Canjambari, 9 / Out. / 64.
– Hoje, vamos ter
sarrafusca, ai isso vamos! – disse alguém ao subir para a viatura.
A estrada está atravancada
de árvores e bissilões de grande porte que chegam a cruzar-se uns sobre
os outros.
A nossa missão era:
levantamento de abatizes.
Antes de chegarmos às
árvores, apeámos, prevendo já a táctica e as manhas do inimigo.
Ele deixou-nos entrar na
zona de morte.
Um estrondo ecoou, seguido
de rajadas e estrondos sucessivos.
6:50.
Uma chuva de granadas
começou a rebentar rente a nós, lançadas por autênticos suicidas,
atordoando-nos. E os estilhaços voavam. Uma chuva densa de balas feria o
espaço, partia ramos, furava o capim verde, tilintava ao bater nas
viaturas. E nós, uns deitados, outros, de joelhos, varríamos tudo à
nossa frente. Corria sangue.
O sol tinha encorado por
detrás do arvoredo na distância, agarrado a um céu azul.
Subitamente, senti que um
estilhaço me batera na fronte. Vi-o cair na estrada. Deixei o gatilho.
Um calafrio invadiu-me o corpo todo, doeu-me como pancadas nos ossos.
Deixei tombar a G3 para o lado esquerdo e passei a mão espalmada pela
fronte ensuarada, assaltada
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por pensamentos de terror. Depois, continuei a puxar o gatilho
calmamente como que para me vingar. Findo o segundo carregador, parei um
momento. Passei novamente os dedos pela testa. Traziam sangue.
Arrepiei-me, mas não disse nada a ninguém. Mas não foi preciso muito
tempo para compreender que o golpe não fora nada de grave, porque estava
em mim e sentia que estava ali para as curvas, como dizia o Sinésio.
Além disso animou-me:
– O estilhaço fez-lhe uma
cruz. Esta é que é uma verdadeira cruz de guerra... Mas isto não é nada.
E começámos a atacar as
árvores. Uns fendiam-nas com serrões. Outros cravavam-lhes os machados e
as catanas. Volteavam os ferros no ar, curvavam-se e rasgavam os troncos
arrogantes. E, cortados, o unimog arrastava-os com o guincho para dentro
do mato.
Os terroristas continuaram a
açoitar-nos com rajadas espaçadas e uma esfrangalhou um carregador da
Madsen. O apontador deu um salto para trás, arrastou a metralhadora. A
morte rondou-lhe a escassos centímetros.
O Malagueta desabafou:
– Olha o urso que me ia
acertando em cheio... Mas o trabalho só parou quando chegou a hora do
regresso. Meio-dia.
E nova emboscada nos lançou
por terra.
– Hoje, estão com força, os
bandidos! – disse-me o guarda-costas. – Estão a fazer da estrada
carreira de tiro.
A gente, ao lançar-se por
terra, não vê onde cai, se é dura ou mole, ou está armadilhada. Não há
tempo para pensar. E caí todo no meio dum formigueiro enorme. Quando dei
por tal, já as formigas me tinham feito um cerco cerrado e entravam a
ferrar-me, sem dó nem piedade, subiam-me as costas, os pés e as mãos. E,
palavra, que nem sabia se havia de dar mais importância a este minúsculo
inimigo se ao fogo que partia cerrado do mato, enfurecido. Elas quase me
iam comendo. E o meu jogo era este: coçava-me, rebolava-me, matava às
mãos-cheias, esmagando-as entre o corpo e a farda, esmagando-as entre os
dedos, fazia fogo. Coçava-me, rebolava-me...
O sol tinha subido no azul.
Quase a pique, faiscava,
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estilhaçava-se todo no cano da arma, enviava-me lâminas de fogo para a
fronte, para os olhos.
Mais livre, olhei para o
lado direito. O capitão, que tinha apanhado com uma bala de raspão no
cotovelo, puxava umas fumaças de cigarro em meio. E um fula levantava e
baixava a cabeça, como um cata-vento, olhava de viés, estarrecido, e
emprestava à cena um sorriso forçado, amarelo.
Eles batiam em retirada e
atiravam de longe.
Então, despi-me e sacudi o
corpo e a roupa e arranquei à pele, aqui e ali, cabeças de formigas.
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