TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 101-103

ARAME FARPADO

Jumbembem, 13 / Junho / 64.

Hoje, pode-se respirar um pouco mais fundo. Derrubaram-se árvores, capinou-se à volta e o arame farpado e as armadilhas são um muro forte que ninguém poderá saltar ou derrubar, venha quem vier. Venha quem vier é o grito gravado, a carvão, numa parede da caserna, nestes versos coxos:

Terroristas cá do sítio
já tardam cá a chegar.
Venham que os arrebentas
estão mortos por vos matar.

E o dia acorda diferente, simples, quase bucólico. Há algaraviadas de crianças, de olhos ensonados e ranho ao canto do nariz, como se fosse uma festa, enquanto as moças, bamboleando os seios erectos e nus, suam pilando, duas a duas, num ritmo certo.

Os homens, depois de levarem as manadas de vacas e os rebanhos para as pastagens próximas, passam o tempo, quando não saem connosco para o mato que conhecem tão bem como os dedos, em frias conversas, acocorados, ou, então, deitados em arco, com ares de príncipes deserdados da sorte, nas camas de rede que eles suspendem dos troncos das árvores. / 102 /

O trabalho das bolanhas é com as mulheres. Cavam e plantam o arroz, enquanto um ou dois homens armados vigiam a zona. Os utensílios usados são enxadas muito rudimentares, primitivas, pois a civilização ainda não deu bons frutos nesta terra negra de irãs. Temos muito a fazer e não se tente camuflar, sofismar o peso das responsabilidades. É preciso que se conjuguem todos os esforços no sentido de arrancar à terra aquilo que deve elevar o nível de vida das populações. É preciso sacudi-las do seu torpor hibernizante.

Além duma aldeia Fula que se recolheu à nossa protecção, vivem connosco dois terroristas recuperados: o Faustino, que serve de guia, e o Domingos Balanta, que trabalha no rancho e que, de vez em quando, apanha a sua bebedeira. Depois, é ouvi-lo a apregoar:

Água de Lisboa sabe!

E, por vezes reconhece o efeito do vinho:

Hoje, Domingos ter cabeça grande...

Os Fulas trouxeram tudo consigo. Os unimogs vieram cheios de milhos, baús e velharias, e todas as coisas possíveis, até as mais insignificantes. O Fula, por natureza, é avarento, agarrado como um judeu. E o gado transportou para aqui carradas de moscas que com os mosquitos são a segunda praga cá do sítio. Claro, a primeira é muito mais perigosa e enervante: os terroristas.

Às vezes, passam-se horas brincando com as crianças e ensina-se-lhes as primeiras palavras portuguesas: bom-dia, boa-tarde. Ensina-se-lhes mesmo a ler. Aos rapazes e homens o furriel Cabral ensina-lhes a manejar a Mauser.

A tarde cai religiosa e, ao mesmo tempo, festiva, num bulício cheio de cores vivas, numa alucinante sugestão de poesia e eternidade.

Depois da habitual refeição de arroz que vão tirando e comendo com as mãos, embora alguns já se acostumassem à colher, os crentes (que as mulheres não têm nada a ver com culto ou religião), pés sobre uma esteira ou sobre uma pele, mas sempre sobre alguma coisa que os não deixe tocar a terra, fazem as suas orações a Alá, voltados para o nascente. Sucessivas vezes, erguem os braços, ajoelham e beijam o chão: / 103 /

Alacobaro, Alacobaro...

No fim deste rito, sentam-se e rezam um longo rosário de contas, pedindo perdão, sem o menor respeito humano:

Alalailá, Alalailá...

Entretanto, os soldados divertem-se com as bajudas, nem que seja ao som de harmónica de boca, como sucedeu no dia de S. João. (Só faltou a fogueira tradicional. Mas aqui era deveras perigoso). Então, é um delírio. Elas batem as palmas, desfazem-se em ritmos estonteantes: contorcem-se em gestos acrobáticos, derretem-se, lascivas e frenéticas, escorrendo suores sobre a pele luzidia.

 

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