TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 104-107

A CASERNA

Jumbembem, 8 / Set. / 64.

A chuva tamborilava nas telhas, no zinco, e o céu de chumbo, em constantes estremeções, abria-se em rasgões de luz vermelho-alaranjada, para depois se fechar nas pregas duma escuridão fantástica. Relampejava.

À luz mortiça e trémula de candeeiros a petróleo, alguns deles roubados aos bandidos, fazia-se serão. Uns conversavam sobre isto e aquilo e do que mostravam perceber mais era de guerra e mulheres. Jogavam as cartas, contavam anedotas picantes. Outros escreviam cartas familiares, devagar, como tímidos meninos de escola: escolhiam as palavras no fundo da memória, arredondando a letra. Liam e reliam.

Ao fim do dia, os quartos, pequenos, cheiram a bafio e suor e tresandam a fumo e beatas pelo chão. Em cada um vive os momentos livres e dorme uma dúzia de homens, pelo menos, engaiolados em camas incómodas. (Mas já me ia a esquecer que dormimos no chão, aboletados, durante quase dois meses. Houve maus dias. Por vezes, comíamos somente mancarra. Nem sequer pão havia, porque a avioneta não o vinha lançar. E os fumadores tiveram o seu tempo de abstenções. Mas os mais viciados aproveitavam todas as beatas...) Os quartos têm frases pelas paredes em jeito de humor negro e colecções de vedetas que os soldados recortam, com todos / 105 / os cuidados, de algumas revistas e as colam de olhos perdidos em qualquer curva de tentação.

Praguejava-se.

Estirado na minha cama, onde me voltava, amiudadas vezes, como se tivesse remorsos e pecados enroscados na consciência intranquila ou medo de dormir, sentia uma chuva miudinha, desfeita, que entrava a cair-me nos olhos pela janela, onde uma rede rala não conseguia fechar o horizonte.

Do lado o Júlio contava uma história qualquer.

Lá fora a chuva continuava a cair em grossas cordas, bailadas num vento sul que a empurrava de encontro à rede da janela e no forro do quarto passeavam gerações de ratos, corriam, paravam, chiavam. O rio iria outra vez galgar a ponte, o caminho. Iria subir, capaz de levar um jeep na corrente forte ou engolir um homem.

Não conseguia dormir e, de olhos semicerrados, pensava, divagando:

«Esta vida é tudo menos vida. Viver isolado na selva, dentro de arame farpado que nos crispa a alma, entre mil perigos e ameaças – isto ao fim de meses e meses, gasta, definha, enerva, estonteia e vai criando nos ombros uma crosta de estupidez, ao longo dos dias e dos acontecimentos. O esforço é gigantesco e, por vezes, inglório. Destrói-se; fere-se, mata-se e, de vez em quando... morre-se. E custa tanto morrer, quando na terra distante há alguém que nos espera...

– Voltava-me. Espalmava a mão direita sob a face.

«Deus me perdoe! Que me perdoem os pobres e os negros, mas a comida quase me enoja. Sempre a mesma coisa. Ó varinas, quanto eu não dava, hoje, para comer duas ou três sardinhas assadas! E, por acaso, alguém sabe o que é andar assim, galgando distâncias enormes e matos escuros sem fim, vencendo tudo, até a morte? Mas isto, meu Deus, há-de acabar e voltarei contente do dever cumprido, cabeça erguida. Lá longe, há alguém que me espera. Afinal, homens em guerra, somos homens a leste da civilização…»

– Voltei os olhos para o forro. Os ratos corriam, chiavam sempre. E, para me libertar, procurei a lembrança de alguma história que acontecesse comigo, / 106 / quando miliciano em Mafra. Lá parecia brincar-se às guerras, aos cowboys. Lembrava. Chovia.

O homem ali, por mais inteligente que seja, é um autêntico autómato obedecendo à disciplina de ferro, ao horário rigoroso. E sempre a mesma coisa:

«Pronto, meu alferes!»

«Adormeci, meu sargento! Desculpe lá isso...»

«Direita... er! Ordinário... maaaarche!»

Desse tempo ficam-nos sempre proezas e histórias para contar aos amigos e, depois, aos filhos. Tenho-as. Lembrava:

«Uma tarde na Tapada…»

A chuva continuava a cair impetuosa, rasgada pelos trovões.

Um tiro súbito, seguido de rajadas e rebentamentos, interrompeu-me. Seriam eles?

Eram eles.

Deixei-me cair da cama e hesitei, por instantes, se havia de ir como me deitara, se havia de enfiar as calças, o camuflado.

Apagaram-se os candeeiros. Às apalpadelas, enfiei o capacete na cabeça, peguei na G3 e nas cartucheiras e fui para o parapeito, feito de bidões cheios de terra. Apressado, nem dei que ia descalço, nem, tão-pouco, importava. Cuspi uma, duas vezes, na escuridão medonha.

O primeiro tiro partiu o garrafão que um dos sentinelas estava a encher com a água que caía do telhado.

– Safa! Hoje, vêm com pontaria a matar! – exclamou ele quase a gaguejar.

A chuva caía.

– Deixem-me passar – dizia um. – Eles vão ver como elas mordem.

– Despacha-te! Vais matá-los todos, hem?

E, num momento, todos estavam nos postos, de armas a fumegar. E até apareceu um moço nu. E, como desatámos a rir, ele atirou-nos à cara:

– Em tempo de guerra não se limpam armas…

E, num tom mais incisivo:

– Julgo que não estou no meio de mulheres...

Alguns açulavam os terroristas, assobiando-lhes, mandavam-nos passear para casa do diabo mais velho. / 107 /

As rajadas do lado de lá batiam nos bidões, esfolavam a parede por detrás de nós donde se desprendia caliça.

Outros gritavam-lhes:

– Eh, bandido, então, corpo di bó? – berrava o João, um soldado negro, maníaco.

– Mandem mais baixo, cabeças de alho chocho! – gritava, a todos os pulmões, um alentejano.

A chuva caía. E os relâmpagos, em contínuos ziguezagues, iluminavam, cegavam.

Cantou-se mesmo. O hino do Batalhão pairou na noite, em vozes esganiçadas, pouco habituadas a melodias.

– Quer uma cigarrada?

A festa acabava. Era a quarta visita num curto espaço de tempo. Eles abandonavam na fuga carregadores, granadas de mão, de fabrico russo, guardas-de-corpo, amuletos, feitos de chifres. Deixavam rastos de sangue no capim.

Voltei ao quarto. Deitei-me.

Chovia ainda e os ratos continuavam a correr, a chiar no forro. Na casa dos fulas, crianças, transidas de medo, choramingavam, agarradas às mães receosas. Este não é o mundo das crianças, onde tudo é paz e tranquilidade.

Voltei-me.

Vida estúpida. Este também não é o meu mundo.

Mas é um dever. Somos homens a leste...

Era meia-noite. Chovia.

 

Página anterior

Página inicial Página seguinte