TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 134-137

SANGUE NO TARRAFO

Canjambari, 24 / Março / 1965.

Desde as quatro da manhã que estavam grudados ao chão, ouvidos bem aguçados, emboscados em ferradura muito aberta, perpendicularmente à margem do rio Tufili. Uma das pontas, embrenhada no tarrafo, tocava mesmo uma ponte feita com alguns troncos de palmeira.

Ao romper da manhã, começou a ouvir-se o roncar das auto-metralhadoras que começavam a sair da posição, ocupada na véspera, debaixo de intenso fogo de morteiro, e se dirigiam para Canjambari Grande, nascida junto ao rio e com algumas casas comerciais. Então, os terroristas que aí costumavam pernoitar, alertados, começaram a destroçar em grupos, através das palhotas e enfiaram-se na emboscada. Vinham a cochichar e, como farejassem bem o terreno, notaram as pegadas da tropa:

– Tropa estar por aqui. – E continuaram a caminhar vagarosamente e a vasculhar em todas as direcções.

Junto à ponte, o Canta e os outros dois pegaram-se bem ao terreno, de olhos no ponto de mira a enfiar um grupo que vinha naquela direcção. Ele sentiu guinadas na cabeça e uma confusão de imagens sinistras. Queria enfiar-se pelo chão, desaparecer como uma sombra. Apetecia-lhe gritar, mas as vozes atravessavam-lhe a garganta como punhais. Escondeu-se melhor e ciciou para os homens da sua esquadra: / 135 /

– Ninguém arreda pé. Morrer por morrer, morremos juntos e no nosso posto e certos de que muitos deles não ficarão com muita saúde...

Eles aproximavam-se, cautelosamente, apalpando o terreno. Os soldados tremiam dos pés à cabeça, e tremiam cada vez mais à medida que o grupo se aproximava engrossando. E rodaram a patilha para rajada.


A luta e o sol narcotizante caída sobre longas caminhadas extenuam
e o corpo à terra pede amparo.

 

Na ponta esquerda e no centro sucedia o mesmo. Mais grupos. No meio da ferradura, o Lopo, ao ver dois negros camuflados e de capacete, julgou que fossem soldados indígenas que tivessem ido fazer algum reconhecimento e chamou-os:

– Jubi! Vem para aqui. Firma aqui!

Eles estacaram, mas abriram logo fogo. O Lopo, então, apercebeu-se do engano e carregou na patilha e nada.

– Raios partam a arma! / 136 /

Mas já o furriel Delfim abrira a boca da G3 que vomitava de rajada, marcando de vez alguns terroristas.

A fuzilaria generalizava-se de parte a parte. Junto à ponte, estabelecera-se uma confusão enorme. Os terroristas, uns caíram de redondo, uns sobre os outros. Gemiam. Praguejavam e arremessavam maldições. Outros, abrigados, carregavam com fúria. O 337 e o Senega contorciam-se, ambos de ventre todo esburacado... E o Canta, sozinho, aguentava a carga, de mãos a arder e a espumar de raiva.

Às dezenas, eram aproximadamente cem, os terroristas, muitos de camuflado e capacete, (consta que há ali elementos do Exército Popular que pretende ter a estrutura dum exército regular e que nasceu em 1964) Forçaram a barreira, numa confusão de estalidos e estrondos, e abriram brecha precisamente junto dos nossos feridos. Uns passaram para a outra margem do rio, lá mais adiante, onde o rio estava quase seco, e outros instalaram-se, fazendo nova frente, atrás de alguns morros de baga-baga.

– Mais um estupor para o galheiro! – exclamou o Avô, quando acertou em cheio num matulão que, rastejando, tentava vir recuperar as armas dos companheiros que ficaram estendidos por todo o terreno.

Junto à ponte, o Canta lá estava no seu posto, defendendo-se com unhas e dentes, a si e aos homens da sua esquadra, quando a mão presa ao gatilho esguichou sangue, crivada por duas balas. Um terrorista espreitou-o da borda do baga-baga, o que mais o exasperou, porque ria às gargalhadas. Então, pegou da arma do 337, colou o indicador da mão esquerda ao gatilho e esperou. O terrorista voltou a repetir a cena, mas já não teve tempo de atirar. Rebolou no chão. E o Canta exclamou:

– Ri-te agora, filho duma cabra!

Mas já da outra margem cantavam com violência duas metralhadoras pesadas, calibre 12,7 mm. Granadas de morteiro rasgavam a posição defendida pelos vinte soldados. Que fazer? Se a força fosse dupla, ainda se podia dar-lhes luta, sempre até ao fim. E, de mais a mais, as munições estavam de resto. E o sargento Revés, que comandava os vinte homens, decidiu pela retirada e, rastejando de costas, arrastou sobre o seu corpo o 337. / 137 /

O Avô transportou o Senega e o Delfim amparava o Canta que dizia:

– Ai que morro! Ai que esses bandidos me iam liquidando. Era só contra tantos!

Longe da zona batida pelo fogo, o Armando prestou os primeiros socorros, enquanto esperavam pelo regresso das auto-metralhadoras e pelo granadeiro que junto à margem respondiam para o outro lado com fogo cerrado.

Muitos soldados estavam ainda verdes e, enfiados, tremiam, como mordidos por violentos calafrios. O Senega, nessa altura, já todo enfaixado, disse ao Delfim, numa voz fria e recortada de soluços:

– Quando regressar à metrópole, se eu morrer, peço-lhe que vá a casa de meus pais e lhes diga que eu nunca os esquecerei...

 

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