Bafatá, 24 / Maio / 64.
Meia-noite.
As luzes debruçaram-se,
caíram mesmo amarelecidas no cais molhado, na água lodosa do rio.
Descemos. Os capacetes
escorriam beirais nos ombros. Baixei ao porão. Mas a um calor fétido e
irritante preferi subir para o costado e continuar a sentir a chuva a
varar-me os ossos com certa violência. E, quando o batelão se fez ao
largo, vi como a cidade é pequenina, e se adivinhava agora num negrume
confrangedor pelos candeeiros e meia dúzia de anúncios. A cidade
perdeu-se longe, térrea, quase parada, à espera de mãos vigorosas que a
façam nascer da apagada e vil tristeza com que se veste há muito, e, a
estas horas, de ruas desertas. Porém, nela aprendi – nas escolas e na
igreja, nas casas comerciais e nas fábricas, nas funções
administrativas, enfim, no seu dia-a-dia monótono –
o milagre português: o
multirracialismo. Para o metropolitano a cor é apenas acidente na pele
das gentes. Portugal é sem dúvida o país menos rácico do mundo.
Mas amanheceu.
O rio agora apertava e
avistaram-se os restos de uma ponte que caíra. Era a ponte da Varela,
diziam os negros. Uma dezena de homens, a postos, apontou as
metralhadoras ao lado direito. Os restantes desceram ao porão. Contra o
costume, nem um tiro.
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– Acima! Vamos a subir!
E, então, passei-me para o
outro batelão que seguia amarrado, carregado de viaturas e material
vário, e deitei-me sobre um pano de tenda, debaixo dum unimog, a
ler um livro de cowboys. Mas o noventa e seis interrompeu-me a leitura.
Trazia o cantil na mão.
– Quer uma golada de vinho?
– Não!
Mas ele insistiu:
– Aproveitar é enquanto há.
E mais vale uma golada no estômago do que duas no cantil. Aproveitar é
enquanto somos vivos. O dia de amanhã é sempre incerto...
– Pensas em morrer? Um
valente não morre...
– Os heróis também morrem.
Aceitei:
– Seja à tua saúde, à nossa
saúde, e à tua boa pontaria.
– Assim com uns copos até dá
vontade de andar à porrada com os tiços. O medo foge-nos mais e as
mágoas esquecem.
E, passando-lhe o cantil,
agradeci:
– Coragem, meu valente!
Ele sentou-se a olhar a
margem.
Então, quis saber se ele
tinha noiva. Ele puxou da carteira, sorrindo. Toquei-lhe numa doce
ferida. Mostrou-me a fotografia:
– É um mimo de rapariga!
Mónica tem os cabelos
pretos, os olhos pretos, molhados de ternura, desabrochando em fogo e um
sorriso breve se abre numa boca tímida. E os seios, de pequenos, parecem
querer furar o vestido cor-de-rosa.
E dando-lhe uma palmada nas
costas:
– Ela só merece um homem
valente como tu!
Ele sorriu e repetiu:
– É um encanto de rapariga e
um bom partido...
Ele perdeu-se então na
poesia verde da margem espreguiçada ao sol, num sonho quente de ter um
dia, quando regressar, a Mónica a seu lado, nos seus braços, longe da
guerra. E eu tornei a viajar-me nos caminhos da minha porta.
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E o dia correu igual até
que, à noitinha, um crocodilo apareceu na margem a espreguiçar-se.
Debrucei-me para pegar na arma, mas, ao erguer-me, dei com os olhos na
margem deserta.
– Então que quer?! Um
caçador quer-se lesto...
Mais além, vieram vozes da
terra que quebraram a noite, a monotonia. Eram crianças que falavam para
os negros da embarcação e lhes davam mantenhas (o poucochinho que
percebi).
Jantei. E o tempo correu no
rio, no escuro e na vida, com aquela caixa de papelão que deitei fora e
agora fugia, carregada de estrelas e azul, não sei para onde. E a noite
continuou a divagar nos meus olhos e nos meus ombros, até que acordei
ancorado ao largo de Bambadinca, porque a maré estava na vazante. E
ergui-me ao sol claro com uma gazela correndo timidamente. E gostei,
sobretudo, daquele poema de acácia florida num céu de vermelho encanto,
vermelho, mas suave, a namorar aqueles poucos metros de terra
encarquilhada.
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Nota
– A parte assinalada a
amarelo é considerado pelo censor como «muito bom».
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