15 / Set. / 64.
Meia noite.
Meti um pão no bolso e
tomei, de olhos piscos, uma lata de cacau.
Vi o relógio. Partimos.
O caminho, cheio de
barrancas, feitas por constantes e violentas enxurradas, despertou-nos,
quando as viaturas, aos solavancos, nos fizeram dar saltos precipitados
e encontrões no vizinho do lado.
– Ai o meu rico sim-senhor!
– dizia um.
– Aguenta que são ossos de
ofício! – concluía outro muito fanfarrão.
A mim apetecia-me gritar com
todas as forças para o condutor:
– Pára aí, que quero meter
uma costela no sítio...
Apeámos. E, em fila indiana,
começámos a calcorrear uma longa vereda, toda enovelada.
Gibril era o guia.
A noite, um pouco fria, era
de breu. Cacimbava.
Assim, entre capim, que nos
molhava as mãos, arranhando-as, de vez em quando, e que nos tocava a
fronte, toda em pensamentos vagos, os olhos, – nunca a gente sabia onde
punha os pés: se caíam num buraco ou numa armadilha, se escorregavam
estrondosamente ou amachucavam
/ 109 /
na escuridão os inocentes pirilampos que não davam a tempo a sua posição
exacta.
Entretanto, a bolanha
apareceu-nos com uma estrela longínqua, um pouco gentia. A água por cima
dos joelhos gorgolejava, encharcava-nos os pés. (Iriam enxugar-se ao
longo das horas de caminho, doendo, talvez, encher-se de bolhas no
regresso). Notei em mim que há sempre uma estrela em cada charco para
vestir de ouro ou azul a fraqueza e a esperança dos homens. E, por mais
de uma hora, a bolanha continuou a perseguir-nos do lado esquerdo
com rãs coaxando numa orquestra que embalava a selva, as aves e as
serpentes, ora confusa, ora mais límpida.
A marcha era mais vagarosa
que qualquer procissão do Senhor dos Passos. É difícil andar numa noite
como esta, escura, selvagem. Tão difícil como isto: uma vez, não sei
como, andou-se, andou-se e ninguém já dava pelo caminho andado, momentos
antes. Somente, ao amanhecer, se deu pelo erro: caminhávamos para o
quartel, convencidos de que nos aproximávamos do objectivo.
Não sei. Mas, certamente,
Dante não tinha noites tão tenebrosas no seu inferno. Se há um homem que
pára, damos todos uns nos outros umas valentes pisadelas, como que para
saldar dívidas, encepamos. Aqui damos as mãos. Ou há mesmo quem se guie
por meio dum cordel para não se perder dos companheiros. Muitos usam-no
atrás preso ao cinturão: uma espécie de rédea, salvo o devido respeito,
mas muito útil e prática. Ali, estendemos as mãos, às apalpadelas, quase
no desconhecido.
Gibril, Fula de poucas
palavras, era o guia. Abria a escuridão.
Numa curva, ao olhar para o
lado, despistei-me, afastando-me um pouco do homem que me precedia, o
radiotelefonista. Mas, logo, estendi a mão para uma sombra à minha
frente e ciciei:
– És tu, Borba?
Não tive resposta. Era um
tronco de árvore à minha frente que quebrara quase cerce.
Apressei mais o passo.
O soldado dá todo o esforço
com rasgos de abnegação,
/ 110 /
quer seja serrano de Trás-os-Montes ou alentejano habituado à faina
dolorosa das ceifas, quer seja menino-bem que, um ano atrás, passeava
pelo Chiado, vilas e cidades, o seu ar pedante. Ele aqui vai diante do
mistério da floresta e do inimigo traiçoeiro que se esconde, nem sabe o
diabo onde, diante do mistério do sangue e do sacrifício. E rude, mas
arrojado e destemido, pronto para tudo. Já o Conde de Lippe dizia das
nossas tropas: «com quem saiba conduzi-las elas irão a toda a parte e
combaterão com quem se quiser; marcharão sem um murmúrio e vivendo
apenas de pão e água com um dente de alho por condimento.»
Ao alvorecer, quando
apareceu a tabanca, enorme e escondida entre o arvoredo, ouviu-se
o tamborilar medonho de um tambor, talvez gasto em batuques, há tempos.
Evidente sinal de alarme para o resto da população que ainda vivia
naquele coio de bandidos, gritos de às armas para os que as possuíssem.
A tabanca, de
mandingas, possuía no exterior pequenas palhotas que eram outros tantos
postos de sentinelas.
Feito o cerco em meia-lua,
começou a metralha. Ofereciam resistência. Mas a metralha era mais
violenta e eficaz do nosso lado.
Chovia a cântaros.
Entrámos na aldeia, cheia de
malas e coisas perdidas na fuga apressada. Para mim guardei, quase
religiosamente, um exemplar do Corão, o livro sagrado do Islamismo, uma
espécie de bíblia escrita pelo profeta de Alá.
O fogo crepitou, bailou com
o vento, roeu as árvores e o céu cinzento e o fumo toldou a paisagem.
Uma mulher procurava os seus
trapos. Chorava!
E, trotando, num passo
desacertado para o meu lado dois burros cor de chumbo, fugiam assustados
e, ao verem-nos, estacaram. E para mostrar que tinham bons pulmões,
zurraram, orelhas espetadas no fumo, numa fúria agressiva. Parecia que
queriam um tiro cada um.
|