TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 113-115

ESTRADA ATRAVANCADA

Canjambari, 9 / Out. / 64.

– Hoje, vamos ter sarrafusca, ai isso vamos! – disse alguém ao subir para a viatura.

A estrada está atravancada de árvores e bissilões de grande porte que chegam a cruzar-se uns sobre os outros.

A nossa missão era: levantamento de abatizes.

Antes de chegarmos às árvores, apeámos, prevendo já a táctica e as manhas do inimigo.

Ele deixou-nos entrar na zona de morte.

Um estrondo ecoou, seguido de rajadas e estrondos sucessivos.

6:50.

Uma chuva de granadas começou a rebentar rente a nós, lançadas por autênticos suicidas, atordoando-nos. E os estilhaços voavam. Uma chuva densa de balas feria o espaço, partia ramos, furava o capim verde, tilintava ao bater nas viaturas. E nós, uns deitados, outros, de joelhos, varríamos tudo à nossa frente. Corria sangue.

O sol tinha encorado por detrás do arvoredo na distância, agarrado a um céu azul.

Subitamente, senti que um estilhaço me batera na fronte. Vi-o cair na estrada. Deixei o gatilho. Um calafrio invadiu-me o corpo todo, doeu-me como pancadas nos ossos. Deixei tombar a G3 para o lado esquerdo e passei a mão espalmada pela fronte ensuarada, assaltada / 114 / por pensamentos de terror. Depois, continuei a puxar o gatilho calmamente como que para me vingar. Findo o segundo carregador, parei um momento. Passei novamente os dedos pela testa. Traziam sangue. Arrepiei-me, mas não disse nada a ninguém. Mas não foi preciso muito tempo para compreender que o golpe não fora nada de grave, porque estava em mim e sentia que estava ali para as curvas, como dizia o Sinésio. Além disso animou-me:

– O estilhaço fez-lhe uma cruz. Esta é que é uma verdadeira cruz de guerra... Mas isto não é nada.

E começámos a atacar as árvores. Uns fendiam-nas com serrões. Outros cravavam-lhes os machados e as catanas. Volteavam os ferros no ar, curvavam-se e rasgavam os troncos arrogantes. E, cortados, o unimog arrastava-os com o guincho para dentro do mato.

Os terroristas continuaram a açoitar-nos com rajadas espaçadas e uma esfrangalhou um carregador da Madsen. O apontador deu um salto para trás, arrastou a metralhadora. A morte rondou-lhe a escassos centímetros.

O Malagueta desabafou:

– Olha o urso que me ia acertando em cheio... Mas o trabalho só parou quando chegou a hora do regresso. Meio-dia.

E nova emboscada nos lançou por terra.

– Hoje, estão com força, os bandidos! – disse-me o guarda-costas. – Estão a fazer da estrada carreira de tiro.

A gente, ao lançar-se por terra, não vê onde cai, se é dura ou mole, ou está armadilhada. Não há tempo para pensar. E caí todo no meio dum formigueiro enorme. Quando dei por tal, já as formigas me tinham feito um cerco cerrado e entravam a ferrar-me, sem dó nem piedade, subiam-me as costas, os pés e as mãos. E, palavra, que nem sabia se havia de dar mais importância a este minúsculo inimigo se ao fogo que partia cerrado do mato, enfurecido. Elas quase me iam comendo. E o meu jogo era este: coçava-me, rebolava-me, matava às mãos-cheias, esmagando-as entre o corpo e a farda, esmagando-as entre os dedos, fazia fogo. Coçava-me, rebolava-me...

O sol tinha subido no azul. Quase a pique, faiscava, / 115 / estilhaçava-se todo no cano da arma, enviava-me lâminas de fogo para a fronte, para os olhos.

Mais livre, olhei para o lado direito. O capitão, que tinha apanhado com uma bala de raspão no cotovelo, puxava umas fumaças de cigarro em meio. E um fula levantava e baixava a cabeça, como um cata-vento, olhava de viés, estarrecido, e emprestava à cena um sorriso forçado, amarelo.

Eles batiam em retirada e atiravam de longe.

Então, despi-me e sacudi o corpo e a roupa e arranquei à pele, aqui e ali, cabeças de formigas.

 

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