar a população
há muito vigiada pelos terroristas. Estava sob a sua alçada. E ai
daquele que abandonasse a tabanca sem a respectiva autorização e
guia de marcha. A não observância implicava prisão. Mas tinha que ser
naquele dia. Mas porquê naquele dia? Não seria uma cilada? Há uma semana
que o controle e vigilância deixaram de ser feitos por razões
desconhecidas. Pairou a dúvida. O próprio irmão, que era guia há muito,
franziu a testa, enquanto ele falava.
Fomos lá hoje. Abrimos
caminhos na escuridão através de bolanhas e capim, aos
solavancos. E, muitas vezes, era preciso meter a tracção às quatro rodas
para vencer qualquer obstáculo. A tensão e a expectativa eram grandes.
Caminhos desconhecidos.
Os habitantes de Sare Samba
Seidi pertenciam aos chamados «partisans» (adeptos do PAIGC, forçados
neste caso). E assim os homens tinham que andar com eles, servindo de
carregadores. Alguns deles estiveram numa emboscada que sofremos junto à
bolanha de Sare Tenem. As bajudas e os miúdos eram
treinados: sabem fazer manejo de armas, marcar passo. A Taco e a Manjaco,
que eram vivandeiras no acampamento de Bricama, são
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destras no encher de carregadores e o desembaraço chega a espantar-nos.
Ficaram mesmo muitas vezes a defender as casas de mato, armadas de
pistola-metralhadora. (Isto vai-se tornando vulgar, pois devido à falta
de homens válidos, Amílcar Cabral recorre às mulheres, formando assim
«milicianas», uma milícia popular que é instrumento de defesa e controle
das populações subjugadas).
Avistada a aldeia, as
viaturas pararam a uma distância de 500 metros e a tropa fez um corredor
a fim de proteger os indígenas se acaso se viesse a registar algum
reencontro. O Mamadú foi à tabanca, à sua tabanca, abraçar
o pai, os familiares e transmitir as ordens recebidas. Deviam deixar a
aldeia o mais depressa possível, trazendo consigo somente as coisas mais
importantes e necessárias. Ele queria que a tropa chegasse toda a
Lisboa.
Passados poucos minutos,
apareceu ele com o pai, o régulo do Biado. Sempre português, firme e
leal, ainda o ano passado mandou ir o filho pagar os impostos.
Ele apresentou-o. Os olhos
bailavam-lhe de alegria e ao mesmo tempo de confusão. O Bretão e o Júlio
fizeram-lhe continência, apertaram-lhe a mão. E ele agarrou-se a eles a
chorar. Notava-se-lhe no rosto um certo nervosismo, uma certa confusão.
E toda aquela gente agora
libertada dos terroristas que lhes roubavam tudo, obrigando-os a uma
única refeição por dia, começou a desfilar entre nós. De panelas e
cabaços cheios à cabeça, as mulheres; de feixes de milho preto e alguns
pequenos sacos de arroz aos ombros, os homens. Caminhavam de olhos
baixos, como que receosos, como se fôssemos do outro mundo. Para lhe
criarmos um certo à-vontade e confiança, começámos a partir mantenhas:
«Nopinda!»
«Jarama!» agradeciam eles
com um trémulo sorriso a desfazer-se em bocas famintas.
As crianças abriam-nos os
olhos.
Lá ao fundo da procissão e
sofrimento e alegria ao mesmo tempo, porque de libertação, arrastava-se
a custo uma mulherzinha coxa que ia ficando cada vez mais para trás.
Então, dois soldados, metendo as armas em bandoleira
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e fazendo uma cadeira com as mãos, transportaram-na para um unimog.
Procissão de sofrimento. Os
olhos eram fundos como as raízes das angústias quotidianas. Vinham de
faces chupadas e quase todos doentes: uns cobertos de sarna (o que veio
contagiar alguns soldados; coisa sem importância); outros roídos de
lepra. Metia dó uma mulher de dedos a desfazerem-se aos poucos, triste.
O Dr. Franco, que à sua bondade natural e à sua natural modéstia alia a
plena consciência da sua função, a competência profissional e o respeito
por tudo quanto é humano, simples no trato com todos, quer seja o
comandante ou o mais rude indígena, espírito extremamente delicado e
aberto a todos quantos sofrem do corpo ou da alma – o Dr. Franco
observou-os um por um e fez a respectiva medicação.
O Mamadú delirava de
contente. Não cabia em si. Respirava satisfação por todos os poros.
Tinha junto de si e da tropa a família. E transgrediu mesmo os preceitos
do Corão, bebendo três cervejas. E não comeu durante dois dias. Ele
tinha «a barriga cheia de alegria…»
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