TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 108-110

SELVAGEM É A NOITE

15 / Set. / 64.

Meia noite.

Meti um pão no bolso e tomei, de olhos piscos, uma lata de cacau.

Vi o relógio. Partimos.

O caminho, cheio de barrancas, feitas por constantes e violentas enxurradas, despertou-nos, quando as viaturas, aos solavancos, nos fizeram dar saltos precipitados e encontrões no vizinho do lado.

– Ai o meu rico sim-senhor! – dizia um.

– Aguenta que são ossos de ofício! – concluía outro muito fanfarrão.

A mim apetecia-me gritar com todas as forças para o condutor:

– Pára aí, que quero meter uma costela no sítio...

Apeámos. E, em fila indiana, começámos a calcorrear uma longa vereda, toda enovelada.

Gibril era o guia.

A noite, um pouco fria, era de breu. Cacimbava.

Assim, entre capim, que nos molhava as mãos, arranhando-as, de vez em quando, e que nos tocava a fronte, toda em pensamentos vagos, os olhos, – nunca a gente sabia onde punha os pés: se caíam num buraco ou numa armadilha, se escorregavam estrondosamente ou amachucavam / 109 / na escuridão os inocentes pirilampos que não davam a tempo a sua posição exacta.

Entretanto, a bolanha apareceu-nos com uma estrela longínqua, um pouco gentia. A água por cima dos joelhos gorgolejava, encharcava-nos os pés. (Iriam enxugar-se ao longo das horas de caminho, doendo, talvez, encher-se de bolhas no regresso). Notei em mim que há sempre uma estrela em cada charco para vestir de ouro ou azul a fraqueza e a esperança dos homens. E, por mais de uma hora, a bolanha continuou a perseguir-nos do lado esquerdo com rãs coaxando numa orquestra que embalava a selva, as aves e as serpentes, ora confusa, ora mais límpida.

A marcha era mais vagarosa que qualquer procissão do Senhor dos Passos. É difícil andar numa noite como esta, escura, selvagem. Tão difícil como isto: uma vez, não sei como, andou-se, andou-se e ninguém já dava pelo caminho andado, momentos antes. Somente, ao amanhecer, se deu pelo erro: caminhávamos para o quartel, convencidos de que nos aproximávamos do objectivo.

Não sei. Mas, certamente, Dante não tinha noites tão tenebrosas no seu inferno. Se há um homem que pára, damos todos uns nos outros umas valentes pisadelas, como que para saldar dívidas, encepamos. Aqui damos as mãos. Ou há mesmo quem se guie por meio dum cordel para não se perder dos companheiros. Muitos usam-no atrás preso ao cinturão: uma espécie de rédea, salvo o devido respeito, mas muito útil e prática. Ali, estendemos as mãos, às apalpadelas, quase no desconhecido.

Gibril, Fula de poucas palavras, era o guia. Abria a escuridão.

Numa curva, ao olhar para o lado, despistei-me, afastando-me um pouco do homem que me precedia, o radiotelefonista. Mas, logo, estendi a mão para uma sombra à minha frente e ciciei:

– És tu, Borba?

Não tive resposta. Era um tronco de árvore à minha frente que quebrara quase cerce.

Apressei mais o passo.

O soldado dá todo o esforço com rasgos de abnegação, / 110 / quer seja serrano de Trás-os-Montes ou alentejano habituado à faina dolorosa das ceifas, quer seja menino-bem que, um ano atrás, passeava pelo Chiado, vilas e cidades, o seu ar pedante. Ele aqui vai diante do mistério da floresta e do inimigo traiçoeiro que se esconde, nem sabe o diabo onde, diante do mistério do sangue e do sacrifício. E rude, mas arrojado e destemido, pronto para tudo. Já o Conde de Lippe dizia das nossas tropas: «com quem saiba conduzi-las elas irão a toda a parte e combaterão com quem se quiser; marcharão sem um murmúrio e vivendo apenas de pão e água com um dente de alho por condimento.»

Ao alvorecer, quando apareceu a tabanca, enorme e escondida entre o arvoredo, ouviu-se o tamborilar medonho de um tambor, talvez gasto em batuques, há tempos. Evidente sinal de alarme para o resto da população que ainda vivia naquele coio de bandidos, gritos de às armas para os que as possuíssem.

A tabanca, de mandingas, possuía no exterior pequenas palhotas que eram outros tantos postos de sentinelas.

Feito o cerco em meia-lua, começou a metralha. Ofereciam resistência. Mas a metralha era mais violenta e eficaz do nosso lado.

Chovia a cântaros.

Entrámos na aldeia, cheia de malas e coisas perdidas na fuga apressada. Para mim guardei, quase religiosamente, um exemplar do Corão, o livro sagrado do Islamismo, uma espécie de bíblia escrita pelo profeta de Alá.

O fogo crepitou, bailou com o vento, roeu as árvores e o céu cinzento e o fumo toldou a paisagem.

Uma mulher procurava os seus trapos. Chorava!

E, trotando, num passo desacertado para o meu lado dois burros cor de chumbo, fugiam assustados e, ao verem-nos, estacaram. E para mostrar que tinham bons pulmões, zurraram, orelhas espetadas no fumo, numa fúria agressiva. Parecia que queriam um tiro cada um.

 

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