Jumbembem, 13 / Junho / 64.
Hoje, pode-se respirar um
pouco mais fundo. Derrubaram-se árvores, capinou-se à volta e o arame
farpado e as armadilhas são um muro forte que ninguém poderá saltar ou
derrubar, venha quem vier. Venha quem vier é o grito gravado, a carvão,
numa parede da caserna, nestes versos coxos:
Terroristas cá do sítio
já tardam cá a chegar.
Venham que os arrebentas
estão mortos por vos matar.
E o dia acorda diferente,
simples, quase bucólico. Há algaraviadas de crianças, de olhos ensonados
e ranho ao canto do nariz, como se fosse uma festa, enquanto as moças,
bamboleando os seios erectos e nus, suam pilando, duas a duas, num ritmo
certo.
Os homens, depois de levarem
as manadas de vacas e os rebanhos para as pastagens próximas, passam o
tempo, quando não saem connosco para o mato que conhecem tão bem como os
dedos, em frias conversas, acocorados, ou, então, deitados em arco, com
ares de príncipes deserdados da sorte, nas camas de rede que eles
suspendem dos troncos das árvores.
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O trabalho das bolanhas
é com as mulheres. Cavam e plantam o arroz, enquanto um ou dois homens
armados vigiam a zona. Os utensílios usados são enxadas muito
rudimentares, primitivas, pois a civilização ainda não deu bons frutos
nesta terra negra de irãs. Temos muito a fazer e não se tente camuflar,
sofismar o peso das responsabilidades. É preciso que se conjuguem todos
os esforços no sentido de arrancar à terra aquilo que deve elevar o
nível de vida das populações. É preciso sacudi-las do seu torpor
hibernizante.
Além duma aldeia Fula que se
recolheu à nossa protecção, vivem connosco dois terroristas recuperados:
o Faustino, que serve de guia, e o Domingos Balanta, que trabalha no
rancho e que, de vez em quando, apanha a sua bebedeira. Depois, é
ouvi-lo a apregoar:
– Água de Lisboa sabe!
E, por vezes reconhece o
efeito do vinho:
– Hoje, Domingos ter
cabeça grande...
Os Fulas trouxeram tudo
consigo. Os unimogs vieram cheios de milhos, baús e velharias, e
todas as coisas possíveis, até as mais insignificantes. O Fula, por
natureza, é avarento, agarrado como um judeu. E o gado transportou para
aqui carradas de moscas que com os mosquitos são a segunda praga cá do
sítio. Claro, a primeira é muito mais perigosa e enervante: os
terroristas.
Às vezes, passam-se horas
brincando com as crianças e ensina-se-lhes as primeiras palavras
portuguesas: bom-dia, boa-tarde. Ensina-se-lhes mesmo a ler. Aos rapazes
e homens o furriel Cabral ensina-lhes a manejar a Mauser.
A tarde cai religiosa e, ao
mesmo tempo, festiva, num bulício cheio de cores vivas, numa alucinante
sugestão de poesia e eternidade.
Depois da habitual refeição
de arroz que vão tirando e comendo com as mãos, embora alguns já se
acostumassem à colher, os crentes (que as mulheres não têm nada a ver
com culto ou religião), pés sobre uma esteira ou sobre uma pele, mas
sempre sobre alguma coisa que os não deixe tocar a terra, fazem as suas
orações a Alá, voltados para o nascente. Sucessivas vezes, erguem os
braços, ajoelham e beijam o chão:
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– Alacobaro, Alacobaro...
No fim deste rito, sentam-se
e rezam um longo rosário de contas, pedindo perdão, sem o menor respeito
humano:
– Alalailá, Alalailá...
Entretanto, os soldados
divertem-se com as bajudas, nem que seja ao som de harmónica de
boca, como sucedeu no dia de S. João. (Só faltou a fogueira tradicional.
Mas aqui era deveras perigoso). Então, é um delírio. Elas batem as
palmas, desfazem-se em ritmos estonteantes: contorcem-se em gestos
acrobáticos, derretem-se, lascivas e frenéticas, escorrendo suores sobre
a pele luzidia.
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