TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 72-74

O CÉU FICA LONGE

Como, 23 / Fev. / 64

O domingo amanheceu-nos todo no meio do mato, tão cerrado que parecia ser o mundo todo assim. Um dia igual a tantos dias iguais que nos fazem os nervos num feixe.

E não é nada fácil andar no mato, sobretudo, se se traz colada à pele uma farda camuflada que temos de defender a todo o custo, correndo os mais diversos riscos. Precisamente, a coragem dum soldado está em olhar de frente o perigo, desprezando-o, e, sem vacilar, dar tudo por tudo para vencer. Sim, não é nada fácil, andar no mato, caçador de homens como nós com quem temos que contar, empunhando uma arma pronta a disparar no momento preciso.

A respiração quase pára e o coração bate pancadas, como pedradas, pancadas fortes, como se quisesse libertar de sinistras mãos que o quisessem sufocar. São pancadas protestando contra a morte. E, quando menos se pensa, ao primeiro disparo, estamos por terra e, de arma na cara, dentes cerrados, para resistir e vencer.

O céu fica longe, porque não se vê, e o sol também, mas sua-se em gotas contínuas e as formigas sobem-nos o corpo. Os passos são duma lentidão enorme, quase incrível, porque há um novo caminho a abrir. Além disso, é exigida uma ginástica especial, galgando grossos / 73 / troncos, verdes ou secos, que o tempo atravessou no nosso caminho ou curvando-nos, até andar de rojos. Por vezes, um ramo ou uma liana com espinhos passa de mão em mão pelo longo fio de vidas humanas que coleia cautelosamente, chegando, por vezes, a frente a tocar a cauda da coluna.

O olhar espraia-se em derredor, mas não vai longe.

Tudo vasculha perspicazmente. Sobe todas as árvores, sobretudo as mais ramalhudas, porque lá pode estar empoleirado o perigo ou escondida a morte.

5, 10, 11 horas de caminho. Horas longamente pesadas como chumbo, numa viagem difícil, amachucante, sob um sol de morrer à sede, porque a água acabou.

Aqui e ali, debaixo de palmeiras novas e de grandes copas, casas de mato, bem disfarçadas. Camas e esteiralhos, misturados com farrapos, refúgio nocturno. Postos de sentinelas avançadas, alcandorados no cimo de árvores com uma larga visão e bom esconderijo. E junto, montes de cinza a fumegar e penas de galinhas.

O homem que me precedia exclamou:

– Têm bons petiscos, os bandidos!

E confesso que me nasceu água na boca, habituada à ração de combate, a uma quaresma de dor e jejum...

Meio-dia.

A sorte não bate sempre à nossa porta. Os bandidos, alguns de farda camuflada, emboscados à entrada de Curcô, fizeram correr longos minutos de sangue.

Na frente, um moço possante, alto e de ombros salientes, perdera a vida. Mas lá na terra, daqui a dois meses, há-de nascer o rebento, alguém que jamais conhecerá o pai, que jamais colherá beijos dos seus lábios. Ele morrera um dia combatendo.

Quando ele tombou na frente, ouviu-se um grito agressivo, selvagem:

– Agarrem-no! Agarrem-no...

O aspirante Casaca, um pouco adiantado, ficara ali, só, com o morto e o prisioneiro, porque os outros haviam recuado para melhor defesa. Estremeceu, teve medo como nunca. Tentou arrastá-lo para trás de rojo, enquanto não deixava de fixar o prisioneiro acaçapado, de mãos atadas ao corpo, mas ele pesava como um tronco verde, caído em verdes anos. / 74 /

Novamente o grito vindo do mato:

– Agarrem-no! Agarrem-no…

E disparavam tiros secos de pistola sobre ele que lhes respondia, olho no negro, olho no lado direito da vereda onde estava o inimigo. Mas, num momento, aconteceu-lhe o pior. Uma rajada deu-lhe cabo do último carregador e uma bala, de raspão, queimou-lhe a testa ensuarada, vermelha, tão vermelha como a raiva que ia dentro de si, correndo os nervos.

E a mesma voz agressiva:

– Agarrem-no…

Agora, o aspirante-paraquedista não tinha balas. Nem rádio.

Só, tremia. E não podia gritar, que era perigoso. Entretanto, lembrou-se que tinha granadas no bolso. Tirou uma, duas. Mas sabia que era preciso não falhar. Calmamente, tirou a cavilha com os dentes. E lançou uma, duas. E contou: 1… 2… 3… 4... (Cada segundo parecia uma hora). Então, fez-se silêncio de morte na selva e por detrás do monte de baga-baga. E arrastou o morto salvo. Os outros já vinham ao seu encontro. Na retaguarda havia mais feridos.

Quando o sol desenhou no poente fímbrias de sangue, na margem lamacenta do riacho, que passava ali perto, um negro, que tentara fugir inutilmente, coração varado lado a lado, dedos encrespados na lama e, olhos terrivelmente vidrados, selvagens como a morte, arrefecia. E um papel sobre ele tinha este epitáfio terrível: «Bandidos, se quiserem alguma coisa, venham e apareçam, que eu vos espero... Alf. (X)». (E, passados dois dias, eles atenderam o pedido. Atacaram a posição de Curcô mais uma vez).

E a noite de domingo caiu bafejada por uma aragem fresca que trazia tiros de longe a longe.

 

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