TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 111-112

BOA CAÇADA

Farincó Mandinga, 24 / Set. / 64.

– Chô! Olha o raio do burro deita-se!

O burro, pequeno, enterrou uma das patas, caiu sobre os joelhos enormes com leves arranhões, afocinhou sobre o arrozal da bolanha. Mas o Gaimota obrigou-o a levantar-se imediatamente, puxando-o pelo rabo quase pelado. Depois, deu-lhe três palmadas encorajadoras no lombo:

– Anda, molengão! Andas fraco...

E ele agradeceu em zurros de espanto, focinho pregado no céu quente, a admirar o T6 que nos sobrevoava, atirando pelas narinas o fumo da respiração.

O caminho era longo há muito. Mas quase ninguém sentia as bolhas nos pés molhados e o sono a vencer os olhos e o peso da água e da lama que se pegava às botas, às calças até à forcada.

Fora dia de caça grossa. Recompensou uma noite perdida, o que nem sempre acontece.

Ao alvorecer, o tiroteio rebentou simultâneo nas casas de mato do lado de lá, da bolanha e na tabanca que ofereceu forte resistência. Porém, nas casas de mato os terroristas foram apanhados de surpresa e, em vão, pediram pernas a Alá, abandonando um número razoável de armas e munições. Os pilões calaram-se, arderam. Mas mesmo assim apanhei um susto. Sustos de todos os / 112 / dias. E, caminhando, lembrei, aliviado, o arrepio que me tolheu quando uma rajada, violenta e perdida, rompeu as folhas das ervas à minha frente e passou rente ao capacete, e, livre, agasalhei-me na memória dos caminhos da minha terra, onde o dia acorda, tão diferente, com a toada bíblica dos sinos a perder-se pelos campos fora, a rezar sobre os beirais do casario e sobre as gândaras e a despertar as asas, a criançada.

Caminhava de olhos presos às orelhas do burro. A água da bolanha subia-lhe a barriga e ele levantava o focinho, esticava-o. Ia carregado de velharias como um cigano e seguia, muito conscienciosamente, a fila das fardas de sardão, como um velho conhecido e nem sequer mostrava a menor recusa.

Porém, de repente, estacou e não queria andar.

A chibata começou a cair-lhe em cima como uma penosa carícia.

– Vê lá se matas o burro. Sabes que depois de «burro morto cevada ao rabo.»

– Decerto, também é bandido...

Imaginei-me então em cavalgadas e vitórias. Lembrei-me de D. Quixote travando dura luta com os moinhos de vento e das suas tristes figuras. Mas ninguém se ria, porque todos temos uma costela de D. Quixote e outra do amigo Sancho Pança.

Moía entre os dedos uma folha qualquer.

A estrada apareceu.

E o Gaimota, montado, pés a roçar o chão, afagava o pescoço do prisioneiro com a chibata, com as mãos:

– Arre, burro! Arre, burro!

 

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