TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 141-143

TABANCA LIBERTADA

26 / Abril / 65.

Ontem veio-nos um fula, de nome Indé, pedir que a tropa fosse a Sare Samba Seidi buscar a população há muito vigiada pelos terroristas. Estava sob a sua alçada. E ai daquele que abandonasse a tabanca sem a respectiva autorização e guia de marcha. A não observância implicava prisão. Mas tinha que ser naquele dia. Mas porquê naquele dia? Não seria uma cilada? Há uma semana que o controle e vigilância deixaram de ser feitos por razões desconhecidas. Pairou a dúvida. O próprio irmão, que era guia há muito, franziu a testa, enquanto ele falava.

Fomos lá hoje. Abrimos caminhos na escuridão através de bolanhas e capim, aos solavancos. E, muitas vezes, era preciso meter a tracção às quatro rodas para vencer qualquer obstáculo. A tensão e a expectativa eram grandes. Caminhos desconhecidos.

Os habitantes de Sare Samba Seidi pertenciam aos chamados «partisans» (adeptos do PAIGC, forçados neste caso). E assim os homens tinham que andar com eles, servindo de carregadores. Alguns deles estiveram numa emboscada que sofremos junto à bolanha de Sare Tenem. As bajudas e os miúdos eram treinados: sabem fazer manejo de armas, marcar passo. A Taco e a Manjaco, que eram vivandeiras no acampamento de Bricama, são / 142 / destras no encher de carregadores e o desembaraço chega a espantar-nos. Ficaram mesmo muitas vezes a defender as casas de mato, armadas de pistola-metralhadora. (Isto vai-se tornando vulgar, pois devido à falta de homens válidos, Amílcar Cabral recorre às mulheres, formando assim «milicianas», uma milícia popular que é instrumento de defesa e controle das populações subjugadas).

Avistada a aldeia, as viaturas pararam a uma distância de 500 metros e a tropa fez um corredor a fim de proteger os indígenas se acaso se viesse a registar algum reencontro. O Mamadú foi à tabanca, à sua tabanca, abraçar o pai, os familiares e transmitir as ordens recebidas. Deviam deixar a aldeia o mais depressa possível, trazendo consigo somente as coisas mais importantes e necessárias. Ele queria que a tropa chegasse toda a Lisboa.

Passados poucos minutos, apareceu ele com o pai, o régulo do Biado. Sempre português, firme e leal, ainda o ano passado mandou ir o filho pagar os impostos.

Ele apresentou-o. Os olhos bailavam-lhe de alegria e ao mesmo tempo de confusão. O Bretão e o Júlio fizeram-lhe continência, apertaram-lhe a mão. E ele agarrou-se a eles a chorar. Notava-se-lhe no rosto um certo nervosismo, uma certa confusão.

E toda aquela gente agora libertada dos terroristas que lhes roubavam tudo, obrigando-os a uma única refeição por dia, começou a desfilar entre nós. De panelas e cabaços cheios à cabeça, as mulheres; de feixes de milho preto e alguns pequenos sacos de arroz aos ombros, os homens. Caminhavam de olhos baixos, como que receosos, como se fôssemos do outro mundo. Para lhe criarmos um certo à-vontade e confiança, começámos a partir mantenhas:

«Nopinda!»

«Jarama!» agradeciam eles com um trémulo sorriso a desfazer-se em bocas famintas.

As crianças abriam-nos os olhos.

Lá ao fundo da procissão e sofrimento e alegria ao mesmo tempo, porque de libertação, arrastava-se a custo uma mulherzinha coxa que ia ficando cada vez mais para trás. Então, dois soldados, metendo as armas em bandoleira / 143 / e fazendo uma cadeira com as mãos, transportaram-na para um unimog.

Procissão de sofrimento. Os olhos eram fundos como as raízes das angústias quotidianas. Vinham de faces chupadas e quase todos doentes: uns cobertos de sarna (o que veio contagiar alguns soldados; coisa sem importância); outros roídos de lepra. Metia dó uma mulher de dedos a desfazerem-se aos poucos, triste. O Dr. Franco, que à sua bondade natural e à sua natural modéstia alia a plena consciência da sua função, a competência profissional e o respeito por tudo quanto é humano, simples no trato com todos, quer seja o comandante ou o mais rude indígena, espírito extremamente delicado e aberto a todos quantos sofrem do corpo ou da alma – o Dr. Franco observou-os um por um e fez a respectiva medicação.

O Mamadú delirava de contente. Não cabia em si. Respirava satisfação por todos os poros. Tinha junto de si e da tropa a família. E transgrediu mesmo os preceitos do Corão, bebendo três cervejas. E não comeu durante dois dias. Ele tinha «a barriga cheia de alegria…»

 

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