TARRAFO – crónicas de um alferes na Guiné, 2.ª ed., 2013, págs. 61-64

S. NICOLAU

Como, 28 / Jan. / 64.

Quando os dois fuzileiros tombaram na frente, esvaídos em sangue, os bandidos, alguns de farda camuflada, queriam-nos a todo o custo como presa. A raiva crescia do nosso lado e redobrámos de violência. Então, o primeiro grumete, rastejando, e de arma a cuspir fogo, foi à frente, protegido pelos restantes. Primeiro, arrastou para trás as armas. Depois, rastejando novamente, arrastou os companheiros que abriam enormemente os olhos.

O Artur, que apanhara com duas balas de raspão, uma na testa, outra no nariz, gritava enfurecido:

– Hão-de pagar-mas todas…

E o Magalhães, ferido num pé, dizia:

– Não doeu muito…

Foram duas longas horas de combate encarniçado e ali correra sangue e um rio de nervos. Mas só retirámos quando lhes chegou ao fim a lição. Ali, todos se bateram como se fossem um único homem, audacioso e forte, correndo todos os riscos, porque:

«A mocidade não tem crimes,
o que tem é coração.»

Mas, passados dias, voltámos à carga. / 62 /

Acabado o bombardeamento aéreo pelos jactos, de armas aperradas aos quadris, entrámos na tabanca. Tudo parecia correr bem. As casas começaram a arder em grandes labaredas, enquanto alguns, mais descontraídos, se entretinham a apanhar pintos que metiam nos bolsos e no seio e cabritos.

Mas, num abrir e fechar de olhos, eles, que se esconderam no mato durante o bombardeamento, caíram loucamente sobre nós, e, no mesmo abrir e fechar de olhos, todos nos acaçapámos, mais ou menos protegidos. No mesmo abrir e fechar de olhos, me encontrei num buraco largo, só, de arma na cara, atrás duma palmeira. Mas, quando carreguei no gatilho, vi que a arma estava contra mim. Carreguei mais uma vez e outra, e nada. Um homem desarmado! Apeteceu-me bater-lhe com o cano no tronco da árvore, mas contive-me. Desencravei-a. Comecei a disparar e a recuar em corridas curtas, em zig-zag para que, quando eles atirassem para o zig, eu já estivesse no zag, deitando-me logo, fosse onde fosse. Por vezes, as rajadas cravavam-se na terra, rente ao corpo que estremecia. E assim cheguei à retaguarda, galgando um enorme cômoro a fim de me proteger e preparava-me para atirar, quando, ao meu lado, o cento e vinte e um gritou:

– Estou a vê-los... Aí vai disto. – E fez um, dois, três tiros.

E, quando se preparava para fazer pontaria a matar, uma bala perdida fez-lhe cair das mãos a G3 e, caindo para o lado, empalideceu. E disse:

– Ai, mãe, já estou…

E, depois de se contorcer, numa voz suave:

– Levem-me…

As G3 ardiam em furor, fumegavam. Era preciso fazê-los perder o pio.

Eles haviam entrado nas casas e atiravam das janelas.

Os T6 derrubavam as paredes.

No meio da fuzilaria e dos estrondos do morteiro e bazooka, ouvi do meu lado esquerdo:

– Já enfiei um... Dobrei-o em dois!

Era o Simões que tirava um carregador vazio. E repetiu-me: / 63 /

– Já enfiei um... que a terra lhe seja leve como um rochedo!

O Farinha, aflito, dentes a morderem-se, quase a chorar, quis recuar com o ferido às costas, o que eu não permiti, pois era perigoso: um alvo fácil de abater, visto a distância, que nos separava dos bandidos, ser duns escassos 50 m. Entretanto, o enfermeiro puxou da navalha e rasgou-lhe a farda junto do ferimento. Uma bala trespassara-lhe o peito.

Vencendo tarrafos e bolanhas. O esforço é enorme, por vezes a lama sorve os joelhos.

Então, ora o Farinha, ora o Simões, o arrastavam, sobre o corpo, muito a custo, por causa do fogo, seguindo-me carregado de armas e capacetes. Rastejava. Na frente, o outro grupo de combate detinha o inimigo por um fogo cada vez mais impetuoso e violento. Tinha andado pouco, quando vi a correr outro homem, o Ameixa, que dizia estar ferido num pé, mas que ia andando. enquanto estava quente. / 64 /

Correram longos minutos, quase eternos: 60, 80, 100…

Entretanto, a fúria no mato abrandava. E agora o Farinha transportava às costas o ferido.

Chegámos ao riacho. O cansaço escorria todo em suor e dores de cabeça, porque o sol estava em brasa. E quando atravessámos o tarrafo, o riacho, alguns caíram desamparados. Encharcaram-se e tiveram que ser levados em braços.

O helicóptero poisou na bolanha. Levantou.

E começou o regresso.

O André, que puxava umas fumaças, dizia esfalfado:

– Ai, mãe! Isto custa mais que parir…

E alguns, tirando dos bolsos os pintos, atiravam-nos fora.

 

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