TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 83-85

ESCREVO DA TRINCHEIRA

Como, 15 / Março / 64.

Escrevo do meu abrigo, onde o dia é longo e a noite dolorosa, quase uma eternidade. No princípio sofria o cacimbo, mas olhava o céu azul, tropical, a lua, as estrelas e um satélite vagabundo riscando os espaços ou mesmo um avião desconhecido, voando alto.

Hoje, não sofro o cacimbo, mas também não vejo as estrelas. A guerra esconde-nos as estrelas e faz-nos selvagens. Um tecto feito de troncos de palmeira, coberto de meio metro de terra, pesa, dói-me, e sinto-me um condenado num exílio. Enfim, um abrigo à prova de morteiro, porque, de vez em quando, eles pregam-nos uns sustos valentes.

Aqui, os dias são longos, mas a vida, às vezes, parece -nos tão curta, presa apenas duma bala e dum segundo.

Tem 60 dias o meu abrigo. Da seteira larga olho, apreensivo, o dia seguinte, a mata densa e cheia de segredos. E há dias perguntei a mim mesmo pelas mulheres, velhos e crianças. Sei que um dia foi morta uma mulher que trazia nas mãos alguns carregadores e acompanhava um homem alto e armado. Talvez, servisse de municiador, pois sabe-se que há bajudas com instrução militar. Miúdos, só encontrámos um, o Tamba, que sempre barafusta, rezinga e choraminga, quando alguém lhe faz mimos. E o Batalhão pensa mandá-lo para a Metrópole. / 84 / O Tamba choraminga. Compreendo-o. É que nós somos uns intrusos no mundo da criança. E os outros?

Aqui, sofro e rezo e, quanta vez, dedo no gatilho e fronte a escaldar: «Salve-Rainha... a vós bradamos, os degredados, filhos de Eva, a vós suspiramos gemendo e chorando neste vale de lágrimas...» E, sobretudo, espero. Mas custa tanto esperar, quando o caminho nos sabe a fel de calvários, desespero e suor. E custa tanto esperar no futuro, quando a guerra nos proíbe a paz e os sonhos, quando as esperanças parecem sem esperança e sem remédio. Mas é preciso esperar. E espero dias mais claros sem nuvens de sangue e pólvora.

Aqui, não me acontece poesia, apenas, infernos vivos, mas há dias fiquei maravilhado, quando uma ovelha pariu. Uma ovelha que alguém apanhara, quando chegou. Passadas horas, o bebé português por direito de asilo, duns olhos vivos de criança, vestido dum pêlo preto e branco e trazendo ao pescoço um colar vermelho, pulava, brincava com a mãe, dando-lhe cabeçadas cegas nas tetas túmidas. O colar vermelho foi-lhe posto pelo Laia e, hoje, é uma criança cheia de mimos nos braços de muitos.

Aqui, música não há. Apenas, umas notas secas, desconcertantes, desde que me deram um tambor pesado, feito de pele de boi, e me comecei a treinar para baterista. O quinhentos trouxe-o, uma manhã, dum salão terrorista, onde estava abandonado no centro. (Também para eles não era tempo de folguedos). Tiveram azar! Demos-lhe cabo do salão e da orquestra. Mas não o posso tocar ao ar livre, pois, a cada pancada no couro que ressoa longe, da mata vem uma bala perdida ou uma rajada.

E por que não falo das minhas barbas?

Mas é melhor não falar) porque tenho medo de mim próprio. Acho-me um vagabundo, cigano das ruas de todos os países, de cabelo longo e despenteado, caído sobre a testa e as orelhas. Talvez, hoje, a minha mãe não me conhecesse, ou, então, me julgasse um filho pródigo que, por longes, desbaratou as moedas que levava no bolso e os verdes anos que levava gravados no rosto. Sou quase outro. Nem a mim hoje me conheço e se não sentisse os ossos a doerem-me à flor da pele, nem diria que era eu. E, se não sentisse a fome a devorar-me a / 85 / boca, diria até que já morri. Mas é tão poético cair o pão do céu, do Dornier, como maná num deserto, em sacos brancos que caem pesados como pedras, mas que trazem o pão que falta.

Hoje, é domingo a cair na noite. Tivemos Missa, como antigamente nas manhãs das grandes batalhas. O altar era feito com duas caixas de cerveja e montado por detrás da casa velha a ruir. De tronco nu ou descalços, mas alma cheia de esperança nos desígnios eternos, todos quantos ali estavam confiavam ao Senhor dos Exércitos as suas angústias, as horas más, as vitórias e as derrotas, as saudades da terra e da família, da noiva...

Deus desceu à guerra para a paz.

 

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