Jumbembem, 2 / Janeiro / 65.
Tenho o quarto coberto de
noite. Está frio como nunca. E ouço o gemer dos bichos na selva, num
silêncio de mundo parado.
Levanto-me: a almofada
fere-me como se fosse de pedra, pois me atormenta e retalha os
pensamentos dispersos como o vento que bole com as árvores. Não consigo
dormir. Há noites que ando de insónias. Cansaço.
Acendo o candeeiro a
petróleo. E limpo as unhas com o resto do fósforo.
– Deixa cá ver um cigarro!
Vou para a janela. A rede
mostra-me que a noite amadurece com uma lua a gotejar frescuras dum rio
derramado sobre a terra.
Divago. Um soldado, embora
duramente batido por angústias, não tem coração de pedra: sinto saudades
de longe, amo. O sangue do soldado não é selvagem nem cavalo de espanto:
sinto ternura e agasalho-me nos olhos de alguém.
Atiro à noite escarros de
fumo. Divago. Lembro-me de que não pego no diário há tempos. E sinto que
a coragem, por vezes, me esfria as mãos. Estou farto, cansado. Mas
também sinto que a língua me morde os lábios para que eu fale ou grite.
Tudo o
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que escrevi não é nada comparado ao que eu não conto ou não sei contar.
É preciso escrever. Recordo páginas (algumas tão horrorosas ou
divertidas) que não borrei de tinta nem molhei de sangue ou suor. Há
muitos heróis a quem ainda não ergui palavras, palavras verdadeiras como
o sangue, que gotejou na selva, no capim. Há perigos e noites que
atravessámos juntos e que ainda não contei. Mais perto, no fim do ano,
vejo o Gibril minado de sangue na fronte, no corpo caído sobre a arma
que mais apertou contra o peito, quando lhe pegaram. No estertor da
agonia, julgava que fossem os bandidos. E vejo a mulher banhada em
lágrimas, desgrenhada, e mordendo a cabeça com as unhas, quando viu
partir o helicóptero. Para sempre. E tenho pena do filho. O Cherno anda
triste. Nunca mais brincou.
Uma criança aqui perto,
ouço-a bem, choraminga. Talvez tacteie os seios da mãe. E eu procuro
adivinhar-me na vida. Será possível? Estou farto, cansado e digo que, se
não fosse a criançada dar-nos um ar de paz dentro do arame farpado, já
estaríamos doidos. Isto é um deserto.
Divago. A lua é uma cabeça
decepada a quem lanço angústias dolorosas de roer entranhas. Deixo a
janela, volto as costas à noite lá fora e entro na minha noite. Vou
deitar-me, espalmar o rosto sobre uma das mãos e escondê-lo debaixo da
ponta do lençol com medo de amanhã.
– Deixa ver outro cigarro!
Apago o candeeiro.
– Boa-noite!
– Boa-noite!
A alma grita-me. Tenho que
falar para não morrer, para não deixar morrer os que tombaram, para não
deixar morrer os que andam vencendo perigos, os homens e a natureza.
Sim. Amanhã, vou continuar o
meu diário.
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