TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 98-100

O HOMEM DA BICICLETA

Lamel, 11 / Junho / 64

– Alto!

A palavra fulminou-o, caiu-lhe pesada como um corisco sobre a cabeça, talvez cheia de pensamentos e planos inúteis, quando pedalava num ritmo lento, mas certo, num caminho estreito, incerto.

Desde o romper da aurora sem sol, emboscados, esperávamos pelo tal homem da bicicleta que costumava passar por ali armado, segundo se dizia, quase todos os dias. E uma chuva caia miudinha, a saber a frescuras, nas copas densas que a concentravam em gotas cheias que, de tempos a tempos, humedeciam um ou outro ponto do corpo estendido. A posição era incómoda. E o tempo corria vagaroso como o sol que tentava romper a negridão. E meu entretenimento era matar com pauzitos, apodrecidos nas folhas desfeitas, as formigas que deambulavam rente a mim, furiosas por me ter atravessado no seu caminho calmo, antes que elas entrassem a picar, deixando presa ao corpo uma dor irritante e aguda que perdura, por vezes, bastante tempo.

50... 60 minutos. E o homem sem aparecer (ou os homens). Talvez, tenha adormecido ou resolvido faltar ao serviço nas casas de mato. Não haveria hoje nenhuma coluna a emboscar?

Um bando de rolas levantou célere, como que / 99 / apanhado de surpresa, e estremeceu as folhas e os ramos duma vegetação luxuriante, numa tempestade de ruídos. Levantei os olhos por debaixo do capacete. Mas não era nada. Nem o tal homem da bicicleta.

Continuei a matar as formigas, vingando-me quase da espera prolongada que começava a impacientar, a exasperar mesmo. Entretanto, uma voz, num cicio, interrompeu-me na minha chacina:

– Olhe bandido! – e apontou-mo do lado donde não o esperava.

O homem pedalava descontraidamente. Era ele, certamente, pois quem se serve assim à vontade daqueles caminhos numa zona infestada? Para mais, por ali já não havida tabancas Fulas.

Atravessou a estrada, entrou na vereda. Eu olhava-o, media-o de alto a baixo, perplexo, pois os bandidos não trazem um sinal na testa ou um número nas costas. A arma não a via. Mas também poderia trazê-la enfiada no saco que transportava no suporte. Entrou na zona de morte. Levantei-me rapidamente, dei um passo e gritei-lhe:

– Alto!

A palavra que o podia ter salvo, condenou-o, porque se sentiu cúmplice como tantos outros. Tomado de espanto e ao mesmo tempo dum frio a varar-lhe os ossos, largou a bicicleta, mas os passos iriam tropeçar-lhe no fim do caminho da existência.

– Fogo!

E as balas crivaram-no imediatamente. Caiu como uma pedra. Mas, num estertor febril, ergueu-se. Voltou os olhos para nós, para a vereda. Uns olhos terrivelmente raiados de sangue, negros, por detrás dos quais havia palavras para dizer, mas que não lhe vinham à boca, ligeiramente aberta, e maldições a lançar sobre as nossas cabeças ou, talvez, um grito de perdão.

Eu, como um criminoso, (mas que, de facto, não era) atirei a arma por terra e berrei-lhe:

– Cá fuge! Bó cá fuge!

E chamei o enfermeiro, o Sinésio. Mas era inútil. Ele caíra de bruços. Encheu a boca de terra e a terra ali era sangue. E, rebolando-se, acabou. Estava nu / 100 / porque perdera o fundinho ao fugir e tinha as tripas ao sol. O peito e as pernas escorriam bocas lúgubres de sangue que empastavam.

Cães raquíticos vieram farejar, festejar a morte. Afastei-os, arremessando-lhes uma ou duas pedras. E cuspi duas vezes enojado.

Então, dois homens abriram uma cova com os capacetes a fim de que os abutres não lhe bulissem com o corpo. Pegaram-lhe, estenderam-no na cova, naturalmente baixa, e puseram-lhe do lado direito o pequeno saco que trazia um resto de mancarra, frutos da terra para uma libação sagrada, e esconderam-no, quase religiosamente, no abraço frio e húmido da terra.

 

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