TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 127-130

CEM CASAS DE MATO

Fambantã, 6 / Março / 65.

A investida foi pelo norte. Esperou-se até ao amanhecer, num silêncio quase aterrador, e um vento mole, pegajoso, bulia com as árvores e com os nervos. Quando surgiu o momento oportuno, corremos sobre o acampamento de Fambantã, em linha e de armas aperradas aos quadris, vomitando fogo, aos gritos, açulando-os. Eles praticamente só tiveram tempo de pegar nas armas e fugir para responder de longe.

Depois de tudo destruído – as cem casas de mato, os montes de arroz e milho preto – perseguiu-se o inimigo com certa fúria e confiança própria. Um negro, de olhos esbugalhados, contorcia-se, grudado ao chão, entre o capim amadurecido. O Jacinto com o pé rebolou-o para o lado a ver se tinha escondida debaixo do corpo alguma arma e disse: – Bandido! Pagaste com a tua morte o teu ideal...

Ele abriu mais os olhos e grunhiu:

Branco, mist mesinho! Cura a mim...

– Queres mesinho.? Só se for mesinho, calibre 7,62...

Estava varado e esvaía-se em sangue.

Perante o cadáver, ficou desanimado e disse para os companheiros que se aproximavam carregados de canhangulos, granadas, sacos de munições e fardas amarelas de caqui: / 128 /

– Somos os reis dos canhangulos...

E ele o que mais ambicionava era apanhar uma arma, sacá-la das mãos ensanguentadas e ainda quentes do inimigo. Isso para ele, como para tantos outros, tem um sabor muito especial.

O Jacinto é desempoeirado. Tem umas mãos longas, um rosto alegre donde emergem dois olhos verdes que reflectem vivacidade e calma ao mesmo tempo. Usa uma boina preta onde brilham as espadas de cobre de que ele tanto se orgulha. Não é supersticioso, mas ainda não conseguiu compreender como a cigana esguia, de olhos negros e carne morena, adivinhou um pouco da sua vida nas linhas confusas das suas mãos calosas: «O senhor passará águas do mar e amará uma negrita; mas, quando regressar, há-de encontrar uma mulher que o fará feliz e lhe dará três filhos...» Seria por mero acaso que ela adivinhara? «Barata feira por dez tostões» disse-lhe o Jacinto. Mas a sina estava a bater certo, o que lhe causava uma certa confusão. Passou águas do mar e há meses amara uma rapariga de cor, de rosto suave e olhos cintilantes. E ele ainda hoje acha que a Mariama merece amor, porque, afinal, não é diferente das mulheres que conhecera. É meiga e todo o corpo tem um jogo de harmonia.

Atrás das nossas costas, as labaredas subiam atrás do fumo que manchava o verde da paisagem.

A companhia 487 juntou-se-nos. Conseguira apanhar uma Mauser e duas Thompson e um ror de coisas. E o Jacinto desabafou com certa tristeza:

– Somos os reis dos canhangulos...

(São na realidade coisas inúteis, sem valor e interesse, porque não chegam a ser troféus de guerra. Só os velhos as usam ainda na caça às gazelas ou galinhas do mato, pois aos guerrilheiros nunca faltaram boas armas, checas, chinesas ou russas e agora começaram a usar o morteiro e a bazooka em larga escala).

Assalto e destruição dum acampamento. Fambantã, 6 / Março / 65.
 (Imagens ocupando toda a pág. 129)

Tão grande acampamento causou-me admiração de certo modo, porque, de facto, eles não se moviam muito há uns meses para cá. Apenas nos roubaram algumas vacas que andavam na pastagem e tentaram atacar o quartel à bazookada, mas falharam os intentos, porque / 130 / caíram numa emboscada montada pelos Fulas. Além disso, estão com os azeites: uns querem como chefe de zona Mamadú Indjai; outros não. Que dêem com a cabeça nas árvores, que se esfolem e se matem. Trará vantagens. Outra causa, que os leva a não se mexer muito, é a fome. Só têm uma refeição por dia, às 9:30. Depois, cada um que se oriente com as raízes e frutos selvagens.

 

Página anterior

Página inicial Página seguinte