TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 131-133

A MORTE FRONTEIRA

Jumbembem, 22 / Março / 65.

É verdade, meu amor! Navego há muito entre duas emoções fortes: o jogo da vida e o jogo da morte. E para enfrentar qualquer um deles é preciso coragem e teimosia. E, fazendo bem as contas, a cobardia aqui não pode ter lugar.

Sei que, além do mar, pensas em mim a estas horas e, talvez, colhas a primeira flor de primavera. Falas-me de ti, de mim, da nossa rua que está mais bonita. Compreendemo-nos muito bem e de tal modo que sou capaz de acabar uma frase que tu deixes incompleta, sem que eu traia a tua maneira de pensar. Falas-me. E fecho os olhos para melhor te ouvir no universo do meu quarto, no universo da minha esperança. E constantemente me repetes esta frase: «Tem coragem para venceres!» E eu respondo-te sempre: «Prometo».

A infelicidade para nós é coisa longínqua, mas, no entanto, tenho medo que nos falte o futuro para realizarmos o nosso amor. Amo-te demasiado para que possa aceitar a ideia macabra do meu corpo a apodrecer, talvez bulido por serpentes ronceirosas e animais selvagens, embora a alma seja suficiente para viver sozinha. Falas-me e eu alimento as minhas horas vazias das tuas palavras e faço provisões para as horas difíceis.

A morte anda-me sempre colada à pele e, quanto mais / 132 / se pega a ela, mais a alma se pega à vida, gritando. Queria não saber que os dias correm assim à sombra dum cutelo. E tento desarmar o mostrengo, olhando o rio e o sol que se esconde por detrás das palmeiras e dá à paisagem uma cor subtil, talvez violácia. Batendo com um ramo seco nas botas, integro-me nas explosões de riso das crianças que brincam quase nuas sobre as pontes. Tento viver. Sorvo o presente. Que fazer perante as crianças senão amá-las e procurar ser feliz como elas?

Nunca a terra me pareceu tão torre de BabeI. Nunca julguei que o mundo tivesse tantos cabos de angústia. Nunca as horas me pareceram tão longas e a vida tão curta e tão frágil. Mas hoje estou contente, porque já consegui roubar à morte mais vinte e quatro horas.

Sei que te minto às vezes (mas sei também que me perdoas), quando te escrevo: «Estou bem!», "Isto vai melhor», «os turras vão morrendo». Mas é simplesmente para que tu não chores mais a minha ausência e os meus perigos. Mas o certo é que vão ficando noivas por casar e famílias de luto. Mas ao espelho sei que não posso mentir totalmente: do meu rosto coberto de suor, uma máscara, invadido pela fadiga quotidiana, emergem dois olhos como aves que vão piando rente às nuvens que ameaçam tempestade. Sinto que tenho necessidade de ar puro para o meu rosto e chão firme para os meus pés abertos do cansaço. Tenho necessidade de esquecer tudo, as vitórias e as derrotas, tenho necessidade de partir para me reconstruir.

Meu amor, hoje, tudo normal. Apenas não soube que fazer às horas mortas e inúteis. Só uma flor desfolhada acabou de morrer, a última que sobrevivia dentro do arame farpado.

«Tem coragem para venceres!

«Prometo!»

Já lá vão os vinte meses, mas a porrada continua e a luta parece mais acesa ainda. E, então, agora, começou por estas estradas fora a sementeira das minas. Sabes o que é uma flor, uma criança; sabes o que são terras de espigas e pão e vinhas de vindima. Mas minas o que serão? A mina é uma das armas mais perigosas. Se rebenta à passagem duma viatura, em geral, debaixo / 133 / de uma das rodas, quando não é comandada, esta voa uns bons metros e atira os homens ao ar, no meio de uma poeira infernal que provém da explosão, e os estilhaços anavalham a carne. A viatura fica estrangulada. Pedaços de pneu e latas, torcidas e retorcidas, saltam e ficam dependuradas no cimo das árvores a atestar, durante muito tempo, por vezes, a violência do sangue e da morte. E se explode por qualquer motivo (geralmente por estar armadilhada) quando alguém, debruçado, a tenta tirar do buraco onde foi enterrada com a ajuda da catana e devidamente camuflada com terra ou folhas secas, desaparece homem e farda.

E esta perigosa sementeira exige mais esforços. Teremos que fazer léguas e léguas a pé, à frente das viaturas, apalpando os caminhos, vasculhando qualquer ponto de terra remexida com varas munidas de um sabre na ponta a fim de evitar males maiores.

«Tem coragem para venceres!»

«Prometo!»

É preciso realmente cerrar os dentes e dizer: «alma até Almeida!»

 

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