TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 153-154

CALENDÁRIO

Jumbembem, 11 / Junho / 65.

Deitado na cama de rede, fixo o calendário, feito de papel quadriculado e cravado na parede. E cada dia que passa é preenchido, sujo com lápis de cor, quando o relógio marca meia-noite. Cada mês que passa é esquecido com dois traços em cruz.

Mas que é para nós um calendário? Uma estrada monótona de cômoros sem amoras e borboletas; um pedaço de papel que podia não ter existido, um ponto morto. Mas diz-me tanto o calendário cravado na parede! Quadradinhos vermelhos: dias doridos de poentes de sangue; carne anavalhada por estilhaços de morte, enrodilhada de medo, atrás duma árvore ou nas bermas das picadas, ou montada em gloriosos corcéis de batalha, vencendo tudo e todos; combates ensopados em chuva ou lama para lavar as feridas; minas que desfazem viaturas, levando-as pelo ar com os homens; sangue, muito sangue, morte.

Quadradinhos negros: dias feitos de nada, inúteis, como uma folha que o cacimbo apodreceu; dias impossíveis de construir, em que atiramos a alma para trás das costas, de braços caídos nos braços da cadeira, porque era grande o peso das sombras que lhe iam por debaixo; dias de humor negro, a olharmos as paredes sujas, as mãos sujas, a selva, as angústias vermelhas como os olhos, e a incerteza do dia seguinte e os malabarismos do Biscaia. / 154 /

Que é o calendário para nós? Quadradinhos vermelhos, negros. Sei-os de cor: os dias, as horas, os minutos, a vida, a morte.

Horas que amanheceram a sorrir como crianças, frescas como elas; horas paradas, a ouvirmos as inesquecíveis anedotas do Júlio ou música trepidante; horas cobertas de esperança a desenhar o mar azul, o regresso, os abraços, o cais.

Minutos que humedeceram os olhos, porque veio a morte roubar os sonhos; horas tristes, porque o avião não veio lançar o saco azul do correio.

Ai tanto que eu não contei, mas que sei de cor pelo calendário, pela cor do sangue: combates, mortos, feridos, lágrimas, fome, sede.

Dizem que as avestruzes quando pressentem tempestades, escondem a cabeça nas areias. Quantos homens assim com medo da verdade? Para quê?

Há ainda quadradinhos brancos: 36. Vazios. Que cor os vai sujar? Quando diremos? – Pátria, presente! Missão cumprida! A guerra continua a queimar-nos a alma, a quebrar os nervos.

Calendário: quadradinhos vermelhos, negros…

 

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