Como, 24 / Fev. / 64.
O Fuzileiro disse:
– Não tarda a encalharmos!
O facto feriu-nos mais do
que o sol que rebentava em estilhaços de fogo na LD.
A maré vazava e a água punha
a descoberto um imenso areal, coberto de conchas. Longe, à esquerda, o
Vouga tornava-se quase agressivo contra a calma do mar e do céu molhado
de azul. Em frente, adivinhava-se a praia, a base, onde aterrava um DO.
Doía-nos aquela distância: o caminho da véspera emperrara-nos os
músculos e a noite, mal dormida, aos montes, num chão duro quebrara-nos
o resto dos ossos. (Quando a FAP bombardeava a mata, lembro-me de ter
olhado a lua a afogar-se no rio, no lodo, e achei-a triste, tão triste
como eu).
Há quarenta dias que o mundo
para nós é a incerteza da hora seguinte a devorar-nos a fonte
atormentada. O mundo para nós é de luta, uma terra de sangue e fogo. Há
refeições em branco, porque nada apetece senão a paz, o regresso. Há
pesadelos e estonteamentos, cansaço. Uma grande parte da tropa está já
inoperacional. As semanas são uma eternidade. Até parece que nascemos na
tropa, na guerra.
– Ruma um pouco mais para a
direita!
O timoneiro manobrou.
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O fuzileiro pegou numa vara,
apalpou o fundo do mar e disse:
– Ruma um pouco mais para a
direita!
O timoneiro manobrou, fez
todos os possíveis. Em vão. A LD tocou a areia, sujou a água em volta.
Encalhou.
Os soldados caíram em
desânimo. Barafustaram.
O Américo despejando o saco,
dizia:
– Matem-nos! Matem-nos
todos…
O timoneiro ligou o rádio.
Uma valsa de Strauss. A mim pareceu-me impossível haver ainda harmonia
no mundo, harmonia no nosso mundo, onde reina o ódio e pesam ameaças.
Peixes, cor de prata, vinham
à tona, espadanavam.
Deixou-se vazar o mar mais
um pouco. Depois, metemo-nos a caminho. A praia ficava longe. A lama,
aqui e ali, sorvia-nos os pés, prendia os movimentos. O sol torrava. As
cabeças pendiam pesadas como pedras. Praguejava-se e o Simões clamava:
– Se apanhasse agora um
turra, descarregava sobre ele a minha fúria...
A dois passos, as barracas,
a praia, a base.
Então, entrou pelo mar
dentro um jeep a fim de apanhar os que não podiam mais, mas
atolou-se, quando parou por momentos. E chapinhou-nos todos de lama
quando nos agarrámos a ele, porque as rodas patinavam.
Os que gostavam de registar
(mas de longe) a guerra em película disparavam, quase impávidos e
serenos e com um amável sorriso nos lábios. E não duvido de que algumas
fotografias fariam furor, ilustrando qualquer reportagem de guerra numa
revista, até no “Match”: vínhamos num molho. Confesso que me metiam
confusão e me davam raiva: gravavam o nosso sofrimento.
Ao chegarmos, um deles
aproximou-se e disse para um homem que, de calças rotas, cambaleava, a
frase que todos haviam decorado:
– Eh, pá! Tens bom aspecto!
Mas o dois é que não estava
para graças e emprestou-lhe um sorriso forçado, num rictus de amargura,
sem uma palavra, embora tivesse muitas para arremessar. Deu mais meia
dúzia de passos e estirou-se na areia, todo encharcada em lama e
cansaço.
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