Jumbembem, 22 / Março / 65.
É verdade, meu amor! Navego
há muito entre duas emoções fortes: o jogo da vida e o jogo da morte. E
para enfrentar qualquer um deles é preciso coragem e teimosia. E,
fazendo bem as contas, a cobardia aqui não pode ter lugar.
Sei que, além do mar, pensas
em mim a estas horas e, talvez, colhas a primeira flor de primavera.
Falas-me de ti, de mim, da nossa rua que está mais bonita.
Compreendemo-nos muito bem e de tal modo que sou capaz de acabar uma
frase que tu deixes incompleta, sem que eu traia a tua maneira de
pensar. Falas-me. E fecho os olhos para melhor te ouvir no universo do
meu quarto, no universo da minha esperança. E constantemente me repetes
esta frase: «Tem coragem para venceres!» E eu respondo-te sempre:
«Prometo».
A infelicidade para nós é
coisa longínqua, mas, no entanto, tenho medo que nos falte o futuro para
realizarmos o nosso amor. Amo-te demasiado para que possa aceitar a
ideia macabra do meu corpo a apodrecer, talvez bulido por serpentes
ronceirosas e animais selvagens, embora a alma seja suficiente para
viver sozinha. Falas-me e eu alimento as minhas horas vazias das tuas
palavras e faço provisões para as horas difíceis.
A morte anda-me sempre
colada à pele e, quanto mais
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se pega a ela, mais a alma se pega à vida, gritando. Queria não saber
que os dias correm assim à sombra dum cutelo. E tento desarmar o
mostrengo, olhando o rio e o sol que se esconde por detrás das palmeiras
e dá à paisagem uma cor subtil, talvez violácia. Batendo com um ramo
seco nas botas, integro-me nas explosões de riso das crianças que
brincam quase nuas sobre as pontes. Tento viver. Sorvo o presente. Que
fazer perante as crianças senão amá-las e procurar ser feliz como elas?
Nunca a terra me pareceu tão
torre de BabeI. Nunca julguei que o mundo tivesse tantos cabos de
angústia. Nunca as horas me pareceram tão longas e a vida tão curta e
tão frágil. Mas hoje estou contente, porque já consegui roubar à morte
mais vinte e quatro horas.
Sei que te minto às vezes
(mas sei também que me perdoas), quando te escrevo: «Estou bem!», "Isto
vai melhor», «os turras vão morrendo». Mas é simplesmente para que tu
não chores mais a minha ausência e os meus perigos. Mas o certo é que
vão ficando noivas por casar e famílias de luto. Mas ao espelho sei que
não posso mentir totalmente: do meu rosto coberto de suor, uma máscara,
invadido pela fadiga quotidiana, emergem dois olhos como aves que vão
piando rente às nuvens que ameaçam tempestade. Sinto que tenho
necessidade de ar puro para o meu rosto e chão firme para os meus pés
abertos do cansaço. Tenho necessidade de esquecer tudo, as vitórias e as
derrotas, tenho necessidade de partir para me reconstruir.
Meu amor, hoje, tudo normal.
Apenas não soube que fazer às horas mortas e inúteis. Só uma flor
desfolhada acabou de morrer, a última que sobrevivia dentro do arame
farpado.
«Tem coragem para venceres!
«Prometo!»
Já lá vão os vinte meses,
mas a porrada continua e a luta parece mais acesa ainda. E, então,
agora, começou por estas estradas fora a sementeira das minas. Sabes o
que é uma flor, uma criança; sabes o que são terras de espigas e pão e
vinhas de vindima. Mas minas o que serão? A mina é uma das armas mais
perigosas. Se rebenta à passagem duma viatura, em geral, debaixo
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de uma das rodas, quando não é comandada, esta voa uns bons metros e
atira os homens ao ar, no meio de uma poeira infernal que provém da
explosão, e os estilhaços anavalham a carne. A viatura fica
estrangulada. Pedaços de pneu e latas, torcidas e retorcidas, saltam e
ficam dependuradas no cimo das árvores a atestar, durante muito tempo,
por vezes, a violência do sangue e da morte. E se explode por qualquer
motivo (geralmente por estar armadilhada) quando alguém, debruçado, a
tenta tirar do buraco onde foi enterrada com a ajuda da catana e
devidamente camuflada com terra ou folhas secas, desaparece homem e
farda.
E esta perigosa sementeira
exige mais esforços. Teremos que fazer léguas e léguas a pé, à frente
das viaturas, apalpando os caminhos, vasculhando qualquer ponto de terra
remexida com varas munidas de um sabre na ponta a fim de evitar males
maiores.
«Tem coragem para venceres!»
«Prometo!»
É preciso realmente cerrar
os dentes e dizer: «alma até Almeida!»
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