TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 79-82

HISTÓRIA QUE PODIA SER TRISTE

As numerosas casas de mato ardiam em labaredas pavorosas, subindo a altura das árvores, desfazendo-se em nuvens negras de fumo que o vento levava. Eram grandes e no centro possuíam uma ampla parada para instrução. Na secretaria, rimas de papéis: cartas, panfletos, fotografias – desfaziam-se em cinza, enquanto a máquina de escrever, numa explosão, perdeu todas as teclas, todas as letras. Os tanques para lavagem esfacelavam-se e a água com as explosões de granadas era um repuxo, misturado de pedras no ar. Longas casernas, cheias de camas com mosquiteiros, quartos com cabides donde pendiam colares de todas as cores e roupas de mulheres e esplanadas com mesas e cadeiras toscas, à sombra de grandes árvores, a alfaiataria – tudo era devorado pelas chamas, acompanhadas de milhares de ruídos.

Foi então que rebentou meia hora de tiroteio feroz com o apoio dos T6. Mas, ao saírem, apressadamente, do meio das chamas, não fossem cercados, nesta confusão de tiros, ruídos e fogo, dois paraquedistas perderam-se. E, quanto mais eles fizeram para se juntar a outras forças, cirandando dum lado para outro, mais se perdiam e afastavam, desnorteando-se.

Uma voz roufenha, trémula, notando-se mal as palavras, foi lançada no espaço:

– Milhafre! Milhafre! Aqui B2...

Um silêncio pesado prolongou-se como um pesadelo / 80 / enorme, infindável. Deitados, espreitavam por todos os lados. Mas seria que o piloto não ouvia o seu posto? Teriam de ficar ali quietos sem um pensamento, uma ideia que os pudesse salvar, sem tentar até à última esperança? Não! Enquanto houver vida há esperança, pensavam, e para mais tinham um rádio nas mãos.

– Pedante! Pedante! Aqui B2...

Novo calafrio. Ninguém os ouvia:

– Milhafre! Milhafre! Aqui B2...

E, num instante, olharam-se com um leve sorriso e colaram bem o ouvido ao auscultador para se certificarem bem, como se tudo aquilo fosse impossível, mentira. E ouviram:

– B2! Milhafre chama B2... Um deles respondeu:

– Aqui B2... Informo que estou perdido e peço que me oriente e me dê uma direcção para sair da mata.

– OK.! OK.!. Mas se tiver uma granada de fumos, lance-a, quando eu estiver ligeiramente sobre o local.

– Correcto, Milhafre!

Então, um dos homens puxou uma granada do bolso, mas tremia como uma vara verde. E pensava se não seria denunciar a posição ao inimigo? E que fariam dois homens sós com meia dúzia de carregadores? Mas era preciso tentar, fosse tudo por Deus.

– Milhafre! Aqui B2... Agora... Agora... Vou atirar a granada.

E uma mancha de fumo negro passou além das copas das árvores. E o T6 que os sobrevoava, transmitia:

– B2! B2! Vou picar sobre vocês... Sigam a direcção que eu tomar. Daqui à orla da mata são uns trezentos metros.

E, continuadas vezes, ia e vinha.

– Pedante! Pedante! Aqui Milhafre... Os homens foram localizados.

Mas mal tinham andado uns 50 m avistaram alguns bandidos de armas na mão, indo e vindo. O sangue sumiu-se-lhes e, como condenados, esconderam-se o melhor possível. Cronometraram o tempo gasto em cada ida e vinda: 40, 60... 80 segundos.

– Milhafre! Milhafre! Temos inimigo à vista… / 81 /

– OK.! OK.!

E olharam-se mutuamente, como se cada um tivesse a intenção de dizer alguma coisa ao outro. Os olhos dos negros brilhavam entre a verdura, faiscando como olhos de cão em noite escura, faziam doer-lhes, apertar-lhes o coração. Apetecia-lhes fazer pontaria certeira. Levaram mesmo a arma à cara, quando eles voltaram costas, mas, num instante, como que electrizados por uma ideia melhor, baixaram as G3. E pensavam que se ali houvesse ao menos mais três perdidos, seria um para cada um! Seria uma boa caçada, não haja dúvida... Mas assim! É certo que dois tiros seriam dois mortos estendidos de bruços naquele caminho. Mas os outros três? E não haveria por ali mais bandidos?

Os negros voltaram costas. Erguendo sucessivas vezes a cabeça e espreitando, os companheiros começaram a recuar de gatas, até que os deixaram de ver.

Porém, de repente, um bando de aves, grasnando, buliu com a selva, agitou-a. E eles gelaram de novo. Caíram de bruços. E, rodando meia volta, ficaram deitados a olhar para a vereda, onde os negros tinham estacado de espanto e receio. Os olhos, quase furiosos, enervavam-nos. Tremiam. Os bandidos deram mesmo dois, três passos, vasculharam em redor.

Os paraquedistas ficaram atónitos, sem palavra, olharam-se. Seria aquela a sua hora? Meteram a arma ao ombro, numa posição firme e decidida, e rodaram a patilha para rajada. Se eles viessem, tinham que ser rápidos e certeiros, seguros do empreendimento. Se eles viessem, estavam tramados. Talvez, fossem feitos em merda quando estivessem a pouca distância. E, depois, fugiriam livres, seguindo sempre a direcção dada pelo T6 que os sobrevoava. E, quietos como um coelho descoberto por caçador ágil e astuto, parecia-lhes que tinham passado longas horas, mas, volvidos cinco minutos, quando os bandidos recomeçaram a sua rotina, eles, deixando cair as G3 em alto-arma, recomeçaram a fuga vagarosa.

Mas, passados poucos minutos, avistaram-nos de novo. Já era azar! E dois deles apontavam na sua direcção, vagamente perplexos, como se vissem alguma coisa. Deitados, mal se ouvia a respiração. Tremiam dos pés / 82 / à cabeça e pensaram que tinham sido descobertos. E o pensamento dizia-lhes: "se ao menos fôssemos cinco. Palavra, seriam uma vez uns bandidos...»

Um deles olhava o relógio: 40, 50... 60... 80... Mas, de novo, os negros voltaram costas.

E, começando a caminhar por largo, seguiram a direcção de Milhafre que dizia:

– B2! B2! Faltam 50... 20 metros.

Os olhos brilhavam-lhes agora duma alegria enorme, como que sorrindo duma vitória retumbante.

– Obrigado, Milhafre! Obrigado!

 

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