TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 89-91

PONTE DA VARELA

Bafatá, 24 / Maio / 64.

Meia-noite.

As luzes debruçaram-se, caíram mesmo amarelecidas no cais molhado, na água lodosa do rio.

Descemos. Os capacetes escorriam beirais nos ombros. Baixei ao porão. Mas a um calor fétido e irritante preferi subir para o costado e continuar a sentir a chuva a varar-me os ossos com certa violência. E, quando o batelão se fez ao largo, vi como a cidade é pequenina, e se adivinhava agora num negrume confrangedor pelos candeeiros e meia dúzia de anúncios. A cidade perdeu-se longe, térrea, quase parada, à espera de mãos vigorosas que a façam nascer da apagada e vil tristeza com que se veste há muito, e, a estas horas, de ruas desertas. Porém, nela aprendi – nas escolas e na igreja, nas casas comerciais e nas fábricas, nas funções administrativas, enfim, no seu dia-a-dia monótono – o milagre português: o multirracialismo. Para o metropolitano a cor é apenas acidente na pele das gentes. Portugal é sem dúvida o país menos rácico do mundo.

Mas amanheceu.

O rio agora apertava e avistaram-se os restos de uma ponte que caíra. Era a ponte da Varela, diziam os negros. Uma dezena de homens, a postos, apontou as metralhadoras ao lado direito. Os restantes desceram ao porão. Contra o costume, nem um tiro. / 90 /

– Acima! Vamos a subir!

E, então, passei-me para o outro batelão que seguia amarrado, carregado de viaturas e material vário, e deitei-me sobre um pano de tenda, debaixo dum unimog, a ler um livro de cowboys. Mas o noventa e seis interrompeu-me a leitura. Trazia o cantil na mão.

– Quer uma golada de vinho?

– Não!

Mas ele insistiu:

– Aproveitar é enquanto há. E mais vale uma golada no estômago do que duas no cantil. Aproveitar é enquanto somos vivos. O dia de amanhã é sempre incerto...

– Pensas em morrer? Um valente não morre...

– Os heróis também morrem.

Aceitei:

– Seja à tua saúde, à nossa saúde, e à tua boa pontaria.

– Assim com uns copos até dá vontade de andar à porrada com os tiços. O medo foge-nos mais e as mágoas esquecem.

E, passando-lhe o cantil, agradeci:

– Coragem, meu valente!

Ele sentou-se a olhar a margem.

Então, quis saber se ele tinha noiva. Ele puxou da carteira, sorrindo. Toquei-lhe numa doce ferida. Mostrou-me a fotografia:

– É um mimo de rapariga!

Mónica tem os cabelos pretos, os olhos pretos, molhados de ternura, desabrochando em fogo e um sorriso breve se abre numa boca tímida. E os seios, de pequenos, parecem querer furar o vestido cor-de-rosa.

E dando-lhe uma palmada nas costas:

– Ela só merece um homem valente como tu!

Ele sorriu e repetiu:

– É um encanto de rapariga e um bom partido...

Ele perdeu-se então na poesia verde da margem espreguiçada ao sol, num sonho quente de ter um dia, quando regressar, a Mónica a seu lado, nos seus braços, longe da guerra. E eu tornei a viajar-me nos caminhos da minha porta. / 91 /

E o dia correu igual até que, à noitinha, um crocodilo apareceu na margem a espreguiçar-se. Debrucei-me para pegar na arma, mas, ao erguer-me, dei com os olhos na margem deserta.

– Então que quer?! Um caçador quer-se lesto...

Mais além, vieram vozes da terra que quebraram a noite, a monotonia. Eram crianças que falavam para os negros da embarcação e lhes davam mantenhas (o poucochinho que percebi).

Jantei. E o tempo correu no rio, no escuro e na vida, com aquela caixa de papelão que deitei fora e agora fugia, carregada de estrelas e azul, não sei para onde. E a noite continuou a divagar nos meus olhos e nos meus ombros, até que acordei ancorado ao largo de Bambadinca, porque a maré estava na vazante. E ergui-me ao sol claro com uma gazela correndo timidamente. E gostei, sobretudo, daquele poema de acácia florida num céu de vermelho encanto, vermelho, mas suave, a namorar aqueles poucos metros de terra encarquilhada.

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Nota – A parte assinalada a amarelo é considerado pelo censor como «muito bom».

 

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