Como, 15 / Março / 64.
Escrevo do meu abrigo, onde
o dia é longo e a noite dolorosa, quase uma eternidade. No princípio
sofria o cacimbo, mas olhava o céu azul, tropical, a lua, as estrelas e
um satélite vagabundo riscando os espaços ou mesmo um avião
desconhecido, voando alto.
Hoje, não sofro o cacimbo,
mas também não vejo as estrelas. A guerra esconde-nos as estrelas e
faz-nos selvagens. Um tecto feito de troncos de palmeira, coberto de
meio metro de terra, pesa, dói-me, e sinto-me um condenado num exílio.
Enfim, um abrigo à prova de morteiro, porque, de vez em quando, eles
pregam-nos uns sustos valentes.
Aqui, os dias são longos,
mas a vida, às vezes, parece -nos tão curta, presa apenas duma bala e
dum segundo.
Tem 60 dias o meu abrigo. Da
seteira larga olho, apreensivo, o dia seguinte, a mata densa e cheia de
segredos. E há dias perguntei a mim mesmo pelas mulheres, velhos e
crianças. Sei que um dia foi morta uma mulher que trazia nas mãos alguns
carregadores e acompanhava um homem alto e armado. Talvez, servisse de
municiador, pois sabe-se que há bajudas com instrução militar.
Miúdos, só encontrámos um, o Tamba, que sempre barafusta, rezinga e
choraminga, quando alguém lhe faz mimos. E o Batalhão pensa mandá-lo
para a Metrópole.
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O Tamba choraminga. Compreendo-o. É que nós somos uns intrusos no mundo
da criança. E os outros?
Aqui, sofro e rezo e, quanta
vez, dedo no gatilho e fronte a escaldar: «Salve-Rainha... a vós
bradamos, os degredados, filhos de Eva, a vós suspiramos gemendo e
chorando neste vale de lágrimas...» E, sobretudo, espero. Mas custa
tanto esperar, quando o caminho nos sabe a fel de calvários, desespero e
suor. E custa tanto esperar no futuro, quando a guerra nos proíbe a paz
e os sonhos, quando as esperanças parecem sem esperança e sem remédio.
Mas é preciso esperar. E espero dias mais claros sem nuvens de sangue e
pólvora.
Aqui, não me acontece
poesia, apenas, infernos vivos, mas há dias fiquei maravilhado, quando
uma ovelha pariu. Uma ovelha que alguém apanhara, quando chegou.
Passadas horas, o bebé português por direito de asilo, duns olhos vivos
de criança, vestido dum pêlo preto e branco e trazendo ao pescoço um
colar vermelho, pulava, brincava com a mãe, dando-lhe cabeçadas cegas
nas tetas túmidas. O colar vermelho foi-lhe posto pelo Laia e, hoje, é
uma criança cheia de mimos nos braços de muitos.
Aqui, música não há. Apenas,
umas notas secas, desconcertantes, desde que me deram um tambor pesado,
feito de pele de boi, e me comecei a treinar para baterista. O
quinhentos trouxe-o, uma manhã, dum salão terrorista, onde estava
abandonado no centro. (Também para eles não era tempo de folguedos).
Tiveram azar! Demos-lhe cabo do salão e da orquestra. Mas não o posso
tocar ao ar livre, pois, a cada pancada no couro que ressoa longe, da
mata vem uma bala perdida ou uma rajada.
E por que não falo das
minhas barbas?
Mas é melhor não falar)
porque tenho medo de mim próprio. Acho-me um vagabundo, cigano das ruas
de todos os países, de cabelo longo e despenteado, caído sobre a testa e
as orelhas. Talvez, hoje, a minha mãe não me conhecesse, ou, então, me
julgasse um filho pródigo que, por longes, desbaratou as moedas que
levava no bolso e os verdes anos que levava gravados no rosto. Sou quase
outro. Nem a mim hoje me conheço e se não sentisse os ossos a doerem-me
à flor da pele, nem diria que era eu. E, se não sentisse a fome a
devorar-me a
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boca, diria até que já morri. Mas é tão poético cair o pão do céu, do
Dornier, como maná num deserto, em sacos brancos que caem pesados como
pedras, mas que trazem o pão que falta.
Hoje, é domingo a cair na
noite. Tivemos Missa, como antigamente nas manhãs das grandes batalhas.
O altar era feito com duas caixas de cerveja e montado por detrás da
casa velha a ruir. De tronco nu ou descalços, mas alma cheia de
esperança nos desígnios eternos, todos quantos ali estavam confiavam ao
Senhor dos Exércitos as suas angústias, as horas más, as vitórias e as
derrotas, as saudades da terra e da família, da noiva...
Deus desceu à guerra para a
paz.
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