Canjambari, 24 / Março /
1965.
Desde as quatro da manhã que
estavam grudados ao chão, ouvidos bem aguçados, emboscados em ferradura
muito aberta, perpendicularmente à margem do rio Tufili. Uma das pontas,
embrenhada no tarrafo, tocava mesmo uma ponte feita com alguns
troncos de palmeira.
Ao romper da manhã, começou
a ouvir-se o roncar das auto-metralhadoras que começavam a sair da
posição, ocupada na véspera, debaixo de intenso fogo de morteiro, e se
dirigiam para Canjambari Grande, nascida junto ao rio e com algumas
casas comerciais. Então, os terroristas que aí costumavam pernoitar,
alertados, começaram a destroçar em grupos, através das palhotas e
enfiaram-se na emboscada. Vinham a cochichar e, como farejassem bem o
terreno, notaram as pegadas da tropa:
– Tropa estar por aqui. – E
continuaram a caminhar vagarosamente e a vasculhar em todas as
direcções.
Junto à ponte, o Canta e os
outros dois pegaram-se bem ao terreno, de olhos no ponto de mira a
enfiar um grupo que vinha naquela direcção. Ele sentiu guinadas na
cabeça e uma confusão de imagens sinistras. Queria enfiar-se pelo chão,
desaparecer como uma sombra. Apetecia-lhe gritar, mas as vozes
atravessavam-lhe a garganta como punhais. Escondeu-se melhor e ciciou
para os homens da sua esquadra:
/ 135 /
– Ninguém arreda pé. Morrer
por morrer, morremos juntos e no nosso posto e certos de que muitos
deles não ficarão com muita saúde...
Eles aproximavam-se,
cautelosamente, apalpando o terreno. Os soldados tremiam dos pés à
cabeça, e tremiam cada vez mais à medida que o grupo se aproximava
engrossando. E rodaram a patilha para rajada.
A luta e o sol narcotizante
caída sobre longas caminhadas extenuam
e o corpo à terra pede amparo.
Na ponta esquerda e no
centro sucedia o mesmo. Mais grupos. No meio da ferradura, o Lopo, ao
ver dois negros camuflados e de capacete, julgou que fossem soldados
indígenas que tivessem ido fazer algum reconhecimento e chamou-os:
– Jubi! Vem para aqui. Firma
aqui!
Eles estacaram, mas abriram
logo fogo. O Lopo, então, apercebeu-se do engano e carregou na patilha e
nada.
– Raios partam a arma!
/ 136 /
Mas já o furriel Delfim
abrira a boca da G3 que vomitava de rajada, marcando de vez alguns
terroristas.
A fuzilaria generalizava-se
de parte a parte. Junto à ponte, estabelecera-se uma confusão enorme. Os
terroristas, uns caíram de redondo, uns sobre os outros. Gemiam.
Praguejavam e arremessavam maldições. Outros, abrigados, carregavam com
fúria. O 337 e o Senega contorciam-se, ambos de ventre todo
esburacado... E o Canta, sozinho, aguentava a carga, de mãos a arder e a
espumar de raiva.
Às dezenas, eram
aproximadamente cem, os terroristas, muitos de camuflado e capacete,
(consta que há ali elementos do Exército Popular que pretende ter a
estrutura dum exército regular e que nasceu em 1964) Forçaram a
barreira, numa confusão de estalidos e estrondos, e abriram brecha
precisamente junto dos nossos feridos. Uns passaram para a outra margem
do rio, lá mais adiante, onde o rio estava quase seco, e outros
instalaram-se, fazendo nova frente, atrás de alguns morros de
baga-baga.
– Mais um estupor para o
galheiro! – exclamou o Avô, quando acertou em cheio num matulão que,
rastejando, tentava vir recuperar as armas dos companheiros que ficaram
estendidos por todo o terreno.
Junto à ponte, o Canta lá
estava no seu posto, defendendo-se com unhas e dentes, a si e aos homens
da sua esquadra, quando a mão presa ao gatilho esguichou sangue, crivada
por duas balas. Um terrorista espreitou-o da borda do baga-baga,
o que mais o exasperou, porque ria às gargalhadas. Então, pegou da arma
do 337, colou o indicador da mão esquerda ao gatilho e esperou. O
terrorista voltou a repetir a cena, mas já não teve tempo de atirar.
Rebolou no chão. E o Canta exclamou:
– Ri-te agora, filho duma
cabra!
Mas já da outra margem
cantavam com violência duas metralhadoras pesadas, calibre 12,7 mm.
Granadas de morteiro rasgavam a posição defendida pelos vinte soldados.
Que fazer? Se a força fosse dupla, ainda se podia dar-lhes luta, sempre
até ao fim. E, de mais a mais, as munições estavam de resto. E o
sargento Revés, que comandava os vinte homens, decidiu pela retirada e,
rastejando de costas, arrastou sobre o seu corpo o 337.
/ 137 /
O Avô transportou o Senega e
o Delfim amparava o Canta que dizia:
– Ai que morro! Ai que esses
bandidos me iam liquidando. Era só contra tantos!
Longe da zona batida pelo
fogo, o Armando prestou os primeiros socorros, enquanto esperavam pelo
regresso das auto-metralhadoras e pelo granadeiro que junto à margem
respondiam para o outro lado com fogo cerrado.
Muitos soldados estavam
ainda verdes e, enfiados, tremiam, como mordidos por violentos
calafrios. O Senega, nessa altura, já todo enfaixado, disse ao Delfim,
numa voz fria e recortada de soluços:
– Quando regressar à
metrópole, se eu morrer, peço-lhe que vá a casa de meus pais e lhes diga
que eu nunca os esquecerei...
|