Sitató, 27 / Maio / 64.
Acabara de chover e o vento
amainava. Do telhado da loja, agora quartel, escorriam as últimas gotas,
devagarinho, como as últimas notas de uma canção.
10:30.
Enchera meu cantil de chuva.
Depois, meti no bolso um pedacito de pão duro, que a avioneta lançara há
dois dias, um tubo de leite condensado e uma pequena lata de marmelada.
Havia de chegar tudo para um dia e, talvez, sobrasse ainda.
Saímos. As nuvens desfiavam
as teias mais escuras e a lua dava à terra e ao céu uma branquidão
tímida, suave.
Eu nunca me dei pelo caminho
andado, enorme, nem pelas curvas, nem pela paisagem exuberante. Quando
regressei, até me deu a impressão de que até ao amanhecer, fora apenas
um sonâmbulo seguindo, passo a passo, o homem que me precedia. O que sei
ao certo é que, de quando em quando, tropeçava nalgum tronco ou raiz sem
nada dizer. Às vezes, quando fazíamos uma pequena pausa, estendia-me sem
ver onde e, pouco depois, adormecia. E até, uma das vezes, nem dei pelas
costas molhadas, porque o cantil se entornara. Outros acompanhavam-me
ressonando, bandeiras despregadas, e, uma vez, em que o sono não me
venceu, ouvi alguém sonhar que tinha em frente, escondido numa árvore,
de olhos
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ferozes e brilhantes raiando fogo, um bandido que tentava acertar-lhe em
cheio e ele, a tremer de pavor, gritava:
– «Acudam-me... dêem-me
munições, senão eu morro. Mas quero-o matar. Tenho que te matar; grande
patife!» – E rangia os dentes em desespero.
Ri-me. Mas o desfecho não o
sei porque a marcha recomeçou rápida e ele abanou, sacudiu a cabeça,
como que a afugentar fantasmas terríveis que o quisessem devorar ou
enterrar vivo.
Entretanto, o caminho sem
fim (20 Km) acabou. Dali às casas de mato seriam algumas centenas de
metros. O Faustino dissera que ficava junto da bolanha e possuíam cem
homens armados. (Em geral, os negros não têm a noção de espaço ou
quantidade). E, mais a sul, havia também casas de mato para mulheres. E
mais dissera com um desplante formidável, quando lhe perguntaram o que é
que os bandidos ensinavam. «Não haver maneira do mundo estar direito –
dizia ele, repetindo o que ouvira. Achei certo. É verdade.
Porém, a tensão aumentou e o
coração começou a matraquear no peito, enquanto eles, de longe, nos
flagelavam. Quando se apertou o cerco, destruímos as casas de mato,
totalmente vazias, e pelas ervas que por lá vegetavam, notava-se que
tinham mudado de pouso, segundo as regras da guerrilha. Mas alguns
ficaram abraçados à terra com a morte a roer-lhes o sangue e à espera
dos abutres. E fizemos prisioneiras. Tinham ido buscar milho ali perto
e, agora, tremiam como varas verdes, sobretudo, as mais novas, que,
apesar de lhes termos dado pão, nos olhavam terrivelmente assustadas.
Uma delas chorava de perdida, loucamente, e dizia palavras a que ninguém
dava ouvidos naquela barafunda de fogo preso às casas de mato, debaixo
dum tiroteio confuso.
Ali conheci o Régulo SambeI
que tomara parte na operação com a sua gente armada, comandada por um
alferes branco. Trazia consigo dois acólitos indispensáveis: um
levava-lhe a arma e o outro levava-lhe água. O pior era quando, a toda a
pressa, tinha que pedir a arma... Mas já me ia a esquecer dum pormenor
engraçado, quase ridículo. É que um dos acólitos transportava também uma
cadeira para ele se sentar, quando havia
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algum alto. Que eu saiba não tinha qualquer doença nas pernas, mas
sempre era régulo, um régulo abastado e com dezenas de mulheres.
O regresso veio com o sol a
pino.
Eu, como muitos, ainda tinha
no bolso o bocado de pão e a marmelada, mas o cantil é que já não tinha
uma gota. A gente ardia de sede e a roupa, molhada, colava-se ao corpo,
fraco e amachucado, a cair para a frente. A gente arrastava-se a coxear
e alguns lançavam pragas ao vento, aos ruídos da selva:
– Quem inventou a tropa
merecia meia dúzia de balas na pinha chocha!
À frente, a mulher
choramingava e, de vez em quando, lançava um olhar para trás, enquanto
ia devorando algumas mangas que chegara há pouco com um vara numa
tabanca qualquer.
Mais atrás, num caminhar
lento e esforçado, o Segura apoiava-se no ombro do soldado fula, o
quarenta e seis, pois não quisera que ninguém o trouxesse na maca
improvisada com um pano de tenda e duas varas verdes. Ainda faltava
galgar longa distância e vinham todos numa lástima.
Alguns, esquecendo quase a
dureza do caminho andado e por andar, esquecendo os pés que se desfaziam
em bolhas e sangue diziam-lhe:
– Vê, meu alferes, o que fez
ter-se casado...
Ele sorriu-se. Mas o mal não
vinha desse facto, se bem que nunca se me confessara, mas, sim, da
apendicite crónica que o fizera tombar desamparado sobre a G3.
Foi então que os dois
patrícios, de Viana, pegando na graça, assentaram arraiais de conversa.
Eu recordo-me mais ou menos deste diálogo:
– As mulheres são o diabo.
– Não concordo!
– São, não duvides. Até
sabem trair e disfarçar melhor do que ninguém. E derretem-se por moço
rico.
– Falas por experiência?
– Falo.
– Tiveste algum dissabor
sentimental?
– Tive. Não te lembras?
– Foi a Cremilde que te
deixou para se apaixonar pelo carro do brasileiro?
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– Sim, foi.
– E, então, não há mais
mulheres? Elas querem-se livres como os passarinhos...
– Hoje odeio-a e odeio o
brasileiro. Às vezes penso vingar-me, mas depois acalmo e reconheço que
de nada valeria. E penso que as mulheres são todas iguais. Meço-as pela
mesma bitola.
E, depois duma breve pausa,
o Artur, numa voz grave, continuou:
– Penso mesmo em ir à fala.
Não sou de ferro para suportar tal humilhação.
– Há mais mulheres...
– És uma criança, marinheiro
de primeira viagem!
Os pés pareciam ter criado
raízes. E a sede era tanta que parecia que tínhamos engolido pontas de
fogo.
Eu, a manquejar, ainda
tentei apanhar um dos burros que encontrei no caminho, mas, quando ele
escoicinhou por três vezes, fiquei desanimado e apeteceu-me fazer-lhe um
tiro. Mas, palavra, que até lhe fazia carícias se me trouxesse.
A meio da viagem surgiu uma
bolanha com água. Um oásis. Todos se curvaram sobre as poças
sujas, barrentas, cheias de ciscos e micróbios a apodrecerem.
Encheram-se os cantis. E muitos para matar a secura nem sequer metiam na
boca do cantil um lenço ou um papel. Era beber água em grandes
quantidades ou, para dizer a verdade, tomar pequenas doses de veneno.
E, depois de um enxame no
ter emboscado, o que originou perdermo-nos uns dos outros, chegámos. Era
anoitecer. Máscaras duma juventude ferida.
As prisioneiras, sentadas
num tronco de árvore, devoravam a sopa e o pão que os soldados lhes
davam. E uma delas, ainda de olhos húmidos, contou a história: ela e a
outra (e apontou uma mulher nova, de lábios carnudos, que andava
grávida) eram mulheres dum Balanta a quem os terroristas espancaram,
obrigando-o a agarrar em armas contra o branco. Ele agora estava doente
e tinha ficado com uma menina de três meses. E chorava:
– Mim ter menina...
Na manhã do dia seguinte
foram-se embora, valente farnel à cabeça para a viagem e, decerto, para
o bandido doente se é que ele não morreu.
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