TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 123-124

INSÓNIA

Jumbembem, 2 / Janeiro / 65.

Tenho o quarto coberto de noite. Está frio como nunca. E ouço o gemer dos bichos na selva, num silêncio de mundo parado.

Levanto-me: a almofada fere-me como se fosse de pedra, pois me atormenta e retalha os pensamentos dispersos como o vento que bole com as árvores. Não consigo dormir. Há noites que ando de insónias. Cansaço.

Acendo o candeeiro a petróleo. E limpo as unhas com o resto do fósforo.

– Deixa cá ver um cigarro!

Vou para a janela. A rede mostra-me que a noite amadurece com uma lua a gotejar frescuras dum rio derramado sobre a terra.

Divago. Um soldado, embora duramente batido por angústias, não tem coração de pedra: sinto saudades de longe, amo. O sangue do soldado não é selvagem nem cavalo de espanto: sinto ternura e agasalho-me nos olhos de alguém.

Atiro à noite escarros de fumo. Divago. Lembro-me de que não pego no diário há tempos. E sinto que a coragem, por vezes, me esfria as mãos. Estou farto, cansado. Mas também sinto que a língua me morde os lábios para que eu fale ou grite. Tudo o / 124 / que escrevi não é nada comparado ao que eu não conto ou não sei contar. É preciso escrever. Recordo páginas (algumas tão horrorosas ou divertidas) que não borrei de tinta nem molhei de sangue ou suor. Há muitos heróis a quem ainda não ergui palavras, palavras verdadeiras como o sangue, que gotejou na selva, no capim. Há perigos e noites que atravessámos juntos e que ainda não contei. Mais perto, no fim do ano, vejo o Gibril minado de sangue na fronte, no corpo caído sobre a arma que mais apertou contra o peito, quando lhe pegaram. No estertor da agonia, julgava que fossem os bandidos. E vejo a mulher banhada em lágrimas, desgrenhada, e mordendo a cabeça com as unhas, quando viu partir o helicóptero. Para sempre. E tenho pena do filho. O Cherno anda triste. Nunca mais brincou.

Uma criança aqui perto, ouço-a bem, choraminga. Talvez tacteie os seios da mãe. E eu procuro adivinhar-me na vida. Será possível? Estou farto, cansado e digo que, se não fosse a criançada dar-nos um ar de paz dentro do arame farpado, já estaríamos doidos. Isto é um deserto.

Divago. A lua é uma cabeça decepada a quem lanço angústias dolorosas de roer entranhas. Deixo a janela, volto as costas à noite lá fora e entro na minha noite. Vou deitar-me, espalmar o rosto sobre uma das mãos e escondê-lo debaixo da ponta do lençol com medo de amanhã.

– Deixa ver outro cigarro!

Apago o candeeiro.

– Boa-noite!

– Boa-noite!

A alma grita-me. Tenho que falar para não morrer, para não deixar morrer os que tombaram, para não deixar morrer os que andam vencendo perigos, os homens e a natureza.

Sim. Amanhã, vou continuar o meu diário.

 

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