TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 92-95

ERA ANOITECER QUANDO CHEGÁMOS

Sitató, 27 / Maio / 64.

Acabara de chover e o vento amainava. Do telhado da loja, agora quartel, escorriam as últimas gotas, devagarinho, como as últimas notas de uma canção.

10:30.

Enchera meu cantil de chuva. Depois, meti no bolso um pedacito de pão duro, que a avioneta lançara há dois dias, um tubo de leite condensado e uma pequena lata de marmelada. Havia de chegar tudo para um dia e, talvez, sobrasse ainda.

Saímos. As nuvens desfiavam as teias mais escuras e a lua dava à terra e ao céu uma branquidão tímida, suave.

Eu nunca me dei pelo caminho andado, enorme, nem pelas curvas, nem pela paisagem exuberante. Quando regressei, até me deu a impressão de que até ao amanhecer, fora apenas um sonâmbulo seguindo, passo a passo, o homem que me precedia. O que sei ao certo é que, de quando em quando, tropeçava nalgum tronco ou raiz sem nada dizer. Às vezes, quando fazíamos uma pequena pausa, estendia-me sem ver onde e, pouco depois, adormecia. E até, uma das vezes, nem dei pelas costas molhadas, porque o cantil se entornara. Outros acompanhavam-me ressonando, bandeiras despregadas, e, uma vez, em que o sono não me venceu, ouvi alguém sonhar que tinha em frente, escondido numa árvore, de olhos / 93 / ferozes e brilhantes raiando fogo, um bandido que tentava acertar-lhe em cheio e ele, a tremer de pavor, gritava:

– «Acudam-me... dêem-me munições, senão eu morro. Mas quero-o matar. Tenho que te matar; grande patife!» – E rangia os dentes em desespero.

Ri-me. Mas o desfecho não o sei porque a marcha recomeçou rápida e ele abanou, sacudiu a cabeça, como que a afugentar fantasmas terríveis que o quisessem devorar ou enterrar vivo.

Entretanto, o caminho sem fim (20 Km) acabou. Dali às casas de mato seriam algumas centenas de metros. O Faustino dissera que ficava junto da bolanha e possuíam cem homens armados. (Em geral, os negros não têm a noção de espaço ou quantidade). E, mais a sul, havia também casas de mato para mulheres. E mais dissera com um desplante formidável, quando lhe perguntaram o que é que os bandidos ensinavam. «Não haver maneira do mundo estar direito – dizia ele, repetindo o que ouvira. Achei certo. É verdade.

Porém, a tensão aumentou e o coração começou a matraquear no peito, enquanto eles, de longe, nos flagelavam. Quando se apertou o cerco, destruímos as casas de mato, totalmente vazias, e pelas ervas que por lá vegetavam, notava-se que tinham mudado de pouso, segundo as regras da guerrilha. Mas alguns ficaram abraçados à terra com a morte a roer-lhes o sangue e à espera dos abutres. E fizemos prisioneiras. Tinham ido buscar milho ali perto e, agora, tremiam como varas verdes, sobretudo, as mais novas, que, apesar de lhes termos dado pão, nos olhavam terrivelmente assustadas. Uma delas chorava de perdida, loucamente, e dizia palavras a que ninguém dava ouvidos naquela barafunda de fogo preso às casas de mato, debaixo dum tiroteio confuso.

Ali conheci o Régulo SambeI que tomara parte na operação com a sua gente armada, comandada por um alferes branco. Trazia consigo dois acólitos indispensáveis: um levava-lhe a arma e o outro levava-lhe água. O pior era quando, a toda a pressa, tinha que pedir a arma... Mas já me ia a esquecer dum pormenor engraçado, quase ridículo. É que um dos acólitos transportava também uma cadeira para ele se sentar, quando havia / 94 / algum alto. Que eu saiba não tinha qualquer doença nas pernas, mas sempre era régulo, um régulo abastado e com dezenas de mulheres.

O regresso veio com o sol a pino.

Eu, como muitos, ainda tinha no bolso o bocado de pão e a marmelada, mas o cantil é que já não tinha uma gota. A gente ardia de sede e a roupa, molhada, colava-se ao corpo, fraco e amachucado, a cair para a frente. A gente arrastava-se a coxear e alguns lançavam pragas ao vento, aos ruídos da selva:

– Quem inventou a tropa merecia meia dúzia de balas na pinha chocha!

À frente, a mulher choramingava e, de vez em quando, lançava um olhar para trás, enquanto ia devorando algumas mangas que chegara há pouco com um vara numa tabanca qualquer.

Mais atrás, num caminhar lento e esforçado, o Segura apoiava-se no ombro do soldado fula, o quarenta e seis, pois não quisera que ninguém o trouxesse na maca improvisada com um pano de tenda e duas varas verdes. Ainda faltava galgar longa distância e vinham todos numa lástima.

Alguns, esquecendo quase a dureza do caminho andado e por andar, esquecendo os pés que se desfaziam em bolhas e sangue diziam-lhe:

– Vê, meu alferes, o que fez ter-se casado...

Ele sorriu-se. Mas o mal não vinha desse facto, se bem que nunca se me confessara, mas, sim, da apendicite crónica que o fizera tombar desamparado sobre a G3.

Foi então que os dois patrícios, de Viana, pegando na graça, assentaram arraiais de conversa. Eu recordo-me mais ou menos deste diálogo:

– As mulheres são o diabo.

– Não concordo!

– São, não duvides. Até sabem trair e disfarçar melhor do que ninguém. E derretem-se por moço rico.

– Falas por experiência?

– Falo.

– Tiveste algum dissabor sentimental?

– Tive. Não te lembras?

– Foi a Cremilde que te deixou para se apaixonar pelo carro do brasileiro? / 95 /

– Sim, foi.

– E, então, não há mais mulheres? Elas querem-se livres como os passarinhos...

– Hoje odeio-a e odeio o brasileiro. Às vezes penso vingar-me, mas depois acalmo e reconheço que de nada valeria. E penso que as mulheres são todas iguais. Meço-as pela mesma bitola.

E, depois duma breve pausa, o Artur, numa voz grave, continuou:

– Penso mesmo em ir à fala. Não sou de ferro para suportar tal humilhação.

– Há mais mulheres...

– És uma criança, marinheiro de primeira viagem!

Os pés pareciam ter criado raízes. E a sede era tanta que parecia que tínhamos engolido pontas de fogo.

Eu, a manquejar, ainda tentei apanhar um dos burros que encontrei no caminho, mas, quando ele escoicinhou por três vezes, fiquei desanimado e apeteceu-me fazer-lhe um tiro. Mas, palavra, que até lhe fazia carícias se me trouxesse.

A meio da viagem surgiu uma bolanha com água. Um oásis. Todos se curvaram sobre as poças sujas, barrentas, cheias de ciscos e micróbios a apodrecerem. Encheram-se os cantis. E muitos para matar a secura nem sequer metiam na boca do cantil um lenço ou um papel. Era beber água em grandes quantidades ou, para dizer a verdade, tomar pequenas doses de veneno.

E, depois de um enxame no ter emboscado, o que originou perdermo-nos uns dos outros, chegámos. Era anoitecer. Máscaras duma juventude ferida.

As prisioneiras, sentadas num tronco de árvore, devoravam a sopa e o pão que os soldados lhes davam. E uma delas, ainda de olhos húmidos, contou a história: ela e a outra (e apontou uma mulher nova, de lábios carnudos, que andava grávida) eram mulheres dum Balanta a quem os terroristas espancaram, obrigando-o a agarrar em armas contra o branco. Ele agora estava doente e tinha ficado com uma menina de três meses. E chorava:

Mim ter menina...

Na manhã do dia seguinte foram-se embora, valente farnel à cabeça para a viagem e, decerto, para o bandido doente se é que ele não morreu.

 

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