Jumbembem, 8 / Set. / 64.
A chuva tamborilava nas
telhas, no zinco, e o céu de chumbo, em constantes estremeções, abria-se
em rasgões de luz vermelho-alaranjada, para depois se fechar nas pregas
duma escuridão fantástica. Relampejava.
À luz mortiça e trémula de
candeeiros a petróleo, alguns deles roubados aos bandidos, fazia-se
serão. Uns conversavam sobre isto e aquilo e do que mostravam perceber
mais era de guerra e mulheres. Jogavam as cartas, contavam anedotas
picantes. Outros escreviam cartas familiares, devagar, como tímidos
meninos de escola: escolhiam as palavras no fundo da memória,
arredondando a letra. Liam e reliam.
Ao fim do dia, os quartos,
pequenos, cheiram a bafio e suor e tresandam a fumo e beatas pelo chão.
Em cada um vive os momentos livres e dorme uma dúzia de homens, pelo
menos, engaiolados em camas incómodas. (Mas já me ia a esquecer que
dormimos no chão, aboletados, durante quase dois meses. Houve maus dias.
Por vezes, comíamos somente mancarra. Nem sequer pão havia, porque a
avioneta não o vinha lançar. E os fumadores tiveram o seu tempo de
abstenções. Mas os mais viciados aproveitavam todas as beatas...) Os
quartos têm frases pelas paredes em jeito de humor negro e colecções de
vedetas que os soldados recortam, com todos
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os cuidados, de algumas revistas e as colam de olhos perdidos em
qualquer curva de tentação.
Praguejava-se.
Estirado na minha cama, onde
me voltava, amiudadas vezes, como se tivesse remorsos e pecados
enroscados na consciência intranquila ou medo de dormir, sentia uma
chuva miudinha, desfeita, que entrava a cair-me nos olhos pela janela,
onde uma rede rala não conseguia fechar o horizonte.
Do lado o Júlio contava uma
história qualquer.
Lá fora a chuva continuava a
cair em grossas cordas, bailadas num vento sul que a empurrava de
encontro à rede da janela e no forro do quarto passeavam gerações de
ratos, corriam, paravam, chiavam. O rio iria outra vez galgar a ponte, o
caminho. Iria subir, capaz de levar um jeep na corrente forte ou engolir
um homem.
Não conseguia dormir e, de
olhos semicerrados, pensava, divagando:
«Esta vida é tudo menos
vida. Viver isolado na selva, dentro de arame farpado que nos crispa a
alma, entre mil perigos e ameaças – isto ao fim de meses e meses, gasta,
definha, enerva, estonteia e vai criando nos ombros uma crosta de
estupidez, ao longo dos dias e dos acontecimentos. O esforço é
gigantesco e, por vezes, inglório. Destrói-se; fere-se, mata-se e, de
vez em quando... morre-se. E custa tanto morrer, quando na terra
distante há alguém que nos espera...
– Voltava-me. Espalmava a
mão direita sob a face.
«Deus me perdoe! Que me
perdoem os pobres e os negros, mas a comida quase me enoja. Sempre a
mesma coisa. Ó varinas, quanto eu não dava, hoje, para comer duas ou
três sardinhas assadas! E, por acaso, alguém sabe o que é andar assim,
galgando distâncias enormes e matos escuros sem fim, vencendo tudo, até
a morte? Mas isto, meu Deus, há-de acabar e voltarei contente do dever
cumprido, cabeça erguida. Lá longe, há alguém que me espera. Afinal,
homens em guerra, somos homens a leste da civilização…»
– Voltei os olhos para o
forro. Os ratos corriam, chiavam sempre. E, para me libertar, procurei a
lembrança de alguma história que acontecesse comigo,
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quando miliciano em Mafra. Lá parecia brincar-se às guerras, aos
cowboys. Lembrava. Chovia.
O homem ali, por mais
inteligente que seja, é um autêntico autómato obedecendo à disciplina de
ferro, ao horário rigoroso. E sempre a mesma coisa:
«Pronto, meu alferes!»
«Adormeci, meu sargento!
Desculpe lá isso...»
«Direita... er! Ordinário...
maaaarche!»
Desse tempo ficam-nos sempre
proezas e histórias para contar aos amigos e, depois, aos filhos.
Tenho-as. Lembrava:
«Uma tarde na Tapada…»
A chuva continuava a cair
impetuosa, rasgada pelos trovões.
Um tiro súbito, seguido de
rajadas e rebentamentos, interrompeu-me. Seriam eles?
Eram eles.
Deixei-me cair da cama e
hesitei, por instantes, se havia de ir como me deitara, se havia de
enfiar as calças, o camuflado.
Apagaram-se os candeeiros.
Às apalpadelas, enfiei o capacete na cabeça, peguei na G3 e nas
cartucheiras e fui para o parapeito, feito de bidões cheios de terra.
Apressado, nem dei que ia descalço, nem, tão-pouco, importava. Cuspi
uma, duas vezes, na escuridão medonha.
O primeiro tiro partiu o
garrafão que um dos sentinelas estava a encher com a água que caía do
telhado.
– Safa! Hoje, vêm com
pontaria a matar! – exclamou ele quase a gaguejar.
A chuva caía.
– Deixem-me passar – dizia
um. – Eles vão ver como elas mordem.
– Despacha-te! Vais matá-los
todos, hem?
E, num momento, todos
estavam nos postos, de armas a fumegar. E até apareceu um moço nu. E,
como desatámos a rir, ele atirou-nos à cara:
– Em tempo de guerra não se
limpam armas…
E, num tom mais incisivo:
– Julgo que não estou no
meio de mulheres...
Alguns açulavam os
terroristas, assobiando-lhes, mandavam-nos passear para casa do diabo
mais velho.
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As rajadas do lado de lá
batiam nos bidões, esfolavam a parede por detrás de nós donde se
desprendia caliça.
Outros gritavam-lhes:
– Eh, bandido, então, corpo
di bó? – berrava o João, um soldado negro, maníaco.
– Mandem mais baixo, cabeças
de alho chocho! – gritava, a todos os pulmões, um alentejano.
A chuva caía. E os
relâmpagos, em contínuos ziguezagues, iluminavam, cegavam.
Cantou-se mesmo. O hino do
Batalhão pairou na noite, em vozes esganiçadas, pouco habituadas a
melodias.
– Quer uma cigarrada?
A festa acabava. Era a
quarta visita num curto espaço de tempo. Eles abandonavam na fuga
carregadores, granadas de mão, de fabrico russo, guardas-de-corpo,
amuletos, feitos de chifres. Deixavam rastos de sangue no capim.
Voltei ao quarto. Deitei-me.
Chovia ainda e os ratos
continuavam a correr, a chiar no forro. Na casa dos fulas, crianças,
transidas de medo, choramingavam, agarradas às mães receosas. Este não é
o mundo das crianças, onde tudo é paz e tranquilidade.
Voltei-me.
Vida estúpida. Este também
não é o meu mundo.
Mas é um dever. Somos homens
a leste...
Era meia-noite. Chovia.
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