TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 75-76

A PRAIA

Como, 24 / Fev. / 64.

O Fuzileiro disse:

– Não tarda a encalharmos!

O facto feriu-nos mais do que o sol que rebentava em estilhaços de fogo na LD.

A maré vazava e a água punha a descoberto um imenso areal, coberto de conchas. Longe, à esquerda, o Vouga tornava-se quase agressivo contra a calma do mar e do céu molhado de azul. Em frente, adivinhava-se a praia, a base, onde aterrava um DO. Doía-nos aquela distância: o caminho da véspera emperrara-nos os músculos e a noite, mal dormida, aos montes, num chão duro quebrara-nos o resto dos ossos. (Quando a FAP bombardeava a mata, lembro-me de ter olhado a lua a afogar-se no rio, no lodo, e achei-a triste, tão triste como eu).

Há quarenta dias que o mundo para nós é a incerteza da hora seguinte a devorar-nos a fonte atormentada. O mundo para nós é de luta, uma terra de sangue e fogo. Há refeições em branco, porque nada apetece senão a paz, o regresso. Há pesadelos e estonteamentos, cansaço. Uma grande parte da tropa está já inoperacional. As semanas são uma eternidade. Até parece que nascemos na tropa, na guerra.

– Ruma um pouco mais para a direita!

O timoneiro manobrou. / 76 /

O fuzileiro pegou numa vara, apalpou o fundo do mar e disse:

– Ruma um pouco mais para a direita!

O timoneiro manobrou, fez todos os possíveis. Em vão. A LD tocou a areia, sujou a água em volta. Encalhou.

Os soldados caíram em desânimo. Barafustaram.

O Américo despejando o saco, dizia:

– Matem-nos! Matem-nos todos…

O timoneiro ligou o rádio. Uma valsa de Strauss. A mim pareceu-me impossível haver ainda harmonia no mundo, harmonia no nosso mundo, onde reina o ódio e pesam ameaças.

Peixes, cor de prata, vinham à tona, espadanavam.

Deixou-se vazar o mar mais um pouco. Depois, metemo-nos a caminho. A praia ficava longe. A lama, aqui e ali, sorvia-nos os pés, prendia os movimentos. O sol torrava. As cabeças pendiam pesadas como pedras. Praguejava-se e o Simões clamava:

– Se apanhasse agora um turra, descarregava sobre ele a minha fúria...

A dois passos, as barracas, a praia, a base.

Então, entrou pelo mar dentro um jeep a fim de apanhar os que não podiam mais, mas atolou-se, quando parou por momentos. E chapinhou-nos todos de lama quando nos agarrámos a ele, porque as rodas patinavam.

Os que gostavam de registar (mas de longe) a guerra em película disparavam, quase impávidos e serenos e com um amável sorriso nos lábios. E não duvido de que algumas fotografias fariam furor, ilustrando qualquer reportagem de guerra numa revista, até no “Match”: vínhamos num molho. Confesso que me metiam confusão e me davam raiva: gravavam o nosso sofrimento.

Ao chegarmos, um deles aproximou-se e disse para um homem que, de calças rotas, cambaleava, a frase que todos haviam decorado:

– Eh, pá! Tens bom aspecto!

Mas o dois é que não estava para graças e emprestou-lhe um sorriso forçado, num rictus de amargura, sem uma palavra, embora tivesse muitas para arremessar. Deu mais meia dúzia de passos e estirou-se na areia, todo encharcada em lama e cansaço.

 

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