TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 118-120

QUANDO HÁ MOSQUITOS

Canjambari, 27 / Set. / 64.

«Há mosquitos na estrada…»

Frase curta, gaguejada numa voz aflita de quem se debatia com arrepios de medo, anichado na estrada.

A mensagem de Coimbra 8 voou num segundo. Chegou ao estacionamento tão depressa como a tempestade ruidosa da fuzilaria e estrondos que faziam tremer terra e árvores, longe, na estrada da morte…

Eles aparecem sempre onde e quando menos se espera.

Esta é uma guerra sem frente nem flancos, nem retaguarda.

«Há mosquitos na estrada…»

Isto era tudo quanto podia ser dito pelo rádio, mas normal não estava nada. Nem a natureza. Havia um mundo de nervos, poeira e fumo, cheiro a pólvora e a capim queimado, a sangue fresco, acabado de jorrar.

Uma chuva de granadas desventrava a terra, rente aos canos das G3, caía na estrada. Uma caiu mesmo sobre o capacete do Inácio, rolou. Porém, ele, por instinto, ou por presença de espírito, num lanço curto, mas enérgico, correu e lançou-se por terra, ferindo-se apenas nas costas e nos dedos.

O Saninho, de cigarro ao canto da boca e de mãos espalmadas a tentar vedar o rasgão fundo que gotejava do peito aberto por um grande estilhaço, olhava para um e para outro lado em busca do enfermeiro. / 119 /

De dentro dum fortim, feito de chapas, terra e madeira, e instalado numa Mercedes, a nossa auto-metralhadora, – a «torre», como lhe chamam os terroristas – a Breda cantava, fumegava, a vomitar a morte. E o apontador seguia todo e qualquer movimento do inimigo emboscado a defender-se com garra.

– Dá-me outra lâmina. Aquele já estoirou. Filho duma cadela!

O terrorista levantava-se dum salto para retirar. Era um dos suicidas que, junto à estrada, lançava granadas às mãos-cheias.

E o apontador da Breda rematou orgulhoso:

– Enfiei-o mesmo no ponto de mira...

A luta estava acesa, no auge.

Junto do furriel Lima, o pequeno Mamadú, que beira aí os treze anos, atordoado e estarrecido, olhava para todos os lados, à procura de algum sítio menos batido pelo fogo, mais seguro. Talvez quisesse naquele momento que a terra abrisse bocas e o engolisse inteiro.

Talvez julgasse que era o fim.

Eh, Lima, manga de chatice!

– Vai para debaixo da camioneta – retorquiu-lhe o furriel.

Junto dele, o guia e o Sila, dois nativos, gemiam, contorciam-se, apalpavam os rasgões. E tudo aquilo era um espectáculo demasiadamente duro e cruel para tão verdes anos.

Mamadú obedeceu e, rebolando-se, anichou-se debaixo duma viatura. E, de vez em quando, erguia um pouco a cabeça, ora, de olhos fechados, de terror, ora arregalados, como se quisesse perceber toda a loucura dos homens.

«Se eu tivesse ao menos uma arma, afugentaria mais facilmente o medo» – pensava. E ele que queria uma arma, quando as distribuímos aos homens e rapazes de Lamel. Zangara-se mesmo. Mas o chefe de tabanca achou que ele era ainda muito novo...

A Breda e as G3 cuspiam fogo e fumo continuamente. – Olha mais um que se foi para o diabo!

Uma granada de mão estilhaçou-lhe o pescoço, os ombros, o dorso. Saltaram pedaços de carne, pedaços de roupa. Esguichou sangue. / 120 /

– Manda-lhe outra rajada, não vá o estupor armar-nos outra. Assim, até sofre menos... – disse o municiador.

Ele atirou certeiro. E, quando o viu ficar imóvel, a gemer, clamou:

– Que a terra te seja leve como chumbo, diabo!

– Que os abutres roam todos os teus ossos – concluiu o outro enquanto enfiava nova lâmina.

A tempestade agora abrandava.

E Coimbra 8 transmitia:

«Os mosquitos estão a cavar….»

Os moços, sujos e ensuarados, mais à-vontade, começaram a respirar mais fundo. Punham-se de joelhos e de pé, sacudiam a terra e as formigas, agarradas às fardas, davam os últimos tiros, preparavam-se para fazer a batida ao capim.

O enfermeiro acabava de desinfectar as feridas. Dava injecções, punha pensos, ligaduras, animava os feridos.

Eles atiravam de longe. E fazíamos os primeiros comentários.

– Ladrões! Hoje vinham com fúria. Com certeza, correu-lhes maI o fim-de-semana! – dizia um.

– Olha! Agora é que já não vês um terrorista à frente do nariz! – dizia o homem do bom humor, o Júlio, quando o Clarim lhe apareceu a queixar-se, de óculos sem lentes, rosto todo ensanguentado.

 

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