TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 125-126

GRITO ANÓNIMO

Canjambari, 29 / Janeiro / 65.

Quando deixámos a estrada, um negro da milícia disse:

– Deus vos acompanhe!

Afivelei o capacete. E caminhámos no silêncio, na noite cerrada como a floresta. Mas, quando veio a madrugada, sem darmos por isso, estávamos à boca de algumas casas de mato e na boca do lobo que, emboscado, resistiu por breves minutos.

Seguimos. E, quando chegámos à tabanca, que era o grande celeiro da zona, tiros e rajadas fustigaram-nos. Enquanto o diabo esfregara um olho, eles fugiram para a periferia. Mas, passados minutos, já estavam instalados do lado esquerdo, ao fundo da tabanca, prontos a causarem-nos dores de cabeça. Então, a fuzilaria engrossou de parte a parte e o perigo mostrava-se maior para nós porque estávamos num terreno descampado, sem abrigos e camuflagem. Mas num momento soou um grito:

– Vamos a eles!

Donde partiu não sei, mas o certo é que saiu da boca e raiva dum valente anónimo e se comunicou a toda a linha, electrizando a frente e os flancos. E começou a ouvir-se por todo o terreno que estava a ser varrido por um fogo cerrado que fazia uma enorme poeirada

– Vamos a eles!

– Vamos dar-lhes cabo do pêlo! / 126 /

E todos, por lanças curtos e rápidos, corriam, faziam fogo, deitavam-se. O Garcês impulsionava os restantes, atirando-se para a frente, sempre de pé, de Madsen fixa nos quadris. Era impossível resistir. E começaram a retirar desorientados com a nossa perseguição que se tornava deveras eficaz, confundidos com a audácia e com os gritos. Uns desciam das árvores, caíam como pedras. O quarenta e sete espiava os troncos das árvores, fazia pontaria. E, quando viu um terrorista varado a estatelar-se no chão, agarrado à arma, esfregou as mãos e exclamou:

– Cão danado! Agora já não nos esperas mais... – E com um ar de desprezo – Fica aí com o diabo!

Outros, alojados nos morros de baga-baga, começaram a correr em ziguezague. E travou-se uma luta, quase patética, entre o Casinhas e um terrorista que protegia a retirada dum ferido. Cada um procurava defender-se o melhor possível e acertar a matar. Ele fugia, parava, voltava-se, fazia fogo. Mas o Casinhas, mais ágil e mais calmo, lançou-o por terra, quando ele virou costas, arremessando uma granada.

– Desta não te safaste tu, bandido!

Eles calaram-se.

O vinte, ferido, contorcia-se na maca. Quando voltámos da perseguição, pelo capim empastavam poças de sangue e um dos soldados cuspiu numa delas:

– Sangue de cães...

O helicóptero aterrou. Na orla da mata, alguns soldados engrolavam palavras, suavam em bica. Era meio-dia. Eu comia e o pão engrolava-me na boca.

 

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