Lamel, 11 / Junho / 64
– Alto!
A palavra fulminou-o,
caiu-lhe pesada como um corisco sobre a cabeça, talvez cheia de
pensamentos e planos inúteis, quando pedalava num ritmo lento, mas
certo, num caminho estreito, incerto.
Desde o romper da aurora sem
sol, emboscados, esperávamos pelo tal homem da bicicleta que costumava
passar por ali armado, segundo se dizia, quase todos os dias. E uma
chuva caia miudinha, a saber a frescuras, nas copas densas que a
concentravam em gotas cheias que, de tempos a tempos, humedeciam um ou
outro ponto do corpo estendido. A posição era incómoda. E o tempo corria
vagaroso como o sol que tentava romper a negridão. E meu entretenimento
era matar com pauzitos, apodrecidos nas folhas desfeitas, as formigas
que deambulavam rente a mim, furiosas por me ter atravessado no seu
caminho calmo, antes que elas entrassem a picar, deixando presa ao corpo
uma dor irritante e aguda que perdura, por vezes, bastante tempo.
50... 60 minutos. E o homem
sem aparecer (ou os homens). Talvez, tenha adormecido ou resolvido
faltar ao serviço nas casas de mato. Não haveria hoje nenhuma coluna a
emboscar?
Um bando de rolas levantou
célere, como que
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apanhado de surpresa, e estremeceu as folhas e os ramos duma vegetação
luxuriante, numa tempestade de ruídos. Levantei os olhos por debaixo do
capacete. Mas não era nada. Nem o tal homem da bicicleta.
Continuei a matar as
formigas, vingando-me quase da espera prolongada que começava a
impacientar, a exasperar mesmo. Entretanto, uma voz, num cicio,
interrompeu-me na minha chacina:
– Olhe bandido! – e
apontou-mo do lado donde não o esperava.
O homem pedalava
descontraidamente. Era ele, certamente, pois quem se serve assim à
vontade daqueles caminhos numa zona infestada? Para mais, por ali já não
havida tabancas Fulas.
Atravessou a estrada, entrou
na vereda. Eu olhava-o, media-o de alto a baixo, perplexo, pois os
bandidos não trazem um sinal na testa ou um número nas costas. A arma
não a via. Mas também poderia trazê-la enfiada no saco que transportava
no suporte. Entrou na zona de morte. Levantei-me rapidamente, dei um
passo e gritei-lhe:
– Alto!
A palavra que o podia ter
salvo, condenou-o, porque se sentiu cúmplice como tantos outros. Tomado
de espanto e ao mesmo tempo dum frio a varar-lhe os ossos, largou a
bicicleta, mas os passos iriam tropeçar-lhe no fim do caminho da
existência.
– Fogo!
E as balas crivaram-no
imediatamente. Caiu como uma pedra. Mas, num estertor febril, ergueu-se.
Voltou os olhos para nós, para a vereda. Uns olhos terrivelmente raiados
de sangue, negros, por detrás dos quais havia palavras para dizer, mas
que não lhe vinham à boca, ligeiramente aberta, e maldições a lançar
sobre as nossas cabeças ou, talvez, um grito de perdão.
Eu, como um criminoso, (mas
que, de facto, não era) atirei a arma por terra e berrei-lhe:
– Cá fuge! Bó cá fuge!
E chamei o enfermeiro, o
Sinésio. Mas era inútil. Ele caíra de bruços. Encheu a boca de terra e a
terra ali era sangue. E, rebolando-se, acabou. Estava nu
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porque perdera o fundinho ao fugir e tinha as tripas ao sol. O peito e
as pernas escorriam bocas lúgubres de sangue que empastavam.
Cães raquíticos vieram
farejar, festejar a morte. Afastei-os, arremessando-lhes uma ou duas
pedras. E cuspi duas vezes enojado.
Então, dois homens abriram
uma cova com os capacetes a fim de que os abutres não lhe bulissem com o
corpo. Pegaram-lhe, estenderam-no na cova, naturalmente baixa, e
puseram-lhe do lado direito o pequeno saco que trazia um resto de
mancarra, frutos da terra para uma libação sagrada, e esconderam-no,
quase religiosamente, no abraço frio e húmido da terra.
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