Como, 23 / Fev. / 64
O domingo amanheceu-nos todo
no meio do mato, tão cerrado que parecia ser o mundo todo assim. Um dia
igual a tantos dias iguais que nos fazem os nervos num feixe.
E não é nada fácil andar no
mato, sobretudo, se se traz colada à pele uma farda camuflada que temos
de defender a todo o custo, correndo os mais diversos riscos.
Precisamente, a coragem dum soldado está em olhar de frente o perigo,
desprezando-o, e, sem vacilar, dar tudo por tudo para vencer. Sim, não é
nada fácil, andar no mato, caçador de homens como nós com quem temos que
contar, empunhando uma arma pronta a disparar no momento preciso.
A respiração quase pára e o
coração bate pancadas, como pedradas, pancadas fortes, como se quisesse
libertar de sinistras mãos que o quisessem sufocar. São pancadas
protestando contra a morte. E, quando menos se pensa, ao primeiro
disparo, estamos por terra e, de arma na cara, dentes cerrados, para
resistir e vencer.
O céu fica longe, porque não
se vê, e o sol também, mas sua-se em gotas contínuas e as formigas
sobem-nos o corpo. Os passos são duma lentidão enorme, quase incrível,
porque há um novo caminho a abrir. Além disso, é exigida uma ginástica
especial, galgando grossos
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troncos, verdes ou secos, que o tempo atravessou no nosso caminho ou
curvando-nos, até andar de rojos. Por vezes, um ramo ou uma liana com
espinhos passa de mão em mão pelo longo fio de vidas humanas que coleia
cautelosamente, chegando, por vezes, a frente a tocar a cauda da coluna.
O olhar espraia-se em
derredor, mas não vai longe.
Tudo vasculha
perspicazmente. Sobe todas as árvores, sobretudo as mais ramalhudas,
porque lá pode estar empoleirado o perigo ou escondida a morte.
5, 10, 11 horas de caminho.
Horas longamente pesadas como chumbo, numa viagem difícil, amachucante,
sob um sol de morrer à sede, porque a água acabou.
Aqui e ali, debaixo de
palmeiras novas e de grandes copas, casas de mato, bem disfarçadas.
Camas e esteiralhos, misturados com farrapos, refúgio nocturno. Postos
de sentinelas avançadas, alcandorados no cimo de árvores com uma larga
visão e bom esconderijo. E junto, montes de cinza a fumegar e penas de
galinhas.
O homem que me precedia
exclamou:
– Têm bons petiscos, os
bandidos!
E confesso que me nasceu
água na boca, habituada à ração de combate, a uma quaresma de dor e
jejum...
Meio-dia.
A sorte não bate sempre à
nossa porta. Os bandidos, alguns de farda camuflada, emboscados à
entrada de Curcô, fizeram correr longos minutos de sangue.
Na frente, um moço possante,
alto e de ombros salientes, perdera a vida. Mas lá na terra, daqui a
dois meses, há-de nascer o rebento, alguém que jamais conhecerá o pai,
que jamais colherá beijos dos seus lábios. Ele morrera um dia
combatendo.
Quando ele tombou na frente,
ouviu-se um grito agressivo, selvagem:
– Agarrem-no! Agarrem-no...
O aspirante Casaca, um pouco
adiantado, ficara ali, só, com o morto e o prisioneiro, porque os outros
haviam recuado para melhor defesa. Estremeceu, teve medo como nunca.
Tentou arrastá-lo para trás de rojo, enquanto não deixava de fixar o
prisioneiro acaçapado, de mãos atadas ao corpo, mas ele pesava como um
tronco verde, caído em verdes anos.
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Novamente o grito vindo do
mato:
– Agarrem-no! Agarrem-no…
E disparavam tiros secos de
pistola sobre ele que lhes respondia, olho no negro, olho no lado
direito da vereda onde estava o inimigo. Mas, num momento, aconteceu-lhe
o pior. Uma rajada deu-lhe cabo do último carregador e uma bala, de
raspão, queimou-lhe a testa ensuarada, vermelha, tão vermelha como a
raiva que ia dentro de si, correndo os nervos.
E a mesma voz agressiva:
– Agarrem-no…
Agora, o
aspirante-paraquedista não tinha balas. Nem rádio.
Só, tremia. E não podia
gritar, que era perigoso. Entretanto, lembrou-se que tinha granadas no
bolso. Tirou uma, duas. Mas sabia que era preciso não falhar.
Calmamente, tirou a cavilha com os dentes. E lançou uma, duas. E contou:
1… 2… 3… 4... (Cada segundo parecia uma hora). Então, fez-se silêncio de
morte na selva e por detrás do monte de baga-baga. E arrastou o
morto salvo. Os outros já vinham ao seu encontro. Na retaguarda havia
mais feridos.
Quando o sol desenhou no
poente fímbrias de sangue, na margem lamacenta do riacho, que passava
ali perto, um negro, que tentara fugir inutilmente, coração varado lado
a lado, dedos encrespados na lama e, olhos terrivelmente vidrados,
selvagens como a morte, arrefecia. E um papel sobre ele tinha este
epitáfio terrível: «Bandidos, se quiserem alguma coisa, venham e
apareçam, que eu vos espero... Alf. (X)». (E, passados dois dias, eles
atenderam o pedido. Atacaram a posição de Curcô mais uma vez).
E a noite de domingo caiu
bafejada por uma aragem fresca que trazia tiros de longe a longe.
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