Cuntima é sentinela
avançada, junto à fronteira norte. Nos princípios de 1964 estava quase
abandonada, porque as populações, que viviam à volta, intimidadas,
passaram para o Senegal. Mas hoje estão a regressar, sem entraves da
parte dos gendarmes, aldeias inteiras, já de olhos postos na próxima
sementeira da mancarra e preparando os arados para o amanho das
bolanhas. E depositam total confiança na tropa, «Tropa sabe…"
E esta confiança foi-se
consolidando à medida que a zona ia sendo limpa. E um factor decisivo
que concorreu extraordinariamente para o regresso das populações ao seu
chão, ao «chão de Português», foi a psico-social desenvolvida pelo Dr.
José Lourenço, espírito dinâmico, aberto e comunicativo, A princípio,
todos os dias, apareciam no posto de socorros dezenas e dezenas de
refugiados, cheios de mazelas: mulheres e crianças, porque além
fronteiras «mésinho cá tem», «dinheiro cá tem…». Mas hoje, formando
bicha ao lado destes, não faltam doentes do Senegal, sobretudo da cidade
de Koldá, e até alguns da Gâmbia. (Das 250 e tal consultas diárias
prestadas às gentes de cor, 70% são prestadas a estrangeiros).
Um dia, apareceu um homem de
Dakar. Sofria dum fleimão, numa das mãos, uma bolsa repelente de pus. E
lá explicou as razões por que viera de tão longe. Que em Dakar levavam
«manga de dinheiro»; que cada curativo era bem pago e como não tinha
posses para isso,
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aconselharam-no a dirigir-se à nossa Guiné, «onde seria bem tratado» e
indicaram-lhe Cuntima. E muitos casos se podiam apontar idênticos a
este. Por exemplo, uma tarde, apareceu no quartel um homem, todo banhado
em suor, vindo de Koldá, de bicicleta. Trazia um familiar que tinha uma
hérnia estrangulada. E as mesmas explicações. Que viera ali, porque lá o
médico exigia uma mão-cheia de dinheiro pela visita, cerca de 400$00 na
nossa moeda e 1.200$00 no caso de ser internado, além de que tinha de
pagar adiantado... E que viera ali por conselho de pessoa amiga. E, mais
tarde, quando saiu do hospital de Bissau, para onde fora evacuado,
apareceu em Cuntima a agradecer com meia dúzia de galinhas.
Muitas mulheres, sobretudo,
mulheres de gendarmes e padres mouros, uns dias antes do dia previsto,
vêm esperar a sua hora em casa dalguma pessoa amiga, ali em Cuntima,
onde, depois, é chamado o médico para assistir ao parto sem que regateie
um minuto sequer, seja a que horas for. E, então, as mães, contentes e,
numa prova de gratidão, põem aos filhos o nome do médico, que cedo
começam a deturpar. Há alguns que ficam a chamar-se José Doutor. Há
mesmo uma miúda que tem o nome de Maria Lissa, deturpação de Maria
Luísa, filha do Dr. José Lourenço.
Os guardas da fronteira
dão-se bem com a tropa e, sempre que esta por lá passa, trocam dois
dedos de conversa amistosa, num francês atropelado. E, quando algum
deles se sente mal, tem dores de cabeça ou dores nas costas, ou outra
enxaqueca qualquer, mandam um bilhete ao quartel. Veja-se este: «Meu
amigo doutor, agradeço que venha tratar-me. Isuf». E lá parte o médico
de jeep, desarmado. Conversa com o doente, observa-o se é preciso e
fornece-lhe a respectiva medicação. Passado um dia ou dois, novo
bilhete: «Meu amigo doutor, estou muitíssimo contente. Estou melhor.
Muito obrigado. Isuf».
E ainda não há muito tempo
que o comandante dos guardas da fronteira, no fim da visita de inspecção
ao posto de Sare Wale, enviou um recado ao capitão a pedir-lhe que fosse
à fronteira. Este não se fez rogado e lá partiu com o médico e mais
alguns homens, mas todos
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desarmados. Convidaram-no a vir sentar-se à sombra dum mangueiro do
«Chão Português» e ali trocaram longos minutos de conversa. Que estava
imensamente reconhecido, assim como o seu governo, pela assistência
médica que a tropa prestava a muitos Senegaleses; que não concordava com
o terrorismo; e que, se não foi pessoalmente a Cuntima agradecer, foi
somente porque teve medo de quaisquer intrigas. E, depois de mais uns
curativos, a despedida foi cordial.
Haverá ainda quem deturpe a
verdade? Se houver, abra os olhos e veja. Cuntima renasce.
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Nota –
Os censores consideraram todo este capítulo como bom e positivo
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